Brasil -  Com pompa e circunstância, Abel Epalanga Chivukuvuku, apresentou o projeto político CASA, a 14 de Março passado, como uma coligação que se pretende como uma alternativa ao  MPLA (situação) e UNITA (oposição). O desafio a que se propõe a CASA será assim o de alargar e se interpôr no interstício destas duas esferas que polarizam a política nacional.


Fonte: Makaangola.org


A configuração política atual é resultado de encarniçadas disputas ocorridas nos últimos 40 anos e por isso vale a pena percorrer com a história o caminho que conduziu a este desenho para percebermos o tamanho do desafio a que se propõe a CASA e, assim, procurar descortinar entre nuvens o seu futuro.


Exclusão política e a lógica da guerra

 

Quando em 1974 ocorreu em Portugal o 25 de Abril, o MPLA encontrava-se literalmente fraturado em três facções que se digladiavam ferozmente (não necessariamente com meios bélicos). Tratavam-se,  nomeadamente da ala de Neto, que dirigia oficialmente o MPLA a partir de Brazzaville; a Revolta Ativa que congregava muitos quadros do movimento; e a Revolta do Leste, chefiada por Daniel Chipenda, integrada por combatentes situados no interior, mormente da Frente Leste. Foi a primeira região, que acabara de quebrar o isolamento a que se sujeitou em resultado das ações anti-guerrilha do exército colonial, que permitiu a Neto contornar a sua esperada derrota  no Congresso do MPLA em Lusaka. Esta foi na verdade a razão pela qual o MPLA se tornou no último dos três movimentos a assinar o acordo de cessar fogo com o exército português.


A FNLA era então um movimento acomodado no Zaíre de Mobutu e isso dificultava um engajamento maior dos dirigentes na luta armada e, por arrasto, fragilizava a ação dos combatentes no terreno. O suporte de Kinshasa constituía no entanto  uma retaguarda segura e um leito logístico sólido que permitia a sobrevivência do movimento apesar das investidas cada vez mais fortes do exército colonial.


A UNITA era o movimento mais jovem, posicionado por inteiro no interior de Angola, batendo-se com parcos e rudimentares meios para marcar seu lugar na história da luta de libertação, e seguindo uma linha diferente dos dois movimentos que a antecederam.   Jonas Savimbi, seu fundador, tendo analisado outras experiências de luta, chegou à conclusão que a melhor forma de se levar a cabo a luta armada seria manter toda a estrutura do movimento no interior. Isto, no seu entender, impediria a concessão de privilégios a dirigentes que seriam susceptíveis de abrir sulcos entre líderes e combatentes como vinha se verificando na FNLA e no MPLA.


Quando, finalmente, aconteceu o 25 de Abril, Savimbi percebeu de imediato a oportunidade que a revolução portuguesa representava para alargar o seu espaço político, até então restrito, e se tornou então no primeiro dos três movimentos a assinar o acordo de cessar fogo com os portugueses e a iniciar um trabalho político que permitiu um grande crescimento da organização. A FNLA foi o segundo movimento a assinar o acordo de cessar fogo, seguindo-se por último o MPLA.   A entrada dos movimentos nas cidades foi na verdade um momento de disputas políticas renhidas, cada um procurando demonstrar suas vantagens a fim de cativar o maior número possível de aderentes. As tácticas políticas dos movimentos foram as mais diversas e, neste caldo, MPLA e FNLA acirraram a contenda que já vinham travando desde os primórdios da luta armada. O MPLA inscreveu em seu programa que era o único representante legítimo do povo angolano, e desde logo rotulou os outros movimentos de fantoches a ser aniquilados por todos os meios. Portanto, a lógica de exclusão dos outros estava inscrita na sua matriz e determinou desde logo toda a ação que este movimento viria a desencadear contra todas as forças que ousassem aparecer.


A UNITA, por seu turno, encetou a sua entrada nas cidades ciente de suas limitações militares e determinada a conquistar por meios políticos o seu espaço.  Não demorou muito tempo para que o MPLA e a FNLA trocassem a disputa política por confrontos militares. A situação  agudizou-se, a posteriori quando a Revolta do Leste, isolada com o fracasso do Congresso de Lusaka, se viu forçada a integrar a FNLA. A ira do MPLA cresceu exponencialmente em decorrência deste fato. Desde então, os sucessivos acordos rubricados pelos movimentos, com destaque para o Acordo de Alvor, serviram apenas para o MPLA ganhar tempo na sua estratégia implacável de aniquilar “os fantoches” e dirigir sozinho os destinos de Angola. A confrontação, inicialmente restrita à FNLA, de pronto se estendeu à UNITA que até então resistira.


Este clima de confrontação aberta impediu a emergência de forças políticas civis. Houve algumas tentativas neste sentido, mas a fúria com que os três movimentos de libertação repeliram essas experiências matou à nascença a emergência de forças políticas civis naquele período.


A independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975, aconteceu em clima de guerra total entre os movimentos e o MPLA, com suporte massivo de cubanos e soviéticos, conseguiu já no início de 1976 se impor como governo da República Popular de Angola. Proclamada por Agostinho Neto, a independência logo obteve reconhecimento da comunidade internacional através da ONU. A UNITA remeteu-se então a uma luta de guerrilha de baixa intensidade, enquanto a FNLA abdicou da luta armada e os seus dirigentes refugiaram-se no exterior do país. Tudo isso aconteceu num momento de verdadeira comoção nos Estados Unidos da América (EUA), tanto pelo desfecho desastroso da guerra do Vietname como também pelo “impeachment” de Nixon na sequência do escândalo Watergate. Gerald Ford, que o sucedeu, cumpria então um mandato precário e consentiu o avanço geopolítico da União Soviética na África Austral. Foi somente com a administração Reagan que os EUA reagiram perante a consolidação da influência geopolítica da antiga União Soviética em Angola. O esforço para reverter essa situação colocou o conflito angolano no cerne da Guerra Fria. A Emenda Clarck foi revogada, apesar do gigantesco esforço diplomático de Angola, e a UNITA passou a ser abertamente apoiada pelos EUA. Daí em diante se assistiria a desenvolvimentos espetaculares no xadrez militar e político de toda a região que viriam a ser parte determinante para o desfecho que a Guerra Fria conheceu.  Na África austral, a confrontação deu lugar aos acordos de Nova York que abriram caminho para a independência da Namíbia, a libertação de Mandela e o fim do apartheid na África do Sul.


Em Angola, o desfecho veio com os acordos de Bicesse assinados em 31 de Maio de 1991 que abriram caminho ao multipartidarismo. A UNITA emergiu aqui como uma grande força política e isso conduziu à polarização extrema da vida política asfixiando as possibilidades de surgimento e, sobretudo, de crescimento de outras forças políticas.


As tentativas para uma terceira via


Apesar dos movimentos conturbados que o país conheceu nos últimos 20 anos, isto é, de 1992 a esta parte, não se pode afirmar que tenha surgido uma terceira via, como uma franca alternativa a estas duas forças políticas. Ensaios neste sentido não faltaram e o PRD e a FpD esboçaram em determinados momentos projectos com potencial de sucesso. Todavia, a força demolidora dos partidos tradicionais, particularmente  o sentido exclusivista que move o MPLA, tratou de imediato de confinar esses movimentos, abortando assim a emergência de uma terceira via. A FNLA voltou do exílio em 1991 ainda com alguma força para ocupar esse espaço. Mas as disputas internas, que se tornaram ainda mais agudas com a morte do seu líder histórico Holden Roberto, só têm levado a FNLA a um processo de autofagia que pode desembocar na sua extinção. No meio desta maré, um ponto saliente parece ser o PRS, um partido que, apesar de todos os ventos soprando contra, vem consolidando devagar, mas solidamente, a sua marca, sendo já uma força política que não deve ser ignorada no xadrez político angolano.


Tem a CASA força suficiente para se interpor entre essas duas forças e tocar adiante o seu ambicioso projeto?


Qualquer que seja a configuração que ele venha a assumir, o projeto CASA é sobretudo uma dissidência da UNITA e assim será considerado. Mas é bom assinalar que se trata de uma dissidência diferente, pois ao contrário de outras que vimos nos últimos anos, não se colocou na órbita do MPLA. Colocou-se sim em franca oposição ao sistema, aspecto que deve ser levado em consideração. Mas, para entender os possíveis desdobramentos do projeto será necessário considerar os aspectos constitutivos dos campos políticos hoje existentes em Angola. Como vimos, pela breve resenha histórica acima, o desenho atual resultou, sobretudo, de renhidas disputas com custos elevados para os contendores. Por isso, estes espaços são defendidos tenazmente por essas forças. São necessários ainda alguns estudos para se ter uma idéia mais clara sobre a forma como se constituem os vínculos políticos em Angola, mas tudo indica que, mais do que os fatores políticos e ideológicos, os laços sociais e familiares e os fatores econômicos são os principais fios condutores no estabelecimento destes vínculos. Assiste-se hoje, como assinalam diferentes estudos, a alterações significativas na topologia social. No essencial o que se descreve é uma transição de uma forma social essencialmente vertical talhada por grandes discursos e ideologias, por outra mais horizontalizada e reticular, viabilizada pelas tecnologias de informação e comunicação que se pautam por uma lógica bastante distinta do modelo de comunicação massivo que a rádio, a TV e o jornal impresso representam. O resultado é uma sociedade mais fluída, mais inquieta, rebelde e aversa aos aos controlos ideológicos. A efervescência juvenil que assistimos em Angola pode atestar essas observações e sugere que a morfologia social presente é bastante diferente da que prevalecia há 20 anos, isto é, em 1992.

Há, portanto, um terreno fértil a novos discursos, a novos paradigmas, a outras escolhas e posturas políticas que podem facilitar a emergência de uma via alternativa às forças tradicionais. Mas há também muitos espinhos representados por um conservadorismo ainda hegemônico que, de resto, é responsável pelo progresso demasiado lento que o processo democrático em Angola conhece. Apesar das mudanças sociais favoráveis, prevalecem ainda fatores retrógrados capazes de minar o caminho da terceira via. A possibilidade do projeto CASA vingar a curto ou a médio prazo deverá, por isso, resultar da solução com êxito da equação que envolve o peso político de sua liderança, a aproximação a estas franjas novas da sociedade para as quais só um discurso novo e impactante terá verdadeiro eco, bem como os desdobramentos das duas forças políticas tradicionais.


O MPLA prosseguirá a sua lógica exclusivista e, com certeza tudo fará para inviabilizar a emergência de uma terceira via. A UNITA, pelas reações já ensaiadas por alguns dos seus membros, tenderá a assumir pelo menos externamente uma atitude de desprezo, mas na realidade não vai ignorar os caminhos trilhados pelo projeto CASA. Aqui duas correntes podem desenvolver-se: uma, mais radical, optará por hostilizar abertamente os seus ex-companheiros e outra, mais moderada, procurará conviver sem sobressaltos com esta nova realidade. Em minha opinião, a UNITA teria muito mais a ganhar se alinhasse pela segunda opção, pois desse modo, evitaria dissipar energias com pelejas colaterais, energias que poderiam perfeitamente ser canalizadas para enfrentar o seu  principal adversário, o MPLA. Isto não significa ignorar as feridas óbvias que estas rupturas ocasionam, mas tratá-las de forma a reduzir ao mínimo os estragos possíveis na estrutura.

 

A política, como a caracteriza Hannah Arendt, é o espaço dos homens que são diferentes por natureza e pensam de maneira diferente sobre as mesmas coisas. É,, por excelência, o espaço da divergência de opiniões e/ou interesses.  Em democracia a regra lapidar é a regra da maioria, o que significa que mais do que arrancar consensos à força, a arte da política em democracia visa construir maioria. Isso não significa aniquilar a minoria, mas sim respeitá-la preservando o pluralismo. Mas a minoria precisa também reconhecer a sua condição e, no limite das regras negociadas, deve sujeitar-se à maioria. Neste exercício por vezes se extremam posições e determinadas rupturas se tornam inevitáveis. A história dos partidos políticos é prova disso. Na verdade partidos são facções.  É aqui que se deve situar a opção assumida por Abel Chivukuvuku e pares. Mais do que fazer disso um drama, os membros da UNITA devem erguer a cabeça, encontrar aqui uma oportunidade para refletir sobre a situação e divisar formas que permitam no futuro prevenir situações extremistas que minem a coesão do partido. Deste modo será fácil aceitar que cada um siga o seu rumo.

 

Em resumo, pode-se dizer que o projeto CASA surge num momento em que há condições sociais favoráveis para a emergência de uma via política alternativa. Contudo, persistem ainda fatores hostis que tornam sinuoso o seu percurso possível. O peso político da liderança é um fato favorável, mas precisará de enorme habilidade política para construir um discurso que atraia as franjas insatisfeitas da sociedade e que estabeleça de fato, uma linha de demarcação em relação à UNITA. Precisará ainda de habilidade política para driblar permanentemente a lógica aniquiladora do MPLA que como referimos decorre de sua essência matricial exclusivista.


Tudo isso nos dá a idéia do gigantesco desafio a que a CASA se propõe o que, aliado aos imponderáveis que podem acontecer em política, torna impossível fazer previsões em relação ao seu futuro. Deixemos que o tempo se encarregue desta missão.