Cabo Verde - O Procurador Geral da República de Angola recusa-se a aceitar a ideia de que o país seja um Estado corrupto, e alega que, se há corrupção é porque há corruptores, que no seu entender vêm de fora, tanto mais que se trata de uma prática imposta pelo Ocidente, na sua procura desenfreada pelas matérias primas existentes em África.

 

*Orlando Rodrigues
Fonte: O País.net
À margem da sua participação na oitava Conferência Anual dos Procuradores Gerais da República do continente, que teve lugar em Cabo Verde, João Maria de Sousa concedeu uma grande entrevista ao nosso correspondente na cidade da Praia, em que faz o ponto da situação da justiça Angola, nomeadamente no que se refere à super-lotação das prisões e aos casos de excesso de prisão preventiva, garante que a detenção do jovem Nito Alves está perfeitamente legalizada, explica que não há delitos políticos em Angola mas, sim crimes de injúria e difamação e contra a segurança do Estado, e promete que não fará a cidadãos portugueses o que acusa o Ministério Público daquele país de fazer em relação a angolanos, porque se recusa a “pagar um mal com outro mal”.

Qual é, actualmente, o estado da justiça angolana?

Não posso começar esta entrevista sem lhe dizer em primeiro lugar que tudo quanto de positivo acontece em Angola, nomeadamente no sector da justiça e no domínio judicial, tem a ver, de certo modo, com a direcção política esclarecida do presidente José Eduardo dos Santos, que tem sabido indicar o caminho certo para as realizações que visam o desenvolvimento e o bem-estar da população angolana.

Por outro lado, esse desenvolvimento e bem-estar têm que passar, necessariamente, por aquilo a que se chama justiça social, no sentido de se produzir mais para melhor se distribuir depois.

De qualquer modo, no que diz respeito à legalidade em Angola, têm sido produzidas leis tendentes a acompanhar o próprio desenvolvimento do país e tem-se procurado, no âmbito daquilo que são as preocupações de todos relativamente à criminalidade organizada, e em linha com o que se passa em África e no mundo, o meu país também está empenhado em dar uma contribuição válida à altura do que dele se espera.

Nessa linha, o Presidente da República assinou recentemente um despacho a criar uma comissão multissectorial para a realização de um estudo aturado da situação e a apresentação de propostas concretas de criação de mecanismos que conduzam à implementação imediata das convenção internacionais contra o branqueamento de capitais e a corrupção.

Este grupo de trabalho, de que a Procuradoria-Geral da República também faz parte, está a fazer o seu trabalho. Tem um prazo curto para apresentar propostas e pensamos que os resultados irão no sentido de o Governo e a própria Assembleia Nacional virem a aprovar novas e modernas normas e os regulamentos necessários à implementação de leis que já existe.

    'A CORRUPÇÃO NOS FOI IMPOSTA PELAS CULTURAS OCIDENTAIS'

Há vozes na comunidade internacional e mesmo dentro do país que apontam Angola como um dos Estados mais corruptos de África. Como PGR e na qualidade de guardião da legalidade, aceita esse epíteto que se coloca a Angola?
Não posso aceitar, de modo nenhum, que se olhe para Angola como um dos países mais corruptos de África, até porque a corrupção é um fenómeno global que existe em todos os países do mundo, até nos mais desenvolvidos. Aliás, costumo dizer que a corrupção não é um fenómeno criado pelos africanos, mas algo que nos foi imposto pelas culturas ocidentais nas suas relações comerciais com África, na medida em que, no nosso continente, o sistema de comércio tradicional era à base de trocas e não propiciava a corrupção, o que hoje constitui regra nos negócios, tanto entre Estados como entre privados.

E foi justamente a constante procura desenfreada das matérias-primas existentes em África que deu origem à corrupção, que só existe onde também há corruptores. E quem são esses corruptores?
Está a querer dizer que, se há corrupção em Angola, é promovida por alguém de fora…

Com certeza. Mas é um fenómeno que, independentemente das suas origens ou dos seus protagonistas, tem que ser firmemente combatido, e clama por uma cooperação efectiva entre todos os Estados preocupados com a situação, o que exige uma série de programas que possam disponibilizarnos os mecanismos necessários a uma luta conjunta realmente eficaz.

Julgo que o caminho a seguir é o de prevenir futuros actos de corrupção uma vez que não se trata de uma prática com que se possa acabar de um momento para o outro, mas é possível prevenir, com a implementação de programas de médio e longo prazos.

A sua ideia é acabar com a corrupção através da pedagogia em vez de, essencialmente, pela repressão…
Sim, tendo em vista uma verdadeira mudança de mentalidades, mas para isso tem de haver um engajamento sério de todos os Estados interessados, de todos os países que sofrem com esse fenómeno. São crimes que, em regra, têm ramificações internacionais, os corruptores vêm, em geral, de fora e, por isso, há todo o interesse no estabelecimento de uma rede de colaboração internacional para dar combate a essas práticas.

O empenho de um país no combate à corrupção é avaliado através dos meios que Estado coloca à disposição da máquina judicial para esse fim. Em que medida é que Angola investe na luta contra esses fenómenos?
Angola tem dado, nos últimos tempos, uma forte atenção à melhoria do funcionamento da sua máquina judicial. Em tempos que já lá vão, podia-se olhar para a justiça como um parente pobre, mas a situação mudou radicalmente nos últimos anos. Os orçamentos, de ano para ano, têm vindo a sofrer aumentos substanciais, se calhar não ainda na medida em que seria desejável, mas mesmo assim com efeitos muito positivos na resposta que estamos a dar à criminalidade, tanto em termos de repressão como na óptica da prevenção.

'A SUPERLOTAÇÃO DAS CADEIAS NÃO É UM PROBLEMA DE VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS'

Falou atrás do quadro legislativo que está em constante melhoria em Angola, mas uma coisa é a lei e outra, bem diferente, é a administração da justiça.
Existem no país muitas disfunções, como a superlotação das cadeias e a violação dos prazos das prisões preventivas, duas situações apontadas como um dos principais factores de desrespeito pelos direitos humanos no país.

O que é que está a ser feito para inverter a situação?
Com certeza que, nessas duas dimensões que citou, não temos um cenário cor-de-rosa, mas deve compreender o seguinte: Angola, devido à sua localização geográfica, tem uma série de países vizinhos e as fronteiras são bastante vulneráveis, e isso tem contribuído, de algum modo, para o aumento exponencial da criminalidade e, consequentemente, da população prisional.

Somos um país com grandes riquezas em minérios, nomeadamente diamantes, e isso atrai muita gente de fora. São pessoas que, violando as regras migratórias e de entrada num país estrangeiro, conseguem chegar às zonas de exploração diamantífera, onde cometem uma série de crimes que envolvem, não só, esses estrangeiros, mas também cidadãos nacionais.

Ora, as nossas cadeias não estavam preparadas para albergar um número tão grande de detentos, daí as situações de superlotação que enfrentamos nos nossos estabelecimentos prisionais. É claro que essa não é a única razão, mas contribui grandemente para o actual estado de coisas.

Por outro lado, temos uma Lei de Prisão Preventiva em Instrução Preparatória que estabelece as regras para a detenção dos arguidos até à fase da sua apresentação a julgamento, e não podemos negar que as nossas prisões têm sentido, também, os efeitos da aplicação dessa lei.

Por isso, julgo que a superlotação das cadeias angolanas não é um problema que se possa associar à violação dos direitos humanos, mas simplesmente às condições que temos e que vamos tentando melhorar pouco a pouco, até porque, pelo que sei, estão em construção novos estabelecimentos prisionais ao nível de todo o país, que vão oferecer melhores condições de encarceramento aos detidos.

Qual é, neste momento, a população prisional em Angola e a sua relação com a capacidade actual das cadeias, e em que percentagem as prisões ora em construção irão ajudar a minimizar o problema?

O número de cadeias existentes é manifestamente insuficiente e encontram-se lotadas no limite, e em alguns casos com um excedente que chega aos 25 por cento. Isto não quer dizer que a criminalidade atinja números astronómicos em Angola, pois se a memória não me falha as ocorrências registadas no último ano não ultrapassavam os 50.000, o que não é exagerado num país que tem uma população de 16 a 17 milhões de habitantes.

E as construções em curso vão resolver o problema da superlotação?
De certo modo sim. Perceba que estamos a preparar outras medidas para estancar o aumento da criminalidade e, consequentemente, do número de detidos. Vamos fazer uma ampla campanha de prevenção e educação jurídica da população, e com isso, muito crimes derivados do simples desconhecimento da lei deixarão de ser cometidos.

A acção do Estado angolano também passa pela melhoria das condições sociais, mormente no que se relaciona com a formação e a criação de empregos, e essas são tarefas prioritárias do Governo uma vez que Angola tem uma população muito jovem cujos problemas se resolvem essencialmente por essas duas vias.

E conseguindo isso a montante, deixarão de estar criadas muitas das condições que normalmente conduzem à prática de crimes. Mas, nesta luta, a sociedade também é chamada a desempenhar o seu papel, permitindo que determinado núcleo de pessoas, aquelas consideradas anti-sociais e vocacionadas para o crime, sejam tratados como uma ameaça à segurança e à tranquilidade colectivas.

De outro modo, estaremos a deixar sem protecção aquela parte da população que constitui a maioria e é cumpridora dos seus deveres e obrigações mas acaba por ser vítima da má conduta de uns tantos. A sociedade deve ser tolerante mas não se pode abster de querer isolar e penalizar aqueles que, pela prática do crime, tentam pôr em causa o bem-estar comum.
Cinjamo-nos um pouco na questão das prisões preventivas, que as autoridades angolanas são acusadas de utilizar de forma excessiva e abusiva.

Isso acontece, na sua opinião, senhor PGR, de forma deliberada ou devido a insuficiências da máquina judicial angolana, embora, a ser verdade, seja condenável tanto num caso como noutro?
Temos, de algum modo, procurar ultrapassar uma dificuldade que consiste em não conseguir concluir determinados processos dentro dos prazos estabelecidos. Isso tem a ver, por um lado, com o volume de processos que temos em mãos e, por outro, com a complexidade de que se reveste a prática de certos crimes e da sua instrução e investigação.

Também existem, devo dizer, sérias dificuldades relacionadas com a insuficiência de quadros ao nível dos órgãos da justiça. Assim, se acontecem, com alguma frequência, casos de não observância das normas consagradas na Lei de Prisão Preventiva em Instrução Preparatória, garanto que não será por vontade manifesta do Ministério Público, que enquanto promotor da legalidade, não tem qualquer interesse nem desejo de fazer as pessoas passar por situações de excesso de prisão.

Temos procurado, com bastante empenho, fazer diminuir a ocorrência deste tipo de situações, mas existe a outra face da moeda. De cada vez que um criminoso, reconhecido como tal e conotado com crimes graves e violentos, é posto em liberdade devido às exigências processuais previstas na lei em referência, é quase certo haver reincidência, e esses indivíduos apresentam um alto grau de periculosidade para a sociedade.

O senhor PGR está a falar da criminalidade comum mas eu estou a referir-me aos casos denunciados por vozes internas angolanas críticas do Governo e do MPLA e reportados pela imprensa internacional, de pessoas que são detidas alegadamente por delitos de opinião e por motivos políticos...

Eu não concordo que se trate de delitos de opinião. São crimes que, de algum modo, põem em causa o bom nome e a imagem das pessoas, e em Angola consideramos que os cidadãos gozam dos seus direitos em absoluto, mas que esses mesmos direitos terminam onde começam os dos outros.

Por isso, e justamente em respeito pela legalidade, não vamos permitir que se crie um estado de anarquia total em que cada um faz o que bem entende e apetece. Há outros crimes previstos no nosso quadro jurídico e que têm a ver com a segurança do Estado. Quando são cometidos nós actuamos com toda a normalidade, porque é a lei angolana e ela tem que ser cumprida.

Enquanto houver normas que incriminam determinadas condutas, elas serão tratadas ao abrigo da lei. E quem incorrer nessas infracções também se sujeita às consequências que judicialmente advêm da sua acção.

          'NITO ALVES FOI APANHADO EM FLAGRANTE DELITO'

E foi nesse tipo de crime que incorreu o jovem Nito Alves, que se encontra preso neste momento?
Com certeza. Por acaso conheço o caso e penso que, nos próximos dias, esse processo estará em tribunal para a consequente tramitação em juízo.

A permanência de Nito Alves na prisão pode ser considerada legal?
Ele foi detido em flagrante delito, e a prisão foi legalizada e, consequentemente, mantida e, por isso, esse cidadão vai ser presente a julgamento dentro de pouco tempo, em observância da mais completa legalidade.

                                                   'SOU PATRIOTA'

Não podemos deixar, numa entrevista com o Procurador Geral da República de Angola, de abordar a questão das relações com Portugal, que têm contornos relacionados justamente com a legalidade e envolve o Ministério Público português, alegadamente apontado como responsável pelo vazamento, para a imprensa, de informações em segredo de justiça sobre processos em que estão indiciados altos dirigentes angolanos. Com é que analisa esse quid pro quo jurídico com implicações políticas?

Vou dizer o seguinte: os países são soberanos e têm as suas leis, que devem ser observadas e respeitadas por qualquer cidadão, seja ele nacional ou estrangeiro, desde que se encontre sob a sua jurisdição. Em Angola, ninguém é contra a instauração de procedimentos penais contra qualquer pessoa, desde que haja fundamentos para tal.

Aliás, é normal que se intente um processo contra um cidadão angolano em Portugal, da mesma maneira que isso também pode acontecer em Angola em relação a um cidadão português ou de outra nacionalidade. A única coisa que achamos estranha é que processos que se encontram salvaguardados pelo segredo de justiça sejam conhecidos em detalhe pelos jornalistas e os factos levados ao conhecimento do público por certos jornais, em cujas páginas são feitos autênticos julgamentos públicos com as pessoas a serem achincalhadas de todas as formas sem possibilidade de defesa.

Afinal de contas, este tipo de casos são tratados na imprensa de forma a que as pessoas visadas sejam completamente arrasadas no seu bom-nome, na sua imagem e na sua dignidade, e se formos a ver, esses processos, que em alguns casos constituem meros expedientes administrativos, são depois arquivados mas o mal que já foi feito permanece e os visados nunca mais se livram da imagem negativa que lhe foi imputada. É disto que deriva a revolta dos angolanos.

E não obstante o meu cargo de Procurador-Geral da República de Angola, não deixo de ser um cidadão angolano, um patriota, e como tal não posso pactuar com situações que lesam a dignidade dos angolanos.

O senhor procurador tinha prometido há uns tempos indicar nomes de cidadãos portugueses bem colocados envolvidos na lavagem de capitais em Angola. Pode avançar-nos alguns?

Eu nunca disse que as pessoas que estávamos a perseguir criminalmente estariam bem ou mal colocadas em Portugal ou em Angola. O que posso dizer é que, em Angola vivem e trabalham milhares e milhares de portugueses, e há processos em curso contra alguns deles, em alguns casos relacionados com branqueamento de capitais.

Deve compreender que quando se está perante situações em que não se conhece bem a origem de determinados dinheiros, que depois são retirados das contas e desaparecem do território angolano, temos de investigar e referenciar as pessoas envolvidas. É disso que se trata.

Está a falar de grandes empresas e grande empresários?
Estou a falar de empresas e de empresários. Mas preferimos não pagar na mesma moeda e manter o anonimato dessas pessoas porque estamos a trabalhar é com processos protegidos pelo segredo de justiça, e quando chegar o momento próprio e as coisas estejam devidamente clarificadas e não haja possibilidade de se criar qualquer tipo de ambiguidade, então sim, vamos divulgar toda a informação para que a sociedade angolana fique devidamente esclarecida.

Está a querer dizer que não fará a cidadãos portugueses o que acusa a PGR de Portugal de fazer a cidadãos angolanos?
Com certeza que não, porque não podemos pagar um mal com outro mal. Somos cumpridores da legalidade, e ao nível do Ministério Público Angolano não costuma haver este tipo de fugas de informações. Até porque não conseguimos vislumbrar os benefícios que tal prática possa trazer, por um lado, e por outro porque sabemos que a Procuradoria-Geral da República de Angola está vinculado a critérios de legalidade e não pode violar a própria lei que defende.

E como é que comenta as desculpas apresentadas às autoridades angolanas, por eventuais desvios por parte da PGR portuguesa, pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, que por isso mesmo foi alvo de inúmeras críticas no seu país?
O que lhe posso dizer é que se tratou de uma situação que envolve um governante português, e que por ser um assunto interno, não gostaria de fazer apreciações à volta do ocorrido.