Lisboa – Como já é sabido e ao contrário do sucedido anteriormente, este ano, pela primeira vez (se não para todos, pelo menos para alguns de nós) o camarada Presidente partilhou com o povo angolano o seu ponto de vista sobre a situação actual do nosso país.

Fonte: Club-k.net
Isto por ocasião da abertura da segunda sessão legislativa da corrente legislatura, obedecendo assim a Constituição da República (o que foi efusivamente publicitado em alguns órgãos de informação, como se este se tratasse de um acto magno). Passada quase uma semana e após vários comentários e reacções, achei importante olhar mais de perto para o discurso proferido.

Ao contrário do que têm sido os pronunciamentos da Presidência da República nos últimos tempos, que evidenciam uma clara falta de conhecimento sobre realidade angolana por parte do Presidente e dos nossos líderes em geral, desta vez José Eduardo dos Santos, embora resumidamente, expressou-se de uma maneira concisa, sem rodeios. O seu discurso podera ser dividido em três componentes, que serão discutidas a seguir.
 
CONSIDERAÇÕES INTERNAS

Este segmento do discurso foi dedicado a análise de aspectos relaccionados à administração interna do país. Foram avaliados vários dos programas de ordem económica e social levados à cabo pelo Executivo durante o seu primeiro ano de mandato.

Começou com o enquadramento da economia angolana no plano internacional, que foi feito de uma forma clara. Adicionalmente, foram mencionados factores internos que afectaram negativamente o seu desempenho.

Com este plano de fundo, JES apresentou em seguida alguns indicadores que denotam o estado económico actual do país de forma lógica, não obstante do significado de alguns destes não estar ao alcance do cidadão comum.

Exemplos práticos, pelo menos para os casos mais pertinentes, possibilitariam a compreensão à uma franja mais alargada da população. JES aproveitou a ocasião para também esclarecer o afastamento dos ministros da Finanças e Construção, que causou alguma polémica no princípio do ano.

Posteriormente, tendo em conta o estado económico do país, os projectos desencadeados pelo Governo a nível social foram abordados. Destaque foi dado ao melhoramento das condições de vida da população, com referência ao Programa Municipal Integrado de Desenvolvimento Rural e Combate à Pobreza; ao melhoramento do sistema de educação nacional tendo em conta as necessidades específicas actuais do país, com referência ao Plano Nacional de Emprego e Formação Profissional; ao melhoramento da assistência médica e medicamentosa no país, com referência ao Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário; e à gestão da seca e outros aspectos ambientais que têm estado a assolar o nosso país nos últimos anos, com referência ao Plano Nacional de Combate à Seca e Desertificação.

Finalizou atestando os esforços (evidenciados e por evidenciar) nos ramos da desminagem, desporto, cultura, antigos combatentes e veteranos de guerra, serviços de segurança (incluindo o melhoramento das condições dos reclusos) e finalmente na implementação do poder autárquico em Angola.

Aqui, JES adopta um discurso directo e objectivo ao quantificar os resultados das principais apostas do Executivo no ano transacto. Para os mais cépticos, a fonte dos dados mencionados pode até ser questionável, mas o simples gesto de apresenta-los já denota alguma mudança de atitude por parte do Presidente da República, oferecendo termos de comparação à oposição (no papel de fiscal do Executivo) como também à investigadores independentes.

Outro aspecto marcante foi o facto de que JES não só fez questão de deixar claro que independentemente dos sucessos alcançados, ainda existem deficiências e muito trabalho pela frente, mas também fez questão de indicar formas pelas quais esses aspectos poderão ser endereçados; uma atitude muito diferente do habitual balanço positivo que já se tornou “cliché” para o nosso governo.
 
CONSIDERAÇÕES EXTERNAS

Este segmento serviu para informar ao país sobre o posicionamento do Estado Angolano a nível internacional. Foi um trecho muito breve, onde se viu o Presidente da República adoptar uma postura mais conservadora nas suas abordagens.

Na introdução, JES deixou claro que o Estado Angolano não só discorda como também reprova o uso da força (efectivamente ou a propósito intimidatório) para o alcance de objectivos políticos; uma prática que segundo o mesmo tem estado a ser demonstrada ultimamente. A seguir, insta os Estados ao diálogo para o alcance da paz e estabilidade internacional.

Talvez esta seja uma referência nas entrelinhas sobre a sua posição com relação às revoltas e goples-de-Estado ocorridos no continente nos últimos anos (originando o derrube de vários regimes), levando também em conta o papel desempenhado pelas potências mundiais perante tais situações não só em África, mas como a nível internacional.

Posteriormente, sugere que a prioridade na política externa de Angola é a sua afirmação como país de referência em África. Para tal, o governo tem adoptado uma postura de respeito pela Constituição dos Estados, apelo a resolução pacífica de conflitos, participação na implementação efectiva do sistema democrático e combate a práticas criminosas (com referência a segurança marítima no golfo da Guiné), como também a permanência activa na União Africana, SADC, CEAC e CPLP, assim como a candidatura ao conselho de segurança da ONU.

Para finalizar, reafirma que Angola se consolida cada vez mais no plano internacional, mantendo relações satisfatórias com os restantes países do mundo e uma cooperação económica crescente e mutuamente benéfica com muitos destes.

Ademais, acrescenta que a crescente tendência turística e de investimento estrangeiro deve-se ao aumento da confiança no país por parte de seus parceiros, com a excepção de Portugal, o único com a qual “as coisas não estão bem”!

Este foi talvez o ponto que suscitou mais reacções em todo o discurso. O facto de haver estabilidade diplomática no país não causou muitas surpresas. Inesperado foi o pronunciamento com relação a Portugal, uma situação que até a data se mantivera invisível a olhos públicos (talvez com excepção do processo trabalhoso de obtenção de vistos, que já se tornara habitual).

Para além da alegação de “incompreensões a nível da cúpula”, não foram dados esclarecimentos sobre a questão. Perante tal situação, poderá se especular que as investigações do Estado português, assim como as publicações de vários órgãos de informação lusos visando altas figuras do governo angolano de maneira comprometedora poderá estar no centro da polémica.

ESTABILIDADE E DESENVOLVIMENTO SÓCIO-ECONÓMICO EM ANGOLA

Este segmento foi dedicado ao desenvolvimento do ponto de abertura do discurso. JES apelou a participação de todos angolanos no desenvolvimento do país e tentou transmitir uma mensagem de esperança através da elucidação de processos característicos dos países em desenvolvimento e dos esforços feitos pelo Governo para garantir a execução destes da melhor maneira.

Antes de tudo, a ideia central do executivo para o mandato decorrente, “Estabilidade, Crescimento e Emprego”, foi brevemente examinada. A necessidade da participação de todo o cidadão para o alcance destes objectivos foi assegurada.

De seguida, enumerou os paços que estão a ser dados actualmente no sentido da moralização da sociedade angolana, nomeadamente com relação ao branqueamento de capitais, financiamento ao terrorismo, luta contra as drogas e introdução do ordenamento jurídico angolano na convenção das nações unidas contra a corrupção; assunto que mereceu alguma ênfase posteriormente.

Segundo o Presidente da República, os países ocidentais têm estado a criar uma confusão deliberada com relação ao combate à corrupção, a fim de intimidar os seus similares africanos e com o propósito de evitar uma possível concorrência. Alega que se tem criado a imagem de que o homem africano só pode ser rico através da corrupção.

Como reacção a essa atitude, afirma não existirem motivos para nos sentirmos intimidados e que a “acumulação primitiva” de capitais deverá ser adequada ao nosso contexto.

A título de justificação, usa as empresas petrolíferas e bancos estrangeiros com lucros altos no país como referência e questiona a impossibilidade de entidades nacionais alcançarem o mesmo resultado. Finaliza reiterando a necessidade da criação de um empresariado nacional forte e que tal nada tem a ver com a corrupção, para qual existem leis claras a serem aplicadas.

Embora plausíveis, os argumentos apresentados por JES não são inteiramente aplicáveis: é natural que os países ocidentais queiram assegurar a sua posição privilegiada e para tal podem divisar inúmeros mecanismos. Mas ainda assim isso não justifica as aberrações em termos de “acumulação de capital” que têm estado a acontecer em Angola. Há, de facto, necessidade de se “separar o trigo do joio”!

Primeiramente, existem muitos cidadãos africanos ricos que são respeitados em terras ocidentais (principalmente de origem Sul-Africana e Nigeriana, mas não só). Portanto, dizer que o pensamento de que o africano só enriquece através da corrupção é o pensamento patente no ocidente não corresponde inteiramente à realidade. Talvez seria mais acertado reduzir essa referência aos angolanos.

Seguidamente, usar como referência de sucesso empresarial para os empreendedores nacionais as multinacionais a actuar no país pressupõe uma produção e prestação de serviços equivalentes ou pelo menos compatíveis as das instituições estrangeiras, o que não corresponde à realidade. Portanto, essa comparação não tem fundamento sólido.

Finalmente, existem situações como a mulher mais rica de África ser a filha do Presidente, as maiores empresas angolanas serem detidas por altos membros do círculo presidencial, haver cidadãos angolanos (ligados ao partido no poder e com uma actividade empresarial no mínimo dúbia) a desfilarem pela Europa com quantias exorbitantes em sacos de lixo e caixas de sapatos.

Realisticamente falando, todos esses factores aliados não dão muita margem à interpretações alternativas aos países ocidentais. Portanto, talvez a ideia de uma confusão deliberada seja um exagero.

Como foi referenciado, é essencial criar-se uma classe empresarial nacional forte a fim de se garantir o desenvolvimento do país. Mas isto deve ser feito de maneira a que a capacidade seja a primeira prioridade e nunca sobreposta por outros factores.

As empresas devem ser capazes de providenciar serviços e produtos que satisfaçam as necessidades do povo angolano e daí obter os seus lucros, de uma forma honesta e sem jogadas mesquinhas. Mais importantemente, essas oportunidades devem estar abertas a todos os cidadãos aptos para tal, e devem também priorizar a capacitação dos quadros nacionais.

JES finalizou a mensagem de Estado da Nação enfatizando a importância dos jovens e das mulheres na sociedade angolana.

Tal como referido na abertura deste texto, este discurso demonstra um afastamento da postura habitual do Chefe-de-Estado angolano. Ele esforça-se mais para ganhar a empatia dos ouvintes, tentando manter-se o mais próximo o conveniente da realidade dos factos.

Houve positivismo e certos assuntos que preocupam a Nação de modo geral foram abordados, embora as vezes inadequadamente. Esses factores alimentam a esperança que talvez desta vez, a partir desta sessão legislativa, com um Executivo estável e já à velocidade de cruzeiro, as políticas governamentais passarão a ter um impacto mais positivo para o povo angolano.