Rio de Janeiro - Já la vão quatro anos desde que, em plena efervescência do CAN 2010, Angola, através da Assembleia Nacional, viu aprovada a sua terceira Constituição, depois daquelas que vigoraram desde 1975 e da pertinente revisão ocorrida em 1991 sob o manto dos Acordos de Paz assinados em Bicesse.

Fonte: Revista Cibernética

Fruto de um processo constitucional ocorrido em plena vigência do período mais duradouro de paz militar que Angola conhece, a Constituição de 2010 deveria consagrar de vez o pluralismo na sua verdadeira expressão e contribuir decisivamente para o aprofunda¬mento do processo democrático em Angola. Com isso, a CRA 2010 se tornaria num pilar importante do delicado processo de reconcilição nacional que tem por finalidade dissipar definitivamente todas as nu¬vens de conflito que ainda pairam em Angola.

 

Há, no entanto, um factor que pesou muito negativamente no pro¬cesso constitucional de 2010. Longe de representar a continuação do processo constitucional interrompido em 2005, este processo foi decidido à luz dos resultados eleitorais de 2008 que ofereceram uma maioria arrasadora ao MPLA. Com esta oportunidade de ouro entre as mãos, esta força política hegemônica em Angola desde 1975, procurou por via deste processo consagrar na Lei o célebre princípio “winner takes all” mesmo que as Nações Unidas tenham concluído,por diferentes análises feitas ao processo angolano, que tenha sido este princípio uma das fontes geradoras de conflito. O processo constitucional interrompido em 2005, respeitava escru¬pulosamente o espírito dos acordos de Paz, obedecendo com rigor as cláusulas pétreas estabelecidas na revisão constitucional de 1992 e tinha alcançado avanços importantes em questões-chave, incluindo aquela relacionada aos símbolos nacionais que constituía um enorme desconforto para o partido da situação.


Um erro estratégico clamoroso da oposição, levou-lhe a caucionar a interrupção inconclusiva do processo constitucional então em curso, para privilegiar a preparação do pacote legislativo que supor¬taria as eleições gerais pós-conflito, no âmbito, argumentava-se, da regularização dos órgãos de soberania. Com efeito, a AN já trazia um mandato arrastado de quase 13 anos e o Presidente da Repúbli¬ca jamais havia sido eleito. Convencionou-se,então,que existia um déficit de legitimidade destes orgãos para trazer à luz uma Nova Constituição.O argumento, aparentemente muito racional, trazia, no entanto,embutida uma iscaque serviu para o MPLA atrair a oposição para a sua estratégia que visava, em última instância, desfazer-se dos incômodos a que estava ser sujeito pelo texto constitucional em forja. A oposição, por sua vez, mordeufacilmente a iscae acabou concordando em abortar o processo constitucional atirando para lixeira horas e horas de trabalho aturado e paciente.Desde essa altura o MPLA enveredou e conduziu um processo, ardiloso, sinuoso, desprovido por inteiro de lisura e transparênciaque“preparou”as eleições legislativas e que culminou com a muito questionável victória obtida nas eleições de 2008.


Quando se viu, em 2008, com a pérola entre as mãos que era a maio¬ria absoluta e esmagadora não hesitou em torpedear o calendário eleitoral acordado, protelando as eleições presidenciais previstas para 2009 e despoletando então o processo constitucional queviria a dar origem à Constituicao de 2010. Com uma maioria confortável na Constituinte, que lhe permitia aprovar praticamente sózinho a Nova Constituição, o MPLA surgiu nítidamente dividido neste proces¬so. Com efeito, as forças moderadas do Partido, entendiam que era importante respeitar as cláusulas pétreas estabelecidas na Revisão Constitucional de 1992 e introduziram na Constituinte a proposta A que seguia rigorosamente estas linhas. A agenda presidencial, no entanto, era diferente e privilegiava uma “via atípica” que propug¬nava por um modelo dito presidencialista parlamentar, totalmente estranho, que pretendia, no fundo, um reforço considerável dos po¬deres presidencias e a desactivação do valiososistema de “checks and balances” entre os diferentes poderes, tão cruciais no Estado Democrático e de Direito.


Em síntese, o Presidente em exercício pretendia a todo o custo, e a oportunidade aguçou ainda mais seus apetites, consagrar uma Con¬ stituição de cunho autoritário, onde o Legislativo e Judiciário seriam completamente rebocados e solapados pelo Executivo. Isto implicava violar as já citadas cláusulas pétreas da Lei Magna que vigorava e a insistência obstinada do Presidente num modelo assim configurado levou os cidadãos Carlos Feijó e Bornito de Sousa a redigir às pressas uma proposta que satisfizesse o Chefe mesmo que isso significasse passar por cima de conquistas, que se pretendiam sólidas, trazidas pelos Acordos de Paz e cimentadas na revisão de 1992 sob a forma de cláusulas pétreas. Esta proposta, introduzida na Constituinte em sub¬stituição da proposta A previamente apresentada, ante a resignação da ala moderada do MPLA, viria a alterar negativamente o curso das discussões.


Daí em diante a discussão evoluiu, na vertente teórica, para o signifi¬cado de “cláusulas pétreas”. Para a oposição a semântica de “cláusulas pétreas” era óbvia demais para significar que tais cláusulas deveriam figurar invioláveis na Nova Constituição e, por isso, era descabido dis¬cutir uma proposta que as viola a priori. Para a situação, a elaboração de uma Nova Constituição não os devia amarrar a estas cláusulas e era legítimo os angolanos protagonizarem uma “invenção social” suis generis que estivesse talhada a medida da sua realidade ao invés de simplesmente importar modelos de além-mar!


O facto é que desde essa altura o processo ficou viciado, tendo as dis¬cussões se polarizado demasiado, o que fez com que os constituintes olhassem daí em diante mais para a árvore do que para a floresta. O resultado deste exercício foi, de facto, uma Constituição atípica, não apenas pelo estranho modelo de eleição presidencial que consagrou, mas, sobretudo, pelo conjunto da obra. A invenção social “a angolana”, como lhe chamou Bornito de Sousa, acabou sendo uma Lei que con¬sagrou uma cesta de direitos fundamentais ampliados, perfeitamente alinhados com a Carta Universal dos Direitos Humanos, mas ao mesmo tempo estabeleceu um corpo institucional totalmente impotente para garantir estes direitos. Consagraram-se os direitos e liberdades, mas, ao mesmo tempo, ergueu-se um edifício institucional autoritário, por¬tanto, incompatível.


Uma Constituição assim estava fadada ao fracasso, pois, não era de modo algum funcional e, longe de se constituir no espaço do consenso, a Constituição passou a ser o terreno de conflitos extremados. Isto deriva do facto da Constituição assim aprovada não ter sido a “ex¬pressão de uma limitação que a maioria impõe a si própria, contra a voragem das paixòes e dos impulsos das maiorias conjunturais”como defende Hamilton em “O Federalista”. Muito pelo contrário, sobressai nesta Constituição o abusivo aproveitamento da maioria conjuntural do MPLA para usurpar limites e, por conseguinte, longe de consa¬grar uma “dinâmica de diálogo social” capaz de “garantir a vitória do debate político pacífico sobre a expressão agónica das tensões e conflitos”,segundo a perspectiva constitucional de Hamilton, a Consti¬tuição de 2010 passou a ser ela própria geradora de conflitos sociais. Com o Tribunal Constitucional atrelado ao Executivo, com o sistema de “checks and balances”desactivado, deixou de existir um espaço para a decisão regulada e isenta de disputas acaloradas que emergeriam como é o caso do contencioso eleitoral.


Olhando hoje, retrospectivamente para o percurso que o país de¬screveu nestes quatro anos é fácil concluir que, por razões diame¬tralmente opostas, a Constituição não satisfaz nenhum dos lados con¬tendores:


Não satisfaz a situação, pelo facto da Constituição não ter permitido completar o desenho autoritário preconizado. Com efeito, a concentra¬ção excessiva dos proponentes da alternativa à proposta A em conferir poderes excessivos ao Presidente e desactivar o sistema de “checks and balances” levou-lhes a perder de vista o alcance, por exemplo, da consagração de uma administração eleitoral independente, prevista no Art. 107o e, a descurar a redacção final que assumiu o Art. 47o sobre o direito de reunião e manifestação. Quando se viram confrontados com estes postulados da Constituição no terreno, os agentes do Governo foram levados a cometer sistematicamente violações grosseiras à Lei, situação que gerou e tem gerado profundo desconforto no próprio campo da situação.


Por seu turno, as reclamações da oposição dirigem-se justamente para o corpo institucional autoritário que a situação procura edificar com base na Constituição. De modo geral assiste-se a um retroces¬so palpável e facilmente mensurável no que diz respeito ao plural¬ismo como condição sine qua non para se poder falar em sociedade democrática. A liberdade de expressão e de imprensa foi truncada, a liberdade de reunião e manifestação é sistematicamente reprimida e os cidadãos são amiude privados de liberdade sem observação mínima das normas que a Constituição estabelece de forma límpida e cristalina, havendo mesmo registos de violação do direito à vida por parte de agentes do Estado. Assiste-se com frequência a ingerências grosseiras do Executivo nos órgãos de administração eleitoral que se pretendiam independentes. No entanto, a todo este cortejo o poder judiciário e Ministério Público assistem impávidos e impotentes, pois, também eles estão a reboque do Executivo, desactivados que foram os mecanismos de contrapeso.


Enfim, tudo se encaminha para se estabelecer em Angola uma ver¬dadeira ditadura corporizada na figura de José Eduardo dos Santos e, neste sentido, o Acordão no 319/2013 do Tribunal Constitucional, referente ao processo 394-C/2013 sobre a fiscalização sucessiva, parece ser o sinal mais insinuante emitido. Por mais que se tente encobrir o lobo com pele de cordeiro, há sempre uma parte que acaba exposta, denunciando assim as intensões mais profundas do regime.


Assim, pelas razões acima expostas parece-nos que uma proposta de revisão da Constituição de 2010 será colocada sobre a mesa mais cedo do que se pode imaginar. Para o regime vigente esta revisão seria uma lufada de ar fresco no sentido de costurar o necessário amparo legal para concluir a obra autoritária que persegue, confer¬indo às cláusulas que muitos dissabores têm trazido, uma redacção mais ambígua que permita margens de manobra repressivas.


Para a oposição fica a lição:não é prudente embarcar para uma revisão da Constituição enquanto persisitir o actual desequilíbrio parlamentar. Convirá manter a presente Constituição tal como está, com as brechas e frestas de liberdade que oferece, para encetar uma luta pacífica de desgaste do regime autoritário que se pretende im¬pingir aos angolanos. Esta luta deverá conduzir a uma situação de maior equilíbrio de forças que permitirá discutir consensualmente uma Constituição efectivamente plural e democrática capaz de ampa¬rar este mosaico étnico, cultural, político social e econômico que se chama ANGOLA! Sem exclusões, sem revanchismos! Até lá...

A LUTA NÃO PÁRA, PARA NÃO DIZER, CONTINUA!