Luanda - LiesTVSe por hipótese fosse forçado a escolher um único tema para escrever com a necessária inspiração e o recomendável conhecimento de causa, até dar por concluída a minha breve passagem por este planeta e não me fosse dado um plano B como alternativa, não teria muitas dúvidas em escolher a mentira.

Fonte: Revista Vida

Correndo o risco de ser mal interpretado e de ser ética e politicamente incorrecto, no âmbito dos valores (ainda) predominantes, tenho de me confessar literalmente apaixonado pela mentira para todos os gostos e feitios, como sendo o verdadeiro pano para todas as mangas.

Mangas da escrita, mas não só, sendo, aliás, o verbo mangar da nossa infância a encarnação do próprio gozo com o parceiro, atribuindo-lhe todos os exageros possíveis de forma a deixá-lo a beira de um ataque de nervos ou de caspa.

Escrever sobre a mentira dá-me efectivamente um grande gozo, uma grande satisfação, porque sinto que estou a escrever as mais puras verdades que ninguém em sã consciência está em condições de desmentir, nem se atreve a tal, porque sabe que vai mentir, pois não está em condições de dizer a verdade sobre todas as mentiras que já inventou ao longo da sua vida.

Em abono da verdade, a mentira deverá ser a praia mais partilhada por todos os banhistas dentro e fora das nossas fronteiras, com a convicção de que afinal de contas, o mais importante na vida não é de certeza falar a verdade e só a verdade.

Em defesa desta tese estão os que acham que nem sempre que não se fala a verdade, se está a mentir, podendo-se estar apenas a omitir.

[E por que será que mentir rima com omitir?]

Efectivamente há coisas muito mais importantes na vida, sendo a principal a própria sobrevivência numa hierarquia de prioridades e valores onde a verdade e a mentira estarão mais ou menos no meio da tabela de uma classificação que pode variar para mais ou para menos.

É importante que também não varie muito para menos, em nome da mesma sobrevivência.

Dizer que toda a gente mente ou que pelo menos já mentiu uma vez na vida é daquelas verdades tão cristalinas que todos aceitamos da forma mais pacífica possível, porque faz parte da natureza humana, é estrutural, é intrínseca do ser social que somos, com todas as imperfeições que nos caracterizam.

Somos tão imperfeitos, que para a nossa própria protecção/sobrevivência enquanto espécie, começamos logo por aceitar que errar é humano, conhecedores que somos das nossas potencialidades e limitações, virtudes e defeitos.LiesTV

E não se devia falar mais nisso.

Mas mesmo assim continua-se a falar e muito, porque somos atormentados pela nossa consciência, num confronto permanente e diário de contrários que termina sempre empatado para não nos desintegrarmos, quer como indivíduos, quer como sociedade de entes humanos mais ou menos civilizados.

Se mentir é errado e o erro é humano, então não faz mal nenhum mentir de vez em quando, porque o que é condenável é persistir no erro, ou seja, o que é condenável é mentir muito.

Se tivéssemos que parafrasear tudo, diríamos que mentir é humano, não sendo contudo muito aceitável que passemos a vida toda a aldrabar os outros, porque aí já corremos o risco de sermos os diabos de nós próprios.

Como se sabe o homem já é o lobo do homem, pelo que passaria também a ser o seu demónio, sem grandes dificuldades, completando-se assim mais um triângulo entre o amor, o ódio e a indiferença.

Em linguagem  mais terrena os diabos seriam os trafulhas profissionais, uma espécie em ascensão em todo o mundo, não sendo Angola própriamente uma excepção desta tendência, numa altura em que tudo está sempre a subir aqui na banda.

Não é preciso ser-se um grande analista de mercado para se perceber que esta tendência se está a agravar com a globalização e com a virtualização da nossa vida real, através da Internet, onde por agora quase tudo passa e pelos vistos vai passar ainda mais.

[Ps. De facto a Net é hoje o grande refugio de todos os trafulhas deste mundo de que Angola é parte integrante e legítima, sendo as suas manifestações mais políticas ou politizadas particularmente visíveis nas redes sociais, onde a maior parte deles não tem sequer a hombridade de assumir a sua verdadeira identidade, apesar de estarem contratados por quem de direito para exercerem funções de vigilância e delação.]

Não é preciso ser-se um grande conhecedor da realidade angolana para concluirmos que em todos os domínios e sectores, o país tem agora muito mais trafulhas do que tinha antigamente, pelo que a relação com  a mentira tem entre nós um futuro cada vez mais promissor, a manter-se a actual conjuntura.

O que é preocupante nesta constatação e nas nossas contas é o número e a velocidade com que os trafulhas estão a conquistar posições privilegiadas no mercado de bens e serviços, com destaque para a política, sendo por isso importante esta reflexão no mês consagrado a esta instituição global que é a mentira, com a qual todas as sociedades coabitam.

Dizer que as pessoas coabitam com a mentira de forma natural, embora passem a vida a condenar o seu recurso, parece-nos ser uma das grandes verdades do nosso tempo que não merece contestação.

NA-Texto publicado no semanário “O País/Revista Vida/Secos e Molhados” (4-04-14)