Luanda  - Animados por princípios de liberdade e dignidade e de uma tradição de independência que ainda hoje não se limita simplesmente à defesa dos seus interesses ou do seu território os angolanos muito cedo passaram a desempenhar um papel activo no processo de emancipação do Homem Negro em terras americanas e os factos documentados provam que eles estiveram na vanguarda de um dos primeiros conhecidos actos de rebelião organizados contra a escravatura dentro das fronteiras actuais dos Estados Unidos da América.

Fonte: Jornal de Angola

Angola e os Estados Unidos da América (EUA) assinalaram ontem, 19 de Maio de 2013, o 20º aniversário da normalização das suas relações diplomáticas. Depois de décadas de tensão e polarização decorrentes da Guerra Fria, foi uma etapa importante e necessária para um novo começo entre as duas nações, afinal ligadas por um passado histórico comum que deve ser lembrado às novas gerações como um legado de Angola ao Novo Mundo.


Tudo começou em 1607, quando um grupo de 108 ingleses criou o primeiro colonato permanente em território americano, em Jamestown, nas margens da baía de Chesapeake – o maior estuário nos EUA em que desembocam mais de 150 rios, e cercado pelos actuais Estados americanos de Maryland e Virgínia. Anos depois chegavam os primeiros africanos que, com o seu saber e experiência, ajudaram a promover a agricultura, nomeadamente do tabaco, e a desenvolver esta colónia.


Pesquisas recentes confirmam que estes eram escravos originários dos reinos do Ndongo e do Kongo, territórios que actualmente constituem parte de Angola, e que em 1619 estavam a bordo do navio negreiro português São João Baptista com destino ao porto de Vera Cruz, no México, quando este foi atacado por corsários ingleses. Acabaram por ser transferidos para os navios Treasurer e White Lion, que navegavam com bandeira holandesa, com rumo a Jamestown, onde alguns dos escravos foram trocados por mantimentos. Começou assim a presença angolana nos EUA. Animados por princípios de liberdade e dignidade e de uma tradição de independência que ainda hoje não se limita simplesmente à defesa dos seus interesses ou do seu território, os angolanos muito cedo passaram a desempenhar um papel activo no processo de emancipação do Homem Negro em terras americanas. Factos documentados provam que eles estiveram na vanguarda de um dos primeiros conhecidos actos de rebelião organizados contra a escravatura dentro das fronteiras actuais dos EUA.


Com efeito, a 9 de Setembro de 1739, um grupo de 20 negros da Carolina do Sul, liderados por Jemmy, um escravo angolano até já letrado, iniciou uma marcha perto do Rio Stono, vinte milhas a sudoeste de Charleston, agitando um estandarte onde estava escrita a palavra “Liberdade”, a mesma que gritavam em uníssono. Na refrega que se seguiu, 20 brancos e 44 negros morreram antes deste levantamento ter sido abafado. Inspiradas pela rebelião de Stono, como então ficou conhecida, surgiram outras sublevações de escravos, particularmente na Geórgia, em 1740, seguida de uma no ano seguinte, mais uma vez na Carolina do Sul.


Nos anos 1980, nos arredores de Saint Augustine, na Flórida, foram descobertos vestígios do Forte Mose, um símbolo de liberdade para os escravos fugidos da Carolina do Sul e da Geórgia. Há muito que a Flórida espanhola representava um problema para os Estados e territórios americanos do Sul que tinham institucionalizado a escravatura. As autoridades espanholas assumiam uma postura de protecção em relação aos escravos que fugissem em busca de liberdade, oferecendo-lhes abrigo desde que estes se convertessem ao catolicismo romano. Para eles, era uma forma de enfraquecer a posição do seu vizinho americano do norte no Novo Mundo e ganhar “aliados” para a defesa das suas possessões na Flórida.


A natureza dinâmica desta aspiração profunda de liberdade, primeiro representada pelo Forte Mose nos anos 1700 e, em seguida, pelo Forte Negro no princípio dos anos 1800, criou um verdadeiro dilema aos proprietários de escravos, que consideravam a mera existência dessas comunidades como sendo um estímulo e um incentivo para escravos fugirem para a Flórida espanhola. Uma vez estes fortes destruídos, as autoridades americanas aperceberam-se de uma nova ameaça ao longo da costa ocidental da Flórida. Tratava-se de Angola, uma comunidade agrícola criada por 300 antigos escravos angolanos, por volta de 1812, ao longo do Rio Manatee, que os arqueólogos consideram estender-se de Tampa ao Condado de Sarasota.


Angola acabou por ser associada à realização do sonho da liberdade para os escravos foragidos. Este povoado foi crescendo, primeiro com a chegada de cerca de 40 sobreviventes do Forte Negro quando este foi destruído em 1816 a mando do general americano Andrew Jackson. Em 1818, uma nova vaga de refugiados chegou a Angola. Jackson atravessara novamente a fronteira na Flórida com 4000 soldados, numa campanha para capturar e devolver escravos foragidos aos seus donos. A expedição estava na sua segunda semana quando entrou em choque com cerca de 400 guerreiros negros nas margens do Rio Suwannee. Contra todas as expectativas e previsões militares, estes conseguiram resistir durante um dia, dando assim tempo para que as suas famílias atravessassem o rio antes do grupo fugir em direcção sul, para Angola.


Em 1821, Angola foi destruída durante uma incursão de índios comandada por William McIntosh, um aliado de Andrew Jackson. As casas foram incendiadas e cerca de 300 negros capturados como escravos. Porém, muitos dos seus residentes conseguiram escapar e, num acto de coragem e de determinação, encetaram uma longa e penosa jornada, usando simplesmente as suas habilidades de sobrevivência, até alcançarem a ilha de Andros, nas Bahamas, onde os seus descendentes ainda hoje vivem. Outros fugiram em direcção ao Rio de Paz para se juntarem a um povoado de negros livres perto do Lago Hancock, conhecido como Minatti – um nome que possivelmente se referia ao Rio Manatee onde o povoado de Angola fora estabelecido.


Na mente dos escravos, Angola tornara-se o símbolo da liberdade, de emancipação do Homem Negro e de resistência a todas as formas de subjugação. Assim, o nome passou a ser dado às comunidades criadas pelos escravos foragidos, muitas delas lideradas ou inspiradas por angolanos.


Desse legado histórico, hoje a cidade mais célebre denominada Angola está localizada no Estado de Louisiana, a 50 milhas de Baton Rouge. Nesta antiga plantação de mais de sete mil hectares cujos trabalhadores eram na sua maioria naturais de Angola, em 1835 foi construída a Penitenciária Estadual de Louisiana, o maior estabelecimento prisional dos EUA, onde 85 por cento dos presos cumpre penas de prisão perpétua.


Porém, existem ainda outras cidades com o nome de Angola, menos famosas mas entretanto célebres na sua dimensão histórica, particularmente nos Estados de Nova Iorque, Delaware e Indiana, comunidades nascidas graças à presença de escravos angolanos e da sua adopção de princípios sobre a liberdade e a igualdade numa América ainda em fase de formação.


Esse sentimento de missão encontra-se imbuído ainda hoje nos ânimos de novas gerações de angolanos, através do seu activismo para a dignificação dos povos africanos – que se manifesta através da história recente da liberdade e emancipação da África – com o seu apoio incondicional à luta pela independência do Zimbabué em 1980 e da Namíbia em 1990 e, também, aos esforços políticos e diplomáticos envidados para pôr termo ao apartheid na África do Sul e a resultante ascensão da maioria negra ao poder, em 1994.


Ao fazerem parte da génese dos EUA – lado a lado com os ingleses que criaram o colonato de Jamestown, e dos Índios Pawhattan, habitantes originários desta região de Virgínia – preservando as suas tradições africanas de defesa de valores tais como a independência, o respeito mútuo e a solidariedade, os angolanos contribuíram assim para uma sociedade americana aberta.


Essa sociedade abraça culturas e civilizações que transforma, irmana e dignifica cada vez mais, uma humanidade na senda inexorável da globalização. E neste processo, acabaram assim por representar, no plano histórico, a linha avançada que conduziu à eleição de Barack Obama como o primeiro Presidente negro dos EUA.