Luanda - Recentemente tive acesso a uma questão colocada no meu blogue em que um internauta anónimo, a quem agradeço a abordagem, interrogava a razão de eu utilizar a terminologia Lei Constitucional em vez de Constituição, uma vez que o texto da Lei Magna vigente consagra esta última terminologia. Não é a primeira vez que sou assaltado por questões dessa natureza, as quais já me debrucei em conferências e entrevistas públicas, e também este texto não reflecte a primeira defesa escrita nesse sentido. Tenho publicado um outro texto em que justifico a utilização do conceito de Lei Constitucional que pode ser acessado na internet a partir do meu blogue ou no Club-K. De qualquer modo, nunca é demais apresentarmos outras e novas perspectivas da nossa defesa a esse respeito.

Fonte: jukulomesso.blogspot.com

Entendo, como de resto a Ciência do Direito Constitucional faz questão, que a Constituição, enquanto documento magno que reflecte a contratualidade da existência social dos homens, fruto do movimento constitucional desencadeado pelo iluminismo europeu e que derrubou a monarquia, comporta uma dimensão política e uma dimensão jurídica. Aquela tem sido considerada pela Teoria da Constituição como sendo Constituição Originária e esta, Constituição Derivada (os textos do constitucionalista português J.J. Gomes Canotilho muito em voga na nossa praça académica são eloquentes nesse sentido). A Constituição reflecte-se assim em dois momentos: um momento material (vontade política) e um momento formal (vontade jurídica). Sendo esta expressão clara daquela. Vem disto que o estudo da Constituição não é monopólio da Ciência Jurídica.


É reclamada em igual dimensão pela Ciência Política. Tal é razão metodológica dos estudos sobre a constituição serem feitos, nas faculdades de Direito, em cadeiras em que são aglutinadas as duas ciências, i.e., Ciência do direito Constitucional e Ciência Política. O processo constituinte é expressivo nesse sentido. Há uma dimensão política da constituição, constituída pelo sentimento de nação, que é monopólio do povo enquanto detentor do poder originário ou Constituição Originária (dimensão material) que é transferida por meio de voto (processo eleitoral) aos seus representes parlamentares que como mandatários políticos ganham o poder de formalizar (mediante texto) a mesma constituição. A vontade do povo (Dimensão Política) transfigura-se em texto (Dimensão Formal). O que nada impede que chamemos a essa última dimensão de Constituição Formal como é usual entre os estudiosos da Constituição.

 

E quando estamos perante uma Constituição? Como é lógica a falta de coincidência entre a vontade originária do povo e a vontade manifesta dos deputados, é obvio que a constituição aprovada por estes sofre declives epistemológicos e fissuras hermenêuticas significativos ao ponto de ser evidente uma nova dimensão completamente independente (dimensão formal). Vem disto que a Constituição Originária raramente é interpretada pela Constituição Derivada o que quebra a unicidade lógica que o levaria a ser efectivamente chamada Constituição. Assim, quando estamos perante um texto constitucional que não coincide com a vontade política da sociedade (Constituição Originária ou Material) estejamos certos de estarmos apenas perante uma Lei Constitucional, i.e., perante uma simples dimensão formal da Constituição que como tal não revela o seu aspecto material. É esta quebra epistemológica que potencia os conflitos políticos das sociedades. Pois, quanto mais coincidentes forem as dimensões formal e material da Constituição menor é o grau de conflitos sociais e maior é a possibilidade de afirmação de uma verdadeira Constituição. Podemos falar que aqui a dimensão ética do povo coincide com a dimensão jurídica, i.e., as leis reflectem a vontade do povo. É o que se passa em países com grau de civilização avançada como Inglaterra, para citar um exemplo, em que a dimensão material se aproxima tanto da dimensão formal da Constituição ao ponto da Ética se confundir com o Direito.

 

Portanto, é por razões de coerência científica e académica que chamo Lei Constitucional, para não trairmos o aprendizado e a doutrina maioritária e convencional vigente. Em Angola, como podemos calcular, não há espaço histórico para uma verdadeira Constituição como se pretende com tamanha avidez. Calculo que a Lei Constitucional é um começo para a aproximação de ambas as dimensões, já que Angola é uma das sociedades políticas, como a maioria das sociedades africanas, em que o nascimento do Estado (Constituição Formal) antecede ao nascimento da Nação (Constituição Material). Sendo uma infeliz inversão provocada pela História Colonial dos povos de África. Revela-se assim, uma tendência para fazer nascer uma dimensão formal que vá de encontro a uma dimensão material, porém (aqui está o problema) de forma impositiva ou forçada pelas opções ideológicas e políticas que persistem desde a independência da Angola em detrimento de uma maturação histórica natural como consequência da emancipação política do povo.


É minha percepção que, a tendência para a manipulação do conceito de Constituição tem mera finalidade política. Visa infundir a ideia de que a vontade jurídica é totalmente coincidente com a vontade do povo. Levando a uma obediência cega à lógica de governação em detrimento da afirmação de uma identidade nacional desenvolvida pelo sentido de liberdade dos indivíduos.