Luanda - O Club-K publica na íntegra a entrevista que Domingos da Cruz concedeu ao portal brasileiro “Por Dentro da África”. No essencial, a entrevista aborda sobre Direitos Humanos em África, a liberdade de imprensa e desemboca também no julgamento contra o entrevistado, adiado para dia 19 de Julho e que terá lugar no Tribunal Provincial de Luanda.

 

Fonte: Por Dentro da África

Natalia da Luz - Podemos observar mudanças nos últimos anos dentro da África no quesito liberdade de imprensa?
Domingos da Cruz - Cara Jornalista, à título prévio gostaria dizê-la que a pergunta parece estar enraizada numa leitura de uma África uniforme, um mundo completamente similar. Não posso deixar de dizer que a África é bastante diversa na cultura, na economia, na ecologia, na religião, no desporto, na geografia etc. Pelo que, ao perguntar sobre progressos no que a liberdade de imprensa diz respeito, no continente, não posso deixar de admitir que parece-me impossível falar de África, mas partes dela sim. Como deve calcular, não tenho capacidade para pronunciar-me do 3º maior continente com 54 países e com um número superior de nações.
De uma forma geral, existem muitos progressos sem precedentes em África nos últimos 15 anos. Tais avanços positivos também acontecem no quadro da liberdade de expressão e de imprensa, mas não quero dizer que estamos completamente bem.
Segundo o ranking mundial da liberdade impressa de 2012 inúmeros países do continente foram colocados numa posição favorável a democracia e ao exercício do jornalismo: Cabo Verde, 9ª posição; Namíbia , 21ª; Mali, 25ª; Níger, 29ª; Tanzânia, 34ª; África do Sul – 42ª.
Por sua vez, a Freedom House, classificou 11 países africanos como sendo livres, nos seus últimos rankings mundiais sobre a liberdade de imprensa: Benim; Botswana, Cabo Verde, Ghana, Lesotho, Ilhas Maurícias, Namíbia, São Tomé, Senegal, Serra Leoa, África do Sul, fazem parte das diferentes sub-regiões do continente com excepção da África branca, também conhecida como África do Norte que nos últimos anos está a ser outro motivo de orgulho para o continente porque mostrou o poder da cidadania activa, da sociedade civil para derrubar regimes autoritários.
Desde 2012, a democracia Cabo-Verdiana ultrapassou a democracia portuguesa. Tal posição lhe confere estatuto entre as democracias perfeitas do mundo tal como de outro país Africano, as Ilhas Maurícias. 
Paralelamente aos sinais encorajadores tem ainda outros assustadores. Ao revisitar os arquivos de organizações internacionais para a defesa da liberdade de imprensa, sediadas em África, pode-se saber que no período que vai desde 1990-2013, Angola e a RDC, são os dois países da região Austral de África que mataram 6 jornalistas respectivamente, perfazendo um total de 12. 


Na lei, houve muitos avanços, mas na prática ainda há muito o que ser feito... A África do Sul e Eritréia estariam em pólos opostos em relação à liberdade de expressão / imprensa?
Efectivamente há muitos avanços no plano formal, mas há igualmente avanços na materialização da liberdade de expressão e de imprensa. Só que os avanços legais são mais rápidos que os materiais.
Quando olhamos para o passado do sistema africano de protecção e defesa dos Direitos Humanos em matéria de liberdade de imprensa temos a Carta africana dos Direitos dos Homens e dos povos que no seu artigo 9º defende a liberdade de imprensa e de expressão; em 1991 nasce em África a Declaração de Windhoek sobre uma mídia independe no continente e posteriormente somaram-se outros instrumentos, tendo chegado àquilo que chamo de ponto alto no plano legal com a institucionalização de um relator para monitorar a liberdade de imprensa em África, afecto a União Africana e que tem como marco orientador todos os documentos anteriores mas sem esquecer a Declaração sobre a liberdade de expressão em África (2002).  Importa frisar que inúmeros documentos gerais de Direitos Humanos em África defendem a liberdade de Imprensa.
Quando observamos no âmbito interno dos países que compõem o continente verifica-se igualmente avanços em matéria legal e material, mas não posso deixar de admitir que os avanços jurídicos estão mais longe se comparado com aplicação real.
A diversidade do continente manifesta-se também na liberdade de imprensa. Enquanto países como Namíbia, Cabo-Verde e São Tome encontram-se no nível de países como Canadá e EUA no âmbito da liberdade de Imprensa, temos noutro extremo países autoritários como Angola, Eritreia ou Swazilândia.
Finalmente, direi que o membro do polo oposto com Eritreia não é África do Sul, mas sim Cabo Verde que alterna esta posição de liderança na liberdade de Imprensa em África com a Namíbia. Mas a África do Sul, embora não seja líder no continente, tem igualmente boa posição no ranking de várias organizações internacionais, que lhe conferem prestígio. A vantagem deste país é que ele é a maior economia do continente, tem grandes autoridade éticas e religiosas como Mandela e Desmond Tutu, lidera na ciência, na literatura, na cultura, na tecnologia e pensa-se que está no topo em tudo, mas não! Temos outros modelos positivos no continente que a mídia capitalista não vê porque tem  na tragédia e no sofrimento a fonte para enriquecimento. 


Na África do Sul há muitos casos de denúncia em jornais, charges e até campanhas de activistas e jornalistas contra os governantes e o ANC. O país poderia ser considerado um exemplo?
Se entendermos o exemplo a seguir como algo que atinge grau de perfeição, então a África do Sul não seria um modelo a seguir. Neste caso diríamos que os países exemplos em África são a Namíbia e  Cabo-Verde. O nível de liberdade de imprensa na Namíbia é tão bom que  a sociedade civil na Região Austral tem aquele país como palco constante para formação, discussão e aprofundamento da temática para região e para África.


Em sua opinião, quais foram os maiores abusos/abusadores registrados até hoje dentro da África? Ditadores como Amin, Taylor e Gaddafi foram grandes ameaças?
Penso que são inúmeros, mas teria dificuldades de apresentá-los de uma forma piramidal ou numa escala do maior e do menor porque entendo que todo abuso à dignidade humana não é mensurável, com excepções, por razões do âmbito jurídico e académico. A dignidade humana é uma questão metafísica e não físico-químico-matemática. Como seria capaz de dizer que Eduardo dos Santos é o maior delinquente ou não se comparado com  Theodor Obiang, se tanto um quanto outro promovem  a negação da vida em massa, mesmo que com métodos assimétricos em algumas circunstâncias?
À luz da teoria do Direito Penal Internacional podemos dizer que todos esses são criminosos contra humanidade.
Sinteticamente a minha fraca capacidade rememora factos trágicos e seus perpetradores como: colonização/ocidente, escravidão/homem branco ocidental, assassinatos protagonizados por quase todo continente na era colonial pelo homem branco, apartheid da África do Sul, mutilação genital em várias partes de África. Mais recentemente podemos identificar outros delinquentes que protagonizaram assassinatos em massa nos seus países como Joseph Kony, Bosco Ntanganda,   Hissène Habré entre outros que matam com a falta de políticas públicas que garantam uma vida com dignidade.

   
Especificamente em Angola, a liberdade de imprensa foi ampliada com a Constituição de 2010? Até onde os jornais denunciam e investigam o governo? Que tipo de crítica é permitida? A Constituição de 2010 não trouxe mudanças nenhumas nesta matéria. Ela retomou o que estabelecia a constituição anterior. Quanto ao exercício jornalístico, existe controlo absoluto do poder em 98% dos órgãos de comunicação. Todos esses servem o autoritarismo. Sinteticamente podemos afirmar que há o controlo de conteúdo e o controlo tecnológico onde inclui papel e gráficas. O país tem somente uma rádio (Despertar) e um jornal (Folha 8) que escapam do controlo propiciador do terrorismo mediático do Estado máfia. Basta conferir os relatórios internacionais sobre a matéria e verá onde Angola está.  As críticas não são permitidas, são aturadas até onde o poder achar que deve usar a sua violência ditatorial traduzida em assassinatos, ameaças, processos político-judiciais, prisões arbitrárias e cooptação. O jornalista e órgãos capazes de criticar o poder hoje, ficam para história e classificados como heróis vivos pelo grau de arbitrariedade dos agentes do mal. 
 

Quais são as organizações que estão do lado da imprensa?
Neste momento Angola conta com um sindicato de jornalista e o MISA-Angola. Por outro lado, assiste-se nos últimos anos a união entre as várias organizações da sociedade civil e os jornalistas independentes com estratégia de defesa comum. Mas o grande protector dos jornalistas em Angola é o povo que reage contra o poder autoritário quando profissionais são perseguidos, sobretudo na capital, Luanda. 

 

No seu caso, você foi ameaçado, perseguido? Desde quando você convive nesse cenário? Desde 2009 quando o livro foi publicado?
Sou ameaçado e perseguido desde 2008. Após a publicação do meu primeiro livro “Para onde vai Angola: A selvageria apocalíptica onde toda perversidade é real”. Fui despedido como professor pelo poder político instituído. De lá para cá tal cenário não pára. Tem simplesmente períodos de tréguas forçadas que obedecem a estratégias políticas do regime.  Normalmente o grupo hegemónico tem não só nas minha obras como fonte para fortalecer a sua cólera irracional, mas também no meu trabalho como jornalista, activista cívico e docente progressista, da esquerda e herdeiro de uma pedagogia crítica-revolucionária. 
 

Qual trecho do livro você acha que motivou a repressão dos políticos? O segundo? O último sobre as expectativas e futuro de Angola?
Sinceramente não sei que trecho concretamente gerou tal violência e demonstração de retrocesso civilizacional. Mas pelo que sei sobre este grupo de delinquentes sob a capa de governantes, eles temem todo tipo de ideias autênticas. São absolutamente alérgicos ao pensamento, a cultura, a ciência, a racionalidade, a crítica radical, a deliberação público, ao esclarecimento. Porém, as suas atitudes de censura são manifestações de coerência com a natureza do regime.
Para mim, com tal grupo que detém o poder, Angola continuará um país atrasado, de idiotas, sem bens sociais mínimos para viver, alto índice de corrupção, em definitiva um país que envergonha os seus filhos que pautam por uma vida ética, e parece que são a minoria!
A solução passa por dois planos: milagre (no caso de Deus existir) ou as pessoas traduzam a filosofia dos “três erres” em activismo que dá poder à rua e transforma as favelas do país em musseques e cidades rebeldes com movimento  análogo ao do Egipto, Tunísia, Líbia etc.  Para esclarecer, o primeiro R é o direito à Raiva diante do mal, o segundo R é o direito à  Revolta diante do mal estrutural e persistente e o terceiro R é o direito à Revolução diante  do mal interminável por vontade do grupo hegemónico. Uma vez que o combate do mal pressupõe o desmoronamento de tal quadrilha, tal grupo nunca fará. Finalmente diríamos que a Revolução é a soma da Raiva e da Revolta que se traduz em exercício da cidadania no momento em que o proprietário do poder chama novamente a si o poder que por fraude ou por engano delegou à máfia sob capa de governantes.  
 

Quais foram as maiores críticas ao trabalho e por quê? A igreja proibiu a circulação do livro porque você se referiu à instituição como corrupta? Li uma crítica do Frei Nzambi de 2011 e gostaria de saber como está a relação hoje...
A reacção da sociedade foi boa. O Novo Jornal tem uma página que publica os livros mais vendidos e várias vezes o meu livro saiu entre os mais comprados. Tem sido usado em sala de aulas por professores e estudantes. Alguns críticos mais sérios dirigem para mim leituras académicas no sentido de melhorar nas próximas publicações. Apesar de ter já três livros e outro tipo de publicações, sinto-me insignificante no contexto da produção de ideias.
As razões da proibição são políticas mas também pela crítica radical e profética que deixou à nú a relação de subserviência da igreja com  o poder político que se traduz num apoio claro da instituição eclesial ao regime opressor em troca de bens financeiros e materiais.
A minha relação com a igreja é de desprezo porque entendo que é uma instituição degradada e degradante no plano moral.
O poder político em Angola controla todas as esferas da sociedade e a Igreja faz parte destes componentes reféns, pelo que a muito que ela perdeu o norte. Não por acaso que tem pastores e padres que prestam trabalho para os serviços secretos.
Não posso deixar de referir que o grau de degradação ética da Igreja é mais visível na hierarquia, mas também tem grupos de padres, pastores e diáconos que prestam serviço evidente ou não na condição de lambe-botas. 


Como é ser julgado por desobediência? Há outros casos como esse em Angola e na África?
DC- De acordo com o ordenamento jurídico angolano. No caso de o acusado não comparecer em tribunal inúmeras vezes é novamente acusado pelo crime de desobediência. No caso de Angola existem casos deste tipo, não envolvendo somente jornalistas mas outros cidadãos.
Quanto a mim, mais tarde ficou esclarecido que houve uma informação falsa prestada pelo oficial de diligência do tribunal. Não há qualquer acusação pelo crime de desobediência, mas sim prevalece a acusação anterior que é crime de incitação a violência colectiva contra as autoridades.
Uma vez que Angola é quase um romance ficcional no plano político, jurídico  e noutras esferas. A acusação que pesa sobre mim à luz da racionalidade jurídica não há crime nenhum porque acusam-me com base na Lei 7/78, antiga lei dos Crimes Contra Segurança do Estado. Uma lei já revogada em 2010. Pelo que só num regime autoritário, tal idiotice pode suceder. Não tenho nada a responder. A acusação é política e não jurídico-criminal.
Vamos partir da hipótese de que eu tivesse cometido algum excesso no exercício da minha profissão como jornalista ou como cidadão no uso do meu direito absoluto à expressão. Seguramente que deveria ser responsabilizado no quadro da lei de imprensa e não noutra. Quando a ridicularidade chega ao ponto máximo é sinal que tal protagonista terá uma tragédia catastrofista. Talvez o fim desta era se aproxima!
 

Quais são as implicações desse julgamento?
Quanto as implicações, não faço a mínima ideia. Tudo em Angola pode acontecer porque estamos todos a mercê do poder do ditador e seus yesmenistas. Mas parece que podemos pensar no aprofundamento de uma imagem caricatural do regime, tanto interna quanto externamente…