Luanda – Apresenta-se como actor de teatro, jornalista e advogado, mas antes de mais como um cidadão que vive num dos musseques mais miseráveis de Luanda,sem que  tenha beneficiado de qualquer espécie de mordomias vindas de “cima” ou... do nada.Por isso, preparado para a luta. Apesar dos seus problemas pessoais, vê a sua actividade quotidiana na Associação “Mãos Livres” como uma oportunidade única de fazer vincar a  luta pela justiça social, no quadro de uma “nova revolução” que se ajuste  à procura permanente da paz, concórdia e harmonia social.

Fonte: Figuras & Negócios

Fruto de uma série de atropelos aos seus direitos como militar que defendeu o país numa esfera importante, o jovem Salvador Freire e outros companheiros da época, constituíram um núcleo de advogados e jornalistas para  defesa dos mais desfavorecidos, denunciando o  já evidente flagelo social da época. Em 25 de Abril de 2000 foi criada a Associação “Mãos Livres”, actualmente considerada como uma das mais interventivas no país.

De acordo com o que me contou foi a partir do seu sentimento de revolta que se transformou num agente cívico?
Eu e muitos dos meus companheiros.Por exemplo, o David Mendes que já o conhecia desde os seus catorze anos, sofreu a mesma discriminação, da tropa foi posto compulsivamente na rua e até hoje ninguém sabe explicar por quê...Essas situações de intrigas, de injustiças fizeram com que se criasse uma organização que hoje é as “ Mãos Livres”.Eu e o David Mendes fomos os seus criadores...

Agora como cidadão considera-se livre destas arbitrariedades da época ou existe muita luta pela frente por parte da associação a que pertence?
Não sou um cidadão totalmente livre, uma vez que temos muito trabalho pela frente; é preciso que os cidadãos demonstrem, na prática, que sendo livres devem contribuir, como, quando e onde quiserem para a democratização do país, para o seu progresso e o bem estar comum. Sinto-me que em certa medida cumpri o meu dever como oficial das Forças Armadas, mas agora faço uma outra caminhada tendente a pressionar, que haja justiça e estabilidade entre os angolanos.

No fundo, são esses os objectivos da Associação “Mãos Livres”, mas parece-me que têm dado passos muito mais importantes na esfera política, inclusive...
Os nossos objectivos primários são de ajuda às pessoas desprovidas de quaisquer recursos para uma sobrevivência condigna; são as pessoas pobres, discriminadas, que vivem do nada.Isto aqui existe e está aos olhos de todos nós.Como há uma série de injustiças sociais, elas têm a possibilidade de recorrerem à nossa instituição para verem os seus direitos readquiridos, em função do que está plasmado na Constituição da República de Angola e demais leis que a sustentam. Ao longo de todos estes anos, temos estado alertar as pessoas, os sindicatos, os partidos políticos e outras instituições, quer ligadas ao Estado ou não, para a consciência jurídica.

A associação tem sido bem vista pela sociedade, mas já por uma certa franja ligada aos círculos do poder, nem tanto assim, não é verdade?
Em termos gerais, estamos a cumprir com os objectivos da organização, mas temos que admitir que já estivemos muito mais activos. Os motivos são do conhecimento público e resumem-se na falta de recursos materiais e financeiros. Nós já estivemos representados em todas as províncias do país e assistíamos, anualmente, mais de dez mil pessoas que acorriam aos nossos escritórios para resolverem diversos assuntos com o concurso dos nossos advogados.

Sente que a certa altura a associação “Mãos Livres” terá chegado a ser “amarrada” ou “sufocada” pelo poder?
“Amarrada” pelo poder, não! Penso que o que acontece com a organização é a falta de recursos e ela está atada, se quiser, por não puder cumprir integralmente os seus objectivos, embora cada um de nós continue a contribuir com o dinheiro dos próprios bolsos. Nós já ficamos cerca de três anos sem os nossos salários, mas nunca abdicamos das nossas responsabilidades face a organização.Com os nossos parcos meios fomos acudindo variadas situações para que a associação não morresse. A causa da instituição leva-nos a fazer com que deixemos as questões pessoais para nos colocarmos ao serviço da Nação. Evidentemente não se pode medir os efeitos deste nosso esforço, mas, de facto, já vivemos uma situação precária, complexa,difícil, que precisa do apoio da cidadania para que possamos ter um país justo, de Direito, enfim, um país onde se consiga respirar a paz social.

Mas o que o cidadão comum pensa é que a vossa associação sempre viveu dos apoios de algumas embaixadas estrangeiras, nomeadamente do Ocidente, e/ou instituições ligadas a elas...
Eu digo não, porquê? A Associação “Mãos livres” não recebe nenhum dólar do Ocidente. Para sua informação, a associação trabalha com instituições dos países nórdicos. O governo da Noruega, por exemplo, através da Ajuda Popular da Noruega, fazia o financiamento directo para a organização “Mãos Livres”; nunca desenvolveu projecto algum com a embaixada dos Estados Unidos da América que apontasse que tivéssemos recebido algum dinheiro dos “imperialistas”, como alguns chamam. Temos, sim, parcerias com algumas instituições norte-americanas, a exemplo de uma organização de jornalistas e advogados dos E.U.A..Aliás, temos também parceria com a embaixada deste país em Angola, mas trata-se de um apoio moral, incentivador ao nosso trabalho social. Existem outras parcerias com representações diplomáticas da Grã Bretanha, da Holanda, temos relações com a Cooperação Espanhola, enfim...Com elas, estamos a trabalhar no sentido de vermos a defesa dos direitos humanos como porta-estandarte das nossas actividades.

Vamos analisar os pontos críticos da vossa actividade. Onde é que mais vocês se batem em relação aos problemas mais graves existentes a nível da sociedade angolana?
Nós estamos focalizados nas questões dos direitos económicos, sociais e políticos. Vou tentar destrinçar este quadro: quanto aos direitos políticos, nós temos estado bastante activos quando constatamos que existe uma violação grosseira destes mesmos direitos; por exemplo no que diz respeito às manifestações, já que é um direito constitucional, em que o cidadão se revê quando acha que está indignado diante de certas situações que atropelam as normas estabelecidas legalmente. Hoje, muitos não podem fazer manifestações no nosso país, mas é permissível para outros...

Explique isso melhor; está a dizer-me que o sol não abre para todos?
Não, aqui em Angola não. Até o ar que nós respiramos parece-me que precisa de ser direcionado apenas para alguns. Até a própria chuva cria mais embaraços nos musseques, aos pobres e isso tem as suas razões e não são naturais; aos ricos não, pois são protegidos. Porém, os ricos também ficam chateados quando chove, pois as chuvas tendem a descobrir outros “pecados” de quem os protege...

Fala-se em perseguições... Confirma?
Há perseguições visíveis nesse país e não é necessário que lhe esclareça isso.Há perseguição institucional e há perseguição individual. Você repare o que estão a fazer ao Folha 8. Os indivíduos que trabalham neste semanário são tidos como “contra-revolucionários”, os das “Mãos Livres” também e os da Rádio “Despertar”, Ídem. Porquê? Porque não estão satisfeitos com o modelo de governação deste país. Eles fazem denúncias de alguns casos de corrupção, com as quais o governo não concorda e a mensagem que algumas instituições ligadas ao poder passam é que estes indivíduos “querem destruir o país”. Esquecem-se que os direitos humanos é uma questão político-social de todos. Estão para os ricos e para os pobres. Para todos. Vou lhe dar um exemplo concreto: algumas pessoas que não compreendiam o trabalho das “Mãos Livres” pensavam que estávamos a trabalhar contra o Executivo angolano. Não, nós trabalhamos para toda a sociedade. Combatemos as pessoas que estão fora da lei. Precisamos de “puxar” por estas pessoas para que de facto cumpram o que está plasmado na Lei Constitucional. Um advogado que não esteja em conflito com o governo,em Angola, não sei... acho impossível porque o governo tropeça em questões que não são de Direito. Existe o problema das demolições. Estas foram feitas de forma administrativa, mas, hoje, a Constituição,as leis, não permitem isto. Aliás, houve uma resolução que mandava parar, pois é um acto judicial. Em toda a parte do país elas continuam baseadas em actos administrativos...

Vocês acham que até aqui tiveram uma actividade meritória no caso das demolições?
Sim, nós fomos os primeiros a denunciar estes actos ilegais , começando na Boavista, no Zango, etc. Eu e o David Mendes quando decidimos advogar as pessoas que iam para o Zango, fomos presos. A polícia achou que estávamos a fazer uma luta contra o governo. Perguntámos porquê?. Na altura, cidadãos que tinham casas, escolas por perto e condições razoáveis para viver foram transferidos para uma tenda onde viviam várias famílias durante anos. Houve crianças que lá nasceram em condições sub-humanas. Tentamos defendê-los mas fomos presos. Felizmente, houve indivíduos lúcidos,que pertenciam à corporação, entenderam a situação e disseram “não, estes advogados estão a defender uma causa” e fomos libertados. Aliás, no Zango, existiam pessoas ligadas à administração pública, enfim. Mas, mesmo assim, éramos vigiados como se fóssemos “desestabilizadores”, como até hoje somos considerados em alguns meios.

Valeu a pena?
Sim,valeu. Graças à pressão e às denúncias feitas na altura, hoje o Zango tem água e luz eléctrica. Ali existiam outras questões ligadas às violações dos direitos da mulher, da criança, ao alto nível de criminalidade, etc...

Em algum momento os membros da direcção das “Mãos Livres” desejaram entabular conversações com as instituições do governo, no sentido de se acautelar certas situações desagradáveis para ambos os lados?
Angola é um país “sui generis”. Algumas pessoas lúcidas, que conhecem os seus problemas, nomeadamente dirigentes, chamam-nos para dialogar, mas não é um contacto institucional, é particular, pessoal. Tínhamos uma boa parceria com o antigo Procurador Geral da República. Falávamos, participávamos em alguns actos organizados pela PGR, éramos recebidos por membros da Nona Comissão da Assembleia Nacional, inclusive convidávamos o próprio Procurador para participar em algumas palestras sobre o sistema de justiça do país, enfim, tínhamos uma relação excelente com os indivíduos. Não com as instituições.Nós temos boas relações com o Comandante Geral da Polícia Nacional, Senhor Ambrósio de Lemos, que é uma pessoa muito sensível, atenta às questões dos direitos humanos. Temos sido convidados para participar em acções de formação junto dos presos e dos agentes da Polícia Nacional. Não é uma relação institucional.Todas aquelas pessoas com quem mantivemos uma boa relação pessoal, depois de deixarem de exercer a sua actividade, estes laços rompem-se de imediato. Outro exemplo; nós também temos relações com os comandantes das esquadras. Quando um cidadão apresenta queixa e que de facto eles acham que há necessidade de ser assistido por um advogado, são eles os primeiros a aconselharem para que venham ter connosco.

Acredita que essa relação possa evoluir para um estádio institucional ou continua a ver os “fantasmas” do passado?
Não,não evoluiu. Acho que falta a voz do “chefe”, o Mais Alto Mandário da Nação, o Presidente da República.Falta a voz do “chefe” para dizer “ meus senhores, vamos partir para este ponto”. Não há diálogo entre as entidades governamentais e as organizações da sociedade civil.Tanto mais que se instituiu duas organizações, uma que é “organizada”- aquela que distribui fuba, peixe seco, arroz etc, às populações; essa mesma que vai buscar dinheiros públicos para dar às pessoas,e, outra que somos nós, a chamada “desorganizada” que defende os direitos humanos,mas que não tem direito a nada, não pode dialogar com a dita organização e é tida como “ contra-revolucionária”. Muitas vezes disseram-nos que fomos vendidos ao “imperialismo” e confundidos com “partidos políticos”...Essas pessoas deviam aproximar-se das associações e conhecerem o trabalho que exactamente fazem para tirarem uma conclusão real, lógica.

Sabe-se que no quadro de “ene” acções que a vossa associação desenvolve, têm em pauta visitas aos estabelecimentos prisionais.Qual é o ponto da situação real nas cadeias, nomeadamente as de Luanda?
Péssima! As cadeias não têm condições nenhumas. As pessoas são maltratadas e humilhadas. A população prisional vive pior que os animais. Não tem água corrente, não tem medicamentos... Os presos não têm possibilidades de contactar os seus familiares, enfim, não têm uma alimentação condigna. Uma questão que quero levantar. Felizmente, hoje, estamos a tentar obter o controlo do excesso de prisões preventivas. Isso é fundamental. É necessário que os serviços prisionais realizem o seu trabalho, porque estes têm recebido orientações dos seus chefes, sobretudo os ligados ao Ministério do Interior. Eles estão preocupados com essa situação, mas não podemos estar aqui a fingir que as coisas actualmente estão melhores. É mentira. Há situações muito difíceis. Mulheres são violadas em muitas cadeias por funcionários prisionais, há adolescentes presos junto de criminosos, junto dos adultos.Há violações de presos efectuadas por outros; as cadeias estão abarrotadas de presos.

A vossa associação tem feito denúncias sobre estes factos?
Sim, nós já fizemos.Já escrevemos para algumas instituições.Lembro-me da denúncia de casos em que as mulheres eram “revistadas” a partir das partes mais íntimas por homens para saberem se estavam a levar alguma coisa. Nós denunciamos e felizmente a instituição que levou estes casos às entidades competentes foi o Ministério da Família e Promoção da Mulher, que confirmou este facto.Há também a questão da tortura nas cadeias e para a felicidade de todos o Ministério do Interior está mais atento a esta situação.Nós estamos satisfeitos e regozijamo-nos pelas medidas que o MININT tomou com os responsáveis a nível de Luanda,mas elas devem ser exercidas a nível de todo o país para servir de exemplo. Foi um passo muito importante e nós louvamos o Ministério do Interior. Existem outras questões ligadas aos funcionários da Direcção Nacional de Investigação Criminal, (DNIC). Em alguns pontos de actuação posso dizer que não são profissionais. Porquê?Utilizam métodos que não são correctos; métodos que a nossa Constituição considera ilegais.

Falemos sobre o sistema judicial, no qual sustentam a vossa acção social...
(...) Nós vamos continuar a fazer denúncias, nomeadamente as que dizem respeito aos actos de corrupção que está a atingir vários patamares.Espero que não atinja o sistema de justiça. Embora haja indícios que isto possa estar a acontecer, eu ainda tenho confiança no nosso sistema...

Tanto mais que vocês interpuseram uma queixa-crime contra algumas figuras públicas, supostamente por enriquecimento ilícito...
Sim .Aliás, as pessoas que estarão envolvidas neste processo sabem.Remetemos uma queixa-crime contra algumas figuras públicas.

Portanto, são pessoas ligadas ao poder, nomeadamente ao Presidente da República?
Sobretudo as que estão ligadas à “casta” presidencial... Nós fizemos uma queixa-crime, uma denúncia pública. Este processo, achamos que deverá andar. Inteligentemente nós pensamos que a queixa-crime devia ser feita em simultâneo.Uma cá e outra no estrangeiro, nomeadamente à Procuradoria Geral da República e a um Tribunal de Geneve (Suíça). Nós procedemos assim porque há envolvimento de figuras estrangeiras neste processo de corrupção, de roubo, de saque do dinheiro angolano. Em Angola, para que os órgãos judiciais tomem conta da situação. Portanto, notificar as pessoas para responder aos crimes que eventualmente tenham cometido e terem, também elas, o direito de defender-se, dizendo que não o cometeram, caso consigam provar.Caso não provarem, a PGR tem a obrigação de mover um processo-crime contra elas.No estrangeiro, as pessoas envolvidas neste processo, também serão ouvidas e eventualmente responsabilizadas no país para onde remetemos a queixa-crime.

Há alguma reacção a nível interno que tenha dado sinais de que a “coisa” está a “andar”?
Nós não estamos preocupados que a coisa esteja a andar...Nós estamos a testar os nossos órgãos. Estamos a ver até que ponto a própria Procuradoria Geral da República chega e nos diga: “meus senhores, vocês da Associação “Mãos Livres” mentiram!. Em função do processo que remeteram ao tribunal, não encontrámos provas nenhumas”. Mas desde a data em que nós apresentamos queixa, até hoje há um silêncio, quer das pessoas visadas, como do próprio Chefe de Estado, Sua Excelência o Presidente da República, o cidadão José Eduardo dos Santos. Para não dizer que ele não tomou conhecimento, enviámos uma carta à Casa Civil para levar este dossier ao Presidente da República (...)