Cabo- Verde - O escritor, advogado, professor universitário e político esteve à conversa com Cabo Verde Directo. Durante quase 40 anos militante do MPLA, em nome da liberdade do seu povo “Michel” rompeu com o partido e é hoje um dos dirigentes da emergente CASA-CE

 Fonte: Caboverdedirecto.com

O seu nome é uma referência da política angolana, sua integridade um exemplo e a sua honestidade intelectual uma garantia de confiança. Miguel Francisco (“Michel”) foi ao “inferno” e voltou quando em 27 de maio de 1977 foi detido e acusado de estar envolvido numa tentativa de golpe de Estado. Passou três anos de sua vida na cadeia do Moxico e da experiência nasceu “Nuvem Negra”, um livro que retrata os sangrentos acontecimentos e que foi já best-seller em Angola e Portugal.

 

Rompendo com o partido ao fim de 38 anos, “Michel” milita agora e é dirigente da emergente Convergência Ampla de Salvação de Angola – Coligação Eleitoral (CASA-CE), uma nova organização política liderada por Abel Chivukuvucu e que, segundo observadores, poderá vir a ser alternativa ao poder esclerosado que governa o país desde a independência e que transformou o aparelho de Estado e a Economia em coutada privada da família de José Eduardo dos Santos e a nomenklatura do MPLA numa quadrilha de assaltantes à esperança.

 

Cabo Verde Directo - A grande prova de fogo da sua vida foi a prisão, durante três anos, na decorrência dos trágicos acontecimentos de 27 de Maio de 1977, naquilo que foi conhecido como o “golpe Nito Alves”, mas que se sabe ter sido uma purga interna do MPLA para afastar “militantes incómodos”. Como é que o envolveram nisso?

  Miguel Francisco - Parte da resposta já está dada na pergunta, cumpre apenas acrescentar que, fui envolvido nisso, tal como as centenas, se não mesmo milhares de jovens como eu que, naquela altura, abraçaram os ideais da liberdade e da dignidade de um povo subtraídas durante séculos de colonialismo. Como consequência disso, alistei-me nas fileiras do MPLA no dia 16 de Novembro de 1974, oito dias depois da entrada da primeira delegação do MPLA em Luanda, encabeçada por Lúcio Lara, depois de ter estado exilado no exterior do país durante cerca de 14 anos, no Congo Brazzaville. Por “azar” fui levado para a 1ª Região Politica e Militar onde exactamente pertenciam os principais dirigentes da chamada ala “nitista”, com destaque para o próprio Nito Alves, por sinal o primeiro dirigente que conheci naquela região e com quem tivemos o primeiro contacto e só depois conhecei outros dirigentes como, por exemplo, Bakaloff e o Sianuck, todos assassinados depois dos acontecimentos de 27 de Maio. Foi portanto por ter pertencido àquela Região e conhecido pessoalmente Nito Alves e Bakaloff e com eles ter aprendido o que sou hoje em termos de formação política (por isso continuo fiel às suas ideias), saber distinguir o líder da instituição, que fui envolvido naquele processo, pelo simples facto de ter aderido as ideias defendidas por Nito Alves na altura, e que resvalaram na tragédia resultante dos acontecimentos de 27 de Maio a si debitados.

 

Aquele processo faz lembrar as purgas organizadas pelos “czares vermelhos”, na Rússia dos sovietes, que em pouco tempo afastaram a esmagadora maioria dos líderes que fizeram a Revolução de Outubro de 1917. As revoluções devoram sempre os seus mais devotados filhos?

 Claramente. Mas é preciso ir-se um pouco mais a fundo da questão, quando se analisa a questão do 27 de Maio. É que, contrariamente do que se passou na revolução russa, que a questão era marcadamente de natureza ideológica, e por isso aqui mesmo no meu país muitos analistas tentam comparar (erradamente) o problema do 27 de Maio com as purgas ocorridas noutras revoluções de matriz marxista, vendo a questão como pela meramente ideológica, entendo que o que esteve na base do massacre de 27 de Maio é muito mais profundo, tenho insistido nisso. Entendo, salvo opinião deferente, que a tragédia tem a ver com um problema político muito mais profundo, de um grupo de angolanos perfeitamente identificável que escudou-se na figura do Presidente Neto para gizar um plano completamente diferente do que os estatutos do Movimento consagravam. Talvez por isso a actual Direcção do MPLA experimente sérias dificuldades de aceitar discutir este assunto em público.

   

Apesar do que passou, anos mais tarde o Miguel Francisco volta a incorporar o MPLA. Na altura ainda não se tinha apercebido da verdadeira natureza desse partido?

  Permita-me que discorde da vossa opinião. O que me levou a sair do MPLA não é a natureza do MPLA cuja natureza deste partido continua a mesma consagrada nos seus estatutos e apenas com alterações neles introduzidas por força da nova conjuntura política, mas sim a forma como este partido tem sido dirigido, cuja agenda visa concretizar os desígnios de um grupo de indivíduos liderados pelo Presidente do Partido e da República. Como disse na resposta anterior, aprendi a distinguir o líder de uma formação política com o partido, e quando apercebi-me que o líder está a pautar-se por uma conduta que não vai de encontro com o que os estatutos do partido consagram, com os valores que defendo, não tenho outra alternativa que seja sair, depois de analisar que a luta dentro do partido para mudar a situação era quase impossível.

   

E como se inicia o seu processo de afastamento definitivo e de integração na CASA-CE? Foi doloroso esse processo de clarificação ideológica?

Entendo não ter havido, de minha parte, qualquer processo de clarificação ideológica. Como disse na resposta anterior, o que está em causa não é o partido enquanto instituição, mas sim a forma como o líder está a conduzir àquele partido. Por mais que os dirigentes que apoiam o Presidente daquele partido lhes custe aceitar, o MPLA está hoje completamente desgastado, não só por estar muitos anos no poder, o que certamente desgasta, mas a forma como o líder tem sido dirigido e, consequentemente o País, onde é claramente visível o enriquecimento de uma minoria que, por sinal, são os próprios governantes e suas famílias, fundamentalmente a família do Presidente, “podres de dinheiro”, em detrimento da maioria, que muitos vivem com menos de dois dólares por dia. Ides a Angola e depois tirarão as vossas próprias ilações. Por isso, foi doloroso é ter que abandonar um partido em que acreditei e dei toda a minha juventude durante cerca de 38 anos e ter que o largar, pois como disse, cheguei a conclusão que a forma como o líder “amarrou” o partido, era quase impossível alterar o curso dos acontecimento. Por isso decidi sair, atendendo a minha idade e o tempo que ainda me resta para dar o meu contributo para este povo que de que faço parte. Sou um homem de valores.

   

Tem muitos custos pessoais e políticos ser oposição a José Eduardo dos Santos?

Não estou minimamente preocupado com os riscos de sobrevivência nem física nem mesmo material. Um indivíduo que defende valores não pode preocupar-se com os riscos que corre. Foi o que fez o próprio Nito Alves e mais dirigentes que abraçaram a sua causa. Ele sabia, tal como os seus algozes o fizeram, que haveria de morrer, mas ele acreditava no que defendia, independentemente dos riscos que corria. Outra coisa que julgo não ser digno de um político que se preze, é fazer da política umeio para atingir fins de ordem material como se assiste no meu país, onde alguns (atenção, alguns, nem todos. Há no MPLA muitos bons patriotas) dirigentes do MPLA com o líder a cabeça, serviram-se do partido e, por essa via, dos cargos públicos que ocupam para enriquecerem-se ilicitamente. Com todos os defeitos que carrego enquanto ser humano, confesso que não estou na política para atingir fins de ordem material. As benesses de ordem material para mim não são um fim em si mesmo, mas apenas uma possibilidade, depois de ver realizado o desiderato que persigo, que é o de devolver a dignidade material e moral deste povo.

   

Nas eleições do passado ano, marcadas por indícios fortes e mesmo provas de fraude eleitoral, o seu partido afirmou-se como a terceira força política angolana, e uma sondagem recente, divulgada pelo site “Clube K”, a CASA-CE era mesmo apresentada como líder das preferências eleitorais dos angolanos. Está a começar a surgir uma nova era política em Angola?

  Boa parte da resposta já está dada na pergunta. O que devo acrescentar é apenas para dizer que antes do surgimento da CASA-CE, a política estava num estado de letargia visível, onde o regime vivia tranquilo, sem qualquer perturbação. Com o surgimento da CASA-CE, o regime sentiu-se seriamente ameaçado, daí que refinou, e de que maneira, os métodos fraudulentos para descaradamente alcançar a cifra de dois terços dos resultados eleitorais que lhe permitiriam governar a seu belo prazer, com o simples propósito de controlar os recursos económicos do País. Do exposto, é inegável que a CASA veio insuflar oxigénio puro no panorama político angolano, obrigando o regime a redobrar esforços e até mesmo a vincular-se a lei, que quase sempre desrespeitou. Daqui pode-se inferir a importância política que a CASA-CE representa no mosaico político nacional. Está de facto a surgir uma nova era política em Angola com o surgimento da CASA que é tem como desiderato devolver a dignidade aos angolanos, dando a cada um oportunidades iguais sem qualquer discriminação, o que não acontece no meu país.

   

Como vê a evolução política do país, com um regime sustentado pela hipocrisia internacional onde o negócio prevalece sobre os princípios?

Não sou especialista em relações internacionais, mas deve ser do conhecimento de qualquer político que se preze, que nas relações entre Estados, não há amigos mas apenas interesses. Mas ainda assim, entendo que apesar dos interesses económicos prevalecerem sobre os interesses dos povos, por força da conjuntura política influenciada pelo próprio Ocidente, tarde ou cedo a mudança em Angola ocorrerá. Hoje também já são visíveis sinais de saturação mesmo dentro da estrutura do próprio regime. Mas para que isso aconteça, as forças políticas devem desempenhar o seu papel. É nesta perspectiva que a CASA-CE tem desenvolvido uma forte actividade diplomática com vista a esclarecer a opinião pública internacional o que realmente se passa no País, e persuadi-la no sentido de pressionar o regime a pautar a sua conduta de acordo com os ditames de um Estado Democrático de Direito, respeitando as leis, e permitir que, doravante, os processos eleitorais seja livres e transparentes e não fraudulentos, como tem acontecido, assim como aceitar que se institucionalize o processo de Descentralização Política e Administrativa constitucionalmente consagrado e que por manifesta falta de vontade política, o regime usa uma série de subterfúgios para retardar ao máximo a realização de Eleições Autárquicas, que deviam realizar-se em 2014