Luanda - O Conselho Superior da Magistratura Judicial puniu o juiz Salomão Filipe com uma suspensão salarial de três meses agravada com um “desterro” compulsivo na província da Lunda Sul como consequência de um processo disciplinar no qual Salomão Filipe foi acusado de “desobediência”. Em causa está a postura do magistrado no julgamento do chamado Massacre da Frescura.


*Mariano Brás
Fonte: A Capital

O juiz Salomão Filipe, que ficou publicamente conhecido por, no Tribunal Provincial de Luanda (TPL), ter condenado os efectivos da Polícia Nacional então implicados no chamado Massacre da Frescura, está a pagar por essa mesma ousadia, tal como relataram, para o semanário A Capital, fontes ligadas ao sector judicial. Consta que o Conselho Superior da Magistratura Judicial puniu o juiz com uma suspensão salarial de três meses agravada com um “desterro” compulsivo na província da Lunda Sul como consequência de um processo disciplinar no qual Salomão Filipe foi acusado de “desobediência”.

Quatro anos depois de ter julgado e condenado a pena máxima de 24 anos todo os elementos acusados, na altura, de terem executado, com tiros de metralhadora, oito jovens no bairro da Frescura, no então município de Sambizanga, em Luanda, as consequências deste facto começaram a ser, agora, mais visíveis para o magistrado. Depois de um acórdão do Tribunal Supremo inocentar os sete elementos da Polícia Nacional condenados na primeira instância, eis que uma deliberação do Conselho Superior da Magistratura Judicial optou pela punição do juiz por não ter respeitado uma ordem para proceder de forma diferente da actuação que manteve durante o julgamento.

Segundo consta, e fazendo fé nas fontes deste semanário, antes do início do julgamento, no qual efectivos da divisão policial afecta ao Sambizanga eram suspeitos de execução de um grupo de jovens, o juiz recebeu uma orientação do Tribunal Supremo para que realizasse uma acareação entre os acusados e os familiares das vítimas. Essa orientação, tal como se apurou, baseava-se no facto de, no entender do Supremo, o processo estar confuso, sem fundamentação suficiente para que o julgamento arrancasse.

No entanto, o juiz entendeu de outro modo. Analisou os factos e concluiu que, ao contrário da orientação do Tribunal Supremo, o processo estava, com efeito, devidamente fundamentado, de tal modo que havia mesmo a confissão de pelo menos dois dos arguidos. Com efeito, a Polícia Nacional apresentou, na altura, os elementos implicados no crime, tendo dois deles afirmado que eram, de facto, os autores do crime. Trata-se, nomeadamente, de Helquias Bartolomeu e Faustino Alberto que, em entrevistas a alguns meios de comunicação social, assumiram-se, em nome dos demais, culpados pelo crime.

Na altura, a Polícia, em Luanda, era chefiada pelo comissário Joaquim Vieira Ribeiro que tinha como adjunto Leitão Ribeiro. Ambos foram, inclusive, chamados a depor durante o longo julgamento que durou por cerca de oito meses. Familiares das vítimas e testemunhas oculares foram, igualmente, ouvidas em tribunal, figurando entre elas o cidadão Isaac António, na data dos factos Director Adjunto da DPIC, que disse estarem em posse da instituição as armas usadas no massacre. Aqui, ressalta-se o detalhe de serem armas usadas, de facto, habitualmente pelas forças policiais.

Um outro depoimento chave, colhido na altura, foi o do chefe do departamento de investigação da divisão policial do Sambizanga. Durante o julgamento, este cidadão, cujo nome é Miguel Londa, afirmou mesmo terem sido “os meus colegas” que mataram os jovens e que tal informação lhe tinha sido passada pelos próprios.

Esses factos, no entanto, foram julgados insuficientes pelo Tribunal Supremo que em Abril de 2013 inocentou os sete polícias condenados em primeira instância. Para o efeito, o Supremo alegou insuficiência de provas para condenar os réus. Além da absolvição dos sete acusados, ficou também inocentado o Ministério do Interior que, com base na relação de comitente/comissário que tinha com os réus, foi condenado ao pagamento de comissões de 15 mil dólares para cada uma das famílias das vítimas.

O semanário A Capital apurou que qualquer um dos factos, tanto a revogação, pelo Supremo, da sentença do Tribunal Provincial de Luanda (TPL), como a punição agora a si atribuída, afectou em grande medida o juiz Salomão Filipe que já foi visto como substituto natural de Augusto Escrivão, juiz presidente na altura acabado de ser apeado do Palácio Dona Ana Joaquina. Apesar de saber do processo que corria contra si, ele jamais esperou uma punição tão severa, afiançou uma fonte deste jornal.

 

David Mendes lembra “compra de sentenças”

 

David Mendes, conhecido jurista angolano, é o advogado da família das vítimas do Massacre na Frescura. Ao semanário A Capital ele volta a tocar na tecla da venda de sentenças, no Tribunal Provincial de Luanda (TPL), ao analisar a punição atribuída ao juiz Salomão Filipe. Segundo referiu, “todo o mundo sabe sobre a venda de sentenças”, disse, lembrando uma polémica inicialmente levantada por um antigo bastonário da Ordem de Advogados de Angola (OAA). Raul Araújo denunciou, há alguns anos, a existência de uma promiscuidade entre alguns juízes e advogados que resultava na compra e venda de sentenças.

Mas não foi o caso de Salomão Filipe, segundo David Mendes. “Não entendo como é que um juiz que se empenhou tanto e foi competente, acabou punido”, referiu o causídico que distribuiu uma carrada de elogios ao magistrado. “É uma pessoa idónea, competente” e que nada tem a ver com os que se envolvem constantemente em corrupção.

“Ele fez de tudo para inverter a tendência de um julgamento que se achava perdido”, lembrou, dizendo que, agora, resta questionar se valeu a pena ele “ter dedicado tanto tempo ao julgamento na primeira instância”. Criticou, por outro lado, o Tribunal Supremo que levou pelo menos três anos para que se pronunciasse sobre o caso, tendo sido, mesmo, forçado por uma carta dos familiares para o Presidente da República.

Segundo explicou, várias denúncias são apresentadas contra a actuação de juízes do TPL que, todavia, não têm qualquer serventia. Por exemplo, ele lembrou de um juiz que se apresenta, sempre, em estado de embriaguez e de um outro que tentou abusar de uma advogada. Denúncias contra ambos foram feitas sem que, contudo, fosse tomada uma posição. Para o advogado David Mendes é de estranhar que no caso de um juiz que acerta é justamente “punido por ser competente e dedicado”. E desabafou: “sinceramente, nunca vi”.

“Isso deve ter outras situações por trás”, acusou o causídico, dizendo que, com tal atitude, o Conselho Superior da Magistratura está a dar um exemplo de que, em Angola, “mais vale unir-se à corrupção e à irregularidade”.

Segundo explicou, a defesa interpôs recurso e o processo está a correr, sendo, na sua opinião, de estranhar a rapidez com que se tenha punido o juiz. “Estou bastante triste, há pessoas, neste país, que estão a tomar decisões sem pensar nas consequências que terão, neste caso, para a credibilidade na justiça angolana.

Ildefonso Manico que, há quatro anos, foi o advogado de defesa dos réus, questionado sobre a presente evolução do processo, optou pelo silêncio. Contactado por este jornal, o advogado disse que, sobre o assunto, prefere não tecer qualquer comentário.

 

Humilham-nos por sermos pobres

“Mataram oito jovens inocentes, depois soltaram os criminosos e, agora, punem o juiz?”, questionou-se Elias Borges, familiar de uma das vítimas do Massacre da Frescura. “Qual é a mensagem que nos querem passar?”, insistiu. No entender deste cidadão, o caso está a ter esses contornos por conta da precariedade financeira dos familiares. “Estamos a ser humilhado por sermos pobres”, considerou, acrescentando que “não nos espantaremos se, amanhã, nos vierem dizer que somos nós que matamos os nossos familiares".

Elias disse que os familiares estão a padecer, afinal muitos, entre as vítimas, eram o garante de sustento para os seus. Hoje por hoje, "os filhos deles não estudam, os pais estão a morrer de trombose, doenças causadas por frustração, desespero, pois ninguém aguenta perder filhos da forma que perdemos e sermos humilhados como estamos a ser pelos órgãos de justiça".

Aqueles familiares clamam, ao menos, por uma indemnização. "Estamos decepcionados com o governo", acrescentou. Antes, deixou uma palavra de conforto para o juiz. "Ao doutor Salomão Filipe estamos com ele, pois Deus nunca abandona os seus e por isso temos esperança de que a justiça dele vai acontecer".

 

Quando a justiça não julga

 

Diz uma máxima policial que “não existe crime perfeito, apenas uma má investigação”. Se for, de facto, assim, o que diremos de Angola onde perfilam vários crimes que, até agora, estão por esclarecer, juntando-se a esse rol o Massacre na Frescura. Nesta condição, também, estão ainda os assassinatos dos jornalistas Ricardo de Mello, do Imparcial Fax, de Alberto Chakussanga, da Rádio Despertar, cujos assassinos são, ainda, desconhecidos. Do mesmo modo, quem matou o deputado Mfulupinga Lando Victor não foi levado a tribunal. Os familiares dos dois jovens actores Nunes Mendes Ernesto e Danilson dos Santos, mortos no Sambizanga por supostos agentes da Polícia Nacional, quando gravavam um filme de assalto à uma cantina naquele município, não sabem quem foram os autores de tão bárabro acto. A morte por se esclarecer do militante da CASA-CE, Manuel Ganga, o mau julgamento do assassinato de Euridice Cândido figuram entre os casos em que a nossa justiça simplesmente se recusa ser justa.

  

A barbárie triunfou: Crónica de um crime violento

 

No dia 23 de Julho de 2008 foram mortos, com disparos de arma de fogo, os jovens Carlos Varanda e Aguinaldo António (primos), Paulo Garcia, Cristóvão Manuel, Elias Borges, André Nganga, João Van-Dunem e Santinho Guilherme, com idades compreendidas entre os 20 e 22. Foram as vítimas de um dos maiores massacres que aconteceu em Angola após a guerra civil que se registou por muitos anos.

Recorda-se que tudo aconteceu às 19 horas de uma quarta-feira, 23 de Julho, quando os jovens encontravam-se no Largo da Frescura reunidos em alta cavaqueira. Tudo indiciava que aquele dia seria mais um dia normal, afinal apreciavam a frescura do largo, como o faziam todos os dias. O que menos esperavam é que aquele seria o último dia das suas ainda curtas vidas.

Na altura, antes de tudo acontecer, tal como contou um dos vizinhos, passou pelo local, onde se encontravam os jovens, uma patrulha da Polícia, com cinco agentes na carroçaria e mais dois à frente, na cabine, o que deu, até certo ponto, um sentimento de segurança e alguma tranquilidade não só aos jovens, mas também aos demais munícipes.

Com a parecença policial, não havia razões para temer o pior ou qualquer espaço de manobra para acções delituosas, num bairro onde era normal um ou outro facto criminoso, dadas as suas características, ou seja, fraca iluminação, construções aleatórias de habitações e consequente labirinto de becos.

Contudo, o sentimento de segurança transmitido pela viatura policial, não passou de uma mera ilusão de óptica, porquanto, minutos depois, atrás de si, emergiu uma carrinha, que em marcha lenta e até certo ponto insuspeita, trazia consigo, afinal, um mensagem de morte.

De repente uma paragem bem a frente do local onde os jovens conversavam. Não uma paragem brusca, mas bastante ameaçadora. Os jovens observam um silêncio, pois três indivíduos, à paisana, armados de AKM, desceram do interior da viatura, interrompendo a conversa com ares ameaçadores.

As pessoas que presenciaram a chacina à distância disseram que, a partir daquele instante, ouviram "ninguém se mexe" e, mais do que isso, que todos, os oitos jovens se "deitassem no chão", com a barriga para baixo e as mãos sobre a região da nuca.

Sem compreenderem o que se passava na realidade, sem alternativas, os oito jovens obedeceram à voz de comando, na esperança que estavam diante de exercício de rotina, própria do patrulhamento, que aliás, se exigia no Mota.

Infelizmente, estavam errados. É que, os homens à paisana, que agora comandavam ou melhor tinham as suas vidas sobre as mãos eram assassinos, não estavam para brincadeiras e pareciam sedentos de sangue.

Mal se fizeram ao frio daquele início de noite, os jovens foram surpreendidos com vários disparos, que eram feitos a queima-roupa contra os mesmos, sem parar, manchando de vermelho paredes e chão daquele local, num cenário de verdadeiro terror, de que os familiares jamais esquecerão.

"Eles, os jovens, gritavam por socorro, que os homens que disparavam que parassem de disparar, mas pareciam não se importar com a gritaria e não paravam de atirar", contou na altura um dos vizinho.

Quando os homens acabaram de disparar, regressaram para a viatura, sem pressa, e desapareceram da zona, abandonado os corpos dos oito jovens no chão, seis dos quais tiveram morte no local, e dois que, estando ainda em vida, não suportaram os ferimentos e a perda de sangue. Acabaram por sucumbir numa das unidades hospitalar de Luanda, mas uma das vítimas antes mesmo de falecer terá revelado à cidadã Felismina Jorge o nome de Tchutchu e o Micha efectivos do Comando Provincial de Luanda.