Luanda - O último acórdão do TC tem de facto e de jure o sabor da tal cereja que se coloca em cima do bolo que queremos que as pessoas comam com o melhor dos prazeres para se deliciarem verdadeiramente com a iguaria.

Fonte: SA

Esta cereja só não cumpriu totalmente esta sua adocicadora função, devido ao facto da deliberação ter sido aprovada e subscrita por apenas seis dos onze Juízes Conselheiros, na ausência, nomeadamente, de uma das titulares daquela instância, a Dra.Imaculada Melo, que mais se tem esforçado por contrariar a tendência política dominante do TC, com resultados que não são de desprezar.


Com as suas declarações de voto de vencida e em nome do sempre necessário contraditório, esta magistrada tem-nos permitido fazer uma avaliação mais objectiva das deliberações do TC. [Lamentavelmente desta vez ela foi uma das grandes ausentes deste debate, tendo em consequência a jurisprudência constitucional angolana ficado privada da sua eventual declaração, convencidos que estamos que ela muito dificilmente subscreveria este acórdão tal como ele foi elaborado e proferido na sequência, aliás, da sua anterior posição contrária à suspensão da função fiscalizadora da Assembleia decidida em 2010 pelo então Presidente da AN, Paulo Kasssoma.


O TC emitiu na altura um acórdão a pedido da UNITA que recorreu à instância solicitando a inconstitucionalidade da polémica norma suspensiva constante do despacho de Paulo Kassoma, que acabou por passar incólume pelos filtros do TC.


De recordar que para além da Dra. Imaculada Melo, num universo de sete juízes, votaram vencidos contra o acórdão elaborado pelo Onofre dos Santos (relator), os Conselheiros Agostinho António Santos e e Efigénia Lima Clemente. Curiosamente estes três magistrados não estiveram presentes agora na plenária que aprovou a recente deliberação. Os três juízes, note-se, fizeram questão de sustentar em 2011 a sua posição contrária, com declarações de voto-NA]


Como em Angola a certo nível, já poucas coisas acontecem por acaso, ainda nos restam mais algumas consolações morais, na sequência destas ausências verificadas na plenária que aprovou o acórdão e que veio colocar mais alguns pontos nas nossas anteriores reticências relacionadas com a intervenção do tribunal mais politizado do nosso ordenamento jurídico.


Para além disso, o seu relator, o Dr. Raúl Araújo, foi um jurista que em 2009 defendeu como tese do seu doutoramento em Coimbra o papel do Presidente da República no sistema político em Angola, título que deu depois ao livro editado com o conteúdo da referida dissertação.


Na minha modesta apreciação e à falta de melhor informação, terá sido a primeira consagração académica do futuro “eduardismo” como regime democrático, numa altura em que ainda se discutia as balizas da actual CRA.


O relator defendeu em Coimbra durante um debate com os seus examinadores, que não terá sido muito pacífico e que foi mesmo dominado por alguma tensão fora do que é comum nestas lides universitárias, uma evolução/clarificação do anterior semi-presidencialismo para a actual versão do hiper-presidencialismo que consta da CRA.


Isto para dizer que Raul Araújo, em nome da sua própria coerência, mais não fez nesta sua proposta de acórdão, enquanto relator, que passar para a jurisprudência constitucional angolana a sua anterior visão política sobre as virtualidades da omnipresença e omnipotência da figura de JES na “desértica” paisagem do poder angolano.


Angola será, provavelmente, a única democracia do mundo onde os membros do Governo não podem ser chamados/ouvidos/questionados ao Parlamento seja para o que for, a não ser que o Chefe do Executivo autorize a sua deslocação ao hemiciclo, (apenas) no âmbito do dever de colaboração institucional e da interdependência de poderes. Mas o problema mais grave que acaba de ser criado pelo Tribunal Constitucional não é exactamente este.

Angola passa também a única democracia do mundo onde o Presidente/Chefe do Executivo-que é o único responsável pela gestão dos dinheiros públicos- não está obrigado a ir ao parlamento prestar contas da sua governação, podendo se bem entender, aceder ou não aos pedidos da AN nesse sentido.


As temíveis Comissões Parlamentares de Inquérito, as famosas CPIs em todo o mundo democrático, incluindo nos sistemas presidencialistas (veja-se o caso do presidencialismo brasileiro), a partir de agora em Angola perdem quase a sua razão de ser.


O acórdão em causa é completamente vago para não dizer omisso em relação aos procedimentos concretos que a Assembleia deve observar para cumprir o artigo 162 da CRA, mas não só.

A este respeito pode ler-se o seguinte no referido acórdão (Nº 319/2013 Processo n.º 394-C/2013/Processo de Fiscalização Sucessiva):
“A Assembleia Nacional, tal como define a Constituição, exerce a sua função de controlo e fiscalização do Executivo, entre outras formas supra mencionadas, aprovando o Orçamento Geral do Estado, acompanhando a sua execução e aprovando a Conta Geral do Estado e de outras instituições públicas; velando pela aplicação das leis; fiscalizando o exercício pelo Presidente da República de competências legislativas autorizadas bem como dos decretos legislativos presidenciais provisórios.”


O que o relator não explica é como é possível fazer tudo isto se o parlamento não pode (por suposta falta de legitimidade), questionar nem o Chefe, nem os restantes membros auxiliares do Executivo.


Tudo só pode ser feito se o Chefe quiser e quando quiser. Não há prazos. Não há obrigações. Não há nada.
Como é possível controlar e fiscalizar nessas condições, caro Professor Dr. Raul Araújo?
A história do mais recente acórdão do TC dava um bom thriller político, do tipo “non sense”, o que poderia descambar numa comédia.

O “filme” começaria com a bancada parlamentar do MPLA a receber e a agradecer sorridente um bruto cartão vermelho do Tribunal Constitucional a seu próprio e encarecido pedido.


Como se sabe, foi a bancada do MPLA que solicitou este acórdão do TC de verificação da constitucionalidade de um diploma (o Regimento da Assembleia Nacional) em sede da fiscalização sucessiva, que ela própria havia aprovado o ano passado, dois anos depois da CRA estar em vigôr. Dois anos!


Mesmo assim ainda tivemos a oportunidade de ouvir em conferência de imprensa os deputados do MPLA, Guilhermina Pratas e Diógenes de Oliveira, garantir que depois deste completo esvaziamento, a função fiscalizadora da Assembleia Nacional está garantida.

Garantida como?

Com o ar que os deputados respiram?


Será que algum dos jornalistas presentes na conferência de imprensa da passada segunda-feira perguntou aos dois deputados dos MPLA como é possível controlar e fiscalizar o Executivo sem ter o poder de convocar, de interpelar e de perguntar?


O artigo 162 da CRA apenas diz que compete a Assembleia Nacional no domínio do controlo e da fiscalização, nomeadamente, a) velar pela aplicação da Constituição e pela boa execução das leis.

É a mesma Constituição que no diz (artº104.4) que a execução do OGE obedece ao principio da transparência e da boa governação e é fiscalizada pela Assembleia Nacional e pelo Tribunal de Contas.

Que eu saiba fiscalizar é tudo menos ficar a olhar para quem passa, para depois dizer sim eu vi-os, eles estiveram aqui e até nos deram umas boas dicas.
O último acórdão do TC só pode dar razão a todos quantos acham que aquela instituição já é o principal escritório de advogados de JES, enquanto único titular do poder executivo.


Tenho de facto muitas dúvidas quanto à constitucionalidade desta deliberação.
Acho que foi feita uma grande confusão entre subordinação política e o direito do Parlamento de fiscalizar o Executivo, que quanto à mim acaba por ser uma tarefa essencialmente técnica.


A fiscalização não põe em causa nada que tenha sido definido, nada que seja estratégico.
Antes pelo contrário, pois nesta sua capacidade o Parlamento apenas se preocupa com o acompanhamento dos compromissos que o próprio Executivo assumiu.

PS- Será que também nas conferências de imprensa do MPLA já não se podem fazer algumas perguntas

NA- Texto publicado no Semanário Angolense (1/11/13)