Luanda - O passado é coisa que o general e deputado Lukamba Gato, 59 anos, já não quer abordar com frequência. Prefere deixar isso para os historiadores, apesar de não conseguir esquecer o percurso que o levou a dirigir a UNITA nos momentos derradeiros do conflito armado, que culminou com a assinatura do Memorando de Entendimento do Luena, em Março de 2002.

Fonte: O País
Ainda assim, nesta entrevista que concedeu a O PAÍS momentos antes da celebração do 12 aniversário da Assinatura dos Acordos de Paz, no Palácio dos Congressos, o antigo secretário-geral da UNITA recorda ligeiramente o processo, as suas envolventes e o desafio que foi dirigir transitoriamente a organização a que pertence depois da morte do líder fundador, Jonas Savimbi

O que é que ainda não foi dito em relação ao processo que nos levou à paz em 2002?
Gostaria de dizer que o Memorando do Luena pôs termo a um período longo de desentendimentos entre nós os angolanos. Foram 27 desentendimentos desde 1974. Acho, por isso, que o Memorando do Luena é uma boa plataforma que deveria ser melhor aproveitada para que, em conjunto, pudéssemos decantar e edificar os pilares estruturantes para a construção de uma nova Nação, com base na concórdia. Para a construção do país novo, de entendimento, diálogo, se tivermos em conta que vivemos um período longo.  

Portanto, era preciso aproveitar melhor essa flagrante oportunidade, para que o Luena fosse o ponto de partida para uma nova fase de convivência, diálogo, reconstrução, reconciliação, em que definitivamente devíamos aprender com os efeitos nefastos da guerra. Devíamos aprender a viver, juntos e construirmos o país unidos, na base do diálogo inclusivo e dos mais amplos consensos nacionais.

O que é que não se aproveitou do Memorando do Luena?
Acho que continuamos com um enorme défice de diálogo. Mais do que celebrar vencedores e criticar os vencidos, devíamos aprofundar o conhecimento de como vivermos juntos na nossa diversidade politica, cultural, racial, linguística, etc.

Mais do que insistirmos  na lógica de vencidos e vencedores, acho que devíamos dialogar para encontrarmos o máximo de pontos de convergência de pontos de vista sobre o futuro do nosso país, pois de contrário estaremos a passar ao lado dos grandes objectivos.

Não levantaram estas questões quando chegaram ao Luena regressado das matas? Ou acabaram por negociar o processo de paz com alguns condicionalismos?
Não houve condicionalismo na negociação de forma nenhuma. Foi apenas preciso que as partes envolvidas manifestassem a vontade política de dizer que tinha terminado  uma fase negativa da nossa história, fechámos essa  fase  dramática, então abramos uma nova página. Mas estou convencido que a geração que esteve envolvida no conflito ainda não se despiu de alguns preconceitos. Já vai longe o período em que havia quem se reclamasse de  único e legítimo representante do povo angolano, mas hoje essa pretensão já não pode existir mais. Hoje cada um de nós representa alguma coisa, logo se quisermos representar o todo temos de estar unidos e dialogar.

Este triunfalismo que aponta não estará associado aos momentos finais do conflito?
Eu continuo a pensar que uma guerra filosoficamente não é bem o conflito entre os dois exércitos. A guerra, os estrategas dizem que é a continuação da política por meios violentos, portanto é uma questão política. A guerra na minha perspectiva é o conflito entre duas visões, entre dois projectos ou ainda duas concepções sobre um fenómeno social. Por isso,  acho que perde a guerra aquele que tem de abandonar o seu projecto inicial.

Os dois projectos que se confrontaram foram o do partido que preconizava um estado de partido único, uma economia centralizada, o poder popular, etc. E o outro que preconizava uma democracia multipartidária, até porque ,desde a génese, nós nascemos com o gene do multipartidarismo. Houve três movimentos que se bateram para a independência do país, desde logo não podia haver dúvidas quanto à essa perspectiva.

O projecto do velho Jonas que preconizava a democracia multipartidária, uma economia de mercado e um estado de direito, é o projecto que bem ou mal prevalece e temos de aprofundar. Mais do que isso penso que há necessidade de aprendermos com os erros do passado, até porque os conflitos em África, 50 anos depois das independências, estão a proliferar um pouco por todo o lado. Na RDC, República CentroAfricana, Moçambique, Sudão, Mali, Madagáscar, há conflitos por todo o lado e não é através de soluções militares que se resolvem estes problemas.

Temos de encontrar soluções políticas, aprender e usar o tempo que nós temos para analisarmos quais são as causas dos conflitos cíclicos, para que as ataquemos e irmos com a certeza de que sim, estamos a partir de um base consensual e teremos estados com instituições sólidas e permanentes, como acontece um pouco por todo o lado nos países mais desenvolvidos.

Disse que não quer falar do passado, mas não posso deixar de perguntar se ainda revive os momentos mais difíceis que passou na mata, a morte de Jonas Savimbi, outras peripécias que passou até chegar ao Luena e depois dirigir a Comissão de Gestão? Valeu a pena?
Valeu a pena se quisermos aprender. A 22 de Fevereiro de 2002 morreu o velho Jonas. Pouco tempo depois faleceu o vice-presidente António Dembo e o estatuto da UNITA era omisso para resolver o problema da vacatura criada nessas circunstâncias.

Nós tivemos que assumir as nossas responsabilidades na qualidade de secretário-geral. Pude rapidamente reunir à minha volta um certo número de camaradas da direcção com quem  analisámos profunda e realisticamente a situação da própria UNITA, do país, da região, do continente e internacional. Chegámos à conclusão de que talvez fosse o momento a ser aproveitado para fazer uma démarche construtiva, embora eu continue a dizer que, desde os finais de 2001, o velho Jonas tivesse manifestado intenção séria e até mandatou camaradas nossos da Missão Externa a estabelecerem pontes, contactos com vista a uma situação negociada.

Portanto, nós não fizemos senão aquilo que o velho Jonas nos últimos seis ou sete meses evocava, uma saída política mas, por força das circunstâncias, o Governo tinha já entrado numa lógica, aliás foi assim definida: ou morte em combate, prisão ou rendição. Um dos três cenários aconteceu, mas não fomos forçados a ir para a negociação.

As informações, algumas delas vindas da Missão Externa da UNITA, de que o Governo negociava com prisioneiros não eram verdadeiras?
Era difícil naquela altura a partir da Europa fazer uma leitura exacta do que acontecia no terreno, mas hoje com este recúo de 12 anos podemos facilmente juntar as peças e identificar os factos. E que não houve negociação entre homens livres e prisioneiros.

De facto houve a negociação mais equilibrada do que podia ser em função da correlação de forças vigente na altura, mas o mais importante era, na minha óptica, aproveitar aquele momento histórico para iniciarmos uma nova etapa, uma nova fase do processo de desenvolvimento da nossa democracia.

Quando soube das mortes do então presidente da UNITA, Jonas Savimbi, e do vice-presidente António Dembo, não sentiu um peso sobre as costas quando viu que era a pessoa que tinha de conduzir o barco e a quem seria imputado possíveis erros na condução do processo?
Confesso que não realizei isso logo de seguida. Foram precisos dois, três dias de reflexão, olhei à minha volta, vi que a ofensiva do Governo está a continuar e que devia haver um outro objectivo. Conclui que o objectivo eramos nós, então era preciso utilizarmos a nossa inteligência, aguçarmos os nossos sentidos e trabalharmos em função daquilo que é hoje por todos considerados como um processo que teve a génese, o seu desenvolvimento, mas com resultados em termos nacionais bastante mitigados se considerarmos que afinal a paz não é só o calar das armas.

A paz tem que ter um conteúdo do ponto de vista político-institucional, económico, cultural, etc.

Depois de ter saído da mata, dirigiu a Comissão de Gestão…
Foi a estrutura que nós encontrámos por iniciativa nossa na mata. Não podíamos reunir a Comissão Política, o Comité Permanente, encontrámos a fórmula Comissão de Gestão, que mereceu o apoio  da grande maioria dos camaradas dirigentes, quadros e os militares que estavam nas diversas partes do país. Foi graças a essa Comissão de Gestão que nós conseguimos decantar um programa imediato, que tinha quatro pontos: primeiro, cessação unilateral das hostilidades aproveitando o 13 de Março, quando fizemos uma conferência via rádio com todos os comandantes e quadros do país no dia 7 de Março.

Eu propus aos meus camaradas a cessação unilateral das hostilidades no dia 13 de Março. Segundo, procurar estabelecer contactos com o Governo com vista a encontrarmos as vias para o diálogo conducentes ao processo de Lusaka.  Em terceiro lugar, a necessidade de reunificação do partido e, o quarto ponto, a organização de um congresso para a normalização institucional do Partido. Portanto, este foi o programa que apresentei aos meus colegas e que teve aceitação de todos. A partir do dia 7 e 8 começámos a trabalhar neste programa até que chegou o congresso de 2003.

Acha que a Comissão de Gestão que liderou conseguiu cumprir cabalmente com o seu papel?
Modestamente penso que sim. Mesmo os mais cépticos ou aqueles que eram os meus críticos concordam que em pouco mais de um ano e meio a Comissão de Gestão cumpriu com os quatro pontos que tinha definido como programa de acção imediato.

Porque é que depois da assinatura do Memorando do Luena, dos Acordos de Paz na Assembleia Nacional, houve necessidade de a Comissão de Gestão da UNITA e o Governo do MPLA chegarem ao conhecido Acordo de Alvalade? O que é que foi discutido concretamente nestas negociações?
Alvalade surgiu na sequência do desenvolvimento do diálogo. Surgiu da necessidade de desbloquear, se quisermos utilizar esta expressão, o processo constituinte anterior, que estava enquistado por razões várias.

Havia o mecanismo bilateral de concertação, que era uma estrutura paralela à Comissão Conjunta. Deixame esclarecer: a Comissão Conjunta era o órgão reitor do Memorando do Luena. Geria as questões pendentes de Lusaka.

Por isso, criámos paralelamente um mecanismo de concertação, que era um fórum em que as duas partes tentaram discutir questões de interesse nacional. Correcto? Não sei se me faço entender. Foi neste quadro, neste espaço de concertação, que surgiu a necessidade de abordagem do desbloquear do processo constituinte que tinha entrado num impasse. Havia duas posições: o MPLA era a favor de um sistema de governo semi-presidencial com pendor presidencial e a UNITA e a oposição de um sistema parlamentar.

Através do mecanismo bilateral chegámos a um entendimento em Alvalade. Entendimento este que consistiu em desbloquearmos de facto a situação. Penso que houve progressos que nos levaram a encontrar um consenso à volta da constituição e sistema de Governo. Encontrámos um consenso à volta dos problemas mais difíceis que emperraram o processo constituinte. Então em duas palavras: Alvalade consistiu em avançarmos para um sistema semi-presidencial com pendor presidencial.

A bandeira nacional já tinha sido aprovada por concurso público e havia uma outra, o hino nacional que seria  a mesma melodia numa letra diferente. Havia a possibilidade de coabitação entre um Presidente da República de uma família política e uma Assembleia ou maioria parlamentar de uma outra, o que não é possível na actual Constituição.  Havia, por exemplo, a cláusula de que quem ganhasse na província governava, portanto era já o princípio da autarquização. Quem ganhasse na província não indicava o governador, mas sim governava a província. Tinha havido, de facto, alguns progressos se nós compararmos com a Constituição actual.

Não gosto muito de falar disso, não sou o pai de Alvalade, mas penso que o bom senso leva qualquer indivíduo que esteve envolvido directa ou indirectamente a concluir que talvez o país tivesse mais ganhos indo para a lógica do Alvalade do que com a Constituição actual, que considero que foi de um grande retrocesso no processo de democratização do país.

A UNITA conseguiu rever alguns pontos pendentes dos Acordos de Lusaka através do mecanismo bilateral, como por exemplo as empresas diamantíferas, a inserção dos seus dirigentes ou a devolução do seu património?
Não, porque na fase final que levou até à extinção do mecanismo bilateral eu já não estava na gestão dos assuntos. Não sei exactamente o que se passou.

Bateu-se por estes assuntos quando esteve à frente da Comissão de Gestão?
É evidente, foi por isso que eu sugeri a criação do Mecanismo Bilateral para trabalhar paralelamente com a Comissão Conjunta. Foi minha sugestão.

O que é que conseguiu do Mecanismo Bilateral?
Consegui criar este fórum de diálogo e concertação. Um diálogo sem agenda, aberto, que me pareceu sincero e profundo sobre as questões definidas como sendo de interesse nacional. O que não tinha nada a ver com a questão da gestão do quotidiano do trabalho da Comissão Conjunta, que era a gestão dos pendentes do Protocolo de Lusaka.

Resolveu-se a questão dos pendentes?
Eu acho que não. É por isso que estamos hoje na situação que vivemos, em que, se formos a fazer um levantamento das questões pendentes, ainda há muito trabalho para se fazer. É a resolução destes pendentes que podem de facto ajudar na criação de um clima de melhor entendimento, diálogo.

Deixa dizer que fomos nós também da Comissão de Gestão que sugerimos, já naquela altura, em 2002/2003, a necessidade de Angola evoluir para um Pacto de Regime. Eu hoje ouço em círculos políticos falarem dessa necessidade. Porque é que não encontramos um Pacto em relação aos problemas da educação, saúde, etc.? Mas nós tínhamos proposto já naquela altura, em 2003, um pacto global, mas só que muitos deliberadamente interpretaram como se nós estivéssemos a propor um “Pacto com o Regime”. Mas nós não queríamos um pacto com... mas sim um pacto de..., que é uma diferença como do dia para a noite.

‘Talvez um dia, venha a redimensionar o meu projecto e voltar a propô-lo aos militantes do meu partido’

Com a morte de Jonas Savimbi, houve alguns receios em relação ao futuro da UNITA. Como é que vê o partido hoje?
Contínuo a pensar que a UNITA é o projecto alternativo para Angola. A UNITA é um projecto sério, sólido mas também é verdade que precisa de ser mais dinâmico, mais actuante, mais presente. Mas contínuo a pensar que a UNITA continua a ser um projecto válido, alternativo ao MPLA e temos estado a trabalhar no sentido de vermos se conseguimos concretizar os nossos objectivos.

Quando dirigiu a Comissão de Gestão disse que não podia ser nem árbitro nem jogador no IXº Congresso do seu partido. O que é que o levou reconsiderar o que tinha dito e concorrer à liderança do partido?
É muito simples. Senti que estávamos a ir para a lógica de um candidato de consenso e isso mataria a democracia interna e o próprio espírito democrático.

Quem era o candidato de consenso?
Estávamos a ir para um candidato de consenso e isso não é democrático. A democracia consiste em ir à disputa com várias candidaturas e permitir aos cidadãos escolher livremente o dirigente da sua escolha como se fez. E isso só foi possível graças à minha intervenção. A partir daí a UNITA dirigiu o processo que abanou um pouco as outras forças que tiveram que ajustar a sua dinâmica àquilo que foi a criada pelo IX Congresso. Eu acho que foi também um facto político de grande monta, mesmo sabendo eu que partia em desvantagem.

Certamente que tinha um projecto para a UNITA ou agora revê-se no da actual liderança?
Concorri porque evidentemente tinha um projecto, uma visão, para dirigir a UNITA naquelas circunstâncias. Continuo a ser um militante e dirigente do partido, disciplinado e que respeita as instituições do partido. Talvez um dia, quem sabe, venha a redimensionar o meu projecto e voltar a propô-lo aos militantes do meu partido.

Como é que encarou as primeiras eleições depois do alcance da paz? Será que a morte do líder pesou muito nos resultados?
Lembro-me que o velho Lopo disse na Assembleia Nacional que em África as eleições são muito complicadas, sejam as eleições nos partidos, ou as de carácter nacional. E é preciso que haja uns e outros, sobretudo os organizadores, que façam prova da maior transparência e que ganhe efectivamente o melhor.

Portanto, em 2008 organizaramse as eleições possíveis naquelas circunstâncias. A UNITA considerou que o processo foi viciado em toda a sua linha do princípio até ao fim com todas as consequências. Em África temos que fazer um grande esforço para que as eleições sejam de facto transparentes, para que no fim possa-se dizer que ganhou efectivamente o melhor.

É este o compromisso que devíamos assumir em África quanto aos nossos processos eleitorais, para evitar que cada eleição seja uma fonte de discórdia, quando cada eleição devia ser um momento de festa e abraços porque venceu o melhor, mesmo os adversários mais acérrimos são capazes de apertar as mãos porque você jogou melhor e venceu. É para aí que devíamos avançar.

Nas eleições de 2012 conseguiu-se corrigir estes erros?
Fez-se um esforço em 2012, mas mesmo assim houve zonas que continuaram cinzentas e esperamos que este processo de aprimoramento dos nossos mecanismos de eleição continue a avançar, porque também não basta nós criticarmos que alguém jogou mal. É preciso que nós joguemos melhor que o adversário em todos os aspectos.

Que tipos de zonas cinzentas existiram nas últimas eleições de 2012?
Há zonas cinzentas num processo.

É preciso credenciar atempadamente os delegados de listas, que as listas eleitorais sejam publicadas e as pessoas saibam pelo menos um mês antes onde é que vão votar. Não é no último dia que alguém que vive no Huambo vai ter de votar no CuandoCubango.

Mas em termos de resultados a UNITA conseguiu atingir os seus resultados?
Nem pensar! O objectivo da UNITA é formar Governo. A nossa intenção é formar Governo, não é passar de 16 para 32 deputados. Isto está aquém dos objectivos que nós preconizamos, que é obviamente formar Governo neste país, para podermos implementar o projecto que a UNITA apresentou aos eleitores desde 1992, 2008 e 2012.

Como é que vê o processo democrático no país? Está a melhorar?
O processo democrático implica necessariamente actores democráticos. Os actores são os partidos políticos. Para além dos actores, precisa de ordenamento jurídico que o favoreça e disse aqui que a Constituição actual, comparada com a que estava projectada nos Acordos de Alvalade, é um retrocesso, mesmo se tivermos de compará-la com a  lei que esteve em vigor até à aprovação da nova Constituição. É preciso que tenhamos coragem e digamos: vamos virar definitivamente esta página e avancemos para um sistema multipartidário aberto, transparente, com um ordenamento jurídico que permita de facto este exercício.

Estamos num processo de aprendizagem, Angola viveu durante muito tempo um sistema de partido único e sabemos que não é fácil em cinco, seis anos que as pessoas abandonem as taras que foram sendo acumuladas ao longo do sistema de partido único.

Havia um único e legítimo representante de todos os angolanos, um partido estado, mas agora é preciso relativizar as coisas. É preciso pensar que o MPLA representa alguma coisa, a UNITA representa também, a FNLA e outros partidos também alguma coisa. E respeitarmos esta diferença de opinião para avançarmos para uma democracia sólida, política, económica e cultural, mas com bastante solidez. Como digo, estamos num processo de aprendizado e o importante é termos vontade de aprender, fazermos cada dia melhor e não recuar.

A oposição tem sabido dar o seu contributo neste sentido?
Infelizmente, batemo-nos com o problema da dificuldade que persiste na transmissão do debate político da Assembleia Nacional em directo, para que os eleitores possam acompanhar de perto, pelo menos uma vez por mês, não deve ser muito caro assim, o que é que os seus representantes têm estado a discutir.

Visto de fora, parece que a Assembleia é mole, a oposição não está a cumprir com o seu papel, mas para as pessoas que acompanham aquilo de perto, os que estão no hemiciclo ou na plateia a assistir, sabem que a oposição tem-se batido com bastante energia e inteligência, pese embora as dificuldades que o próprio processo em si encerra ou os obstáculos que a Constituição ainda coloca.

Mas eu penso que, globalmente, a oposição tem sabido levar a cabo a sua missão, mesmo se, como disse, estamos todos num processo de aprendizado, temos que continuar a aprofundar, aprender, para fazermos cada vez melhor.

O surgimento da CASA-CE alterou de alguma forma o nosso xadrez político?  
Eu penso que sim, é sempre bom o surgimento de uma força política independentemente de onde tenham vindo os seus principais actores.

Penso que é sempre bom para uma democracia jovem como a nossa surgirem forças determinadas a desempenhar o seu papel. A CASACE tem sabido animar o debate e pensamos que tem sido um factor positivo, contrariamente ao que muitos pensam. Tem sido um factor bastante dinâmico e é bom para a nossa democracia.

Trata-se de uma coligação fundada, sobretudo, por antigos companheiros seus da UNITA, como Abel Chivukuvuku e outros. Isso não o preocupou?
Penso que é um processo normal, as pessoas são livres porque vivemos em democracia. Antigamente você saía de um partido e era sinónimo de morte política, mas felizmente hoje as pessoas têm opções: Posso manter-me no meu partido, ‘congelar’, como se diz na gíria política, criar um partido, mudar de partido.

Portanto, é bom esta abertura democrática desde que tudo concorra para a consolidação do processo democrático.

‘As pessoas não sentem o trabalho que os deputados estão a fazer na Assembleia’

Evocou há pouco o deputado Lopo do Nascimento, que recentemente abandonou a Assembleia Nacional. Mas foi ele que disse que os nossos deputados devem deixar os debates de infantário e concentrarem-se nas questões mais sérias. Qual é a visão que o deputado tem do nosso Parlamento e qual é o feed back que tem recebido da população?
É preciso acompanhar os debates e que os deputados assumam em definitivo o seu papel de representantes do povo, com toda a coragem, responsabilidade, abertura e sobretudo com toda a honestidade do ponto de vista intelectual.

Tem havido falta de honestidade no Parlamento?
Tenho de ser honesto, que eu faço as minhas intervenções como homem livre, como representante do povo. Faço as minhas pesquisas, as minhas intervenções e que seja uma contribuição efectiva ao debate, em vez de se fazer um exercício mais complicado, de acomodar interesses aqui e acolá, mais no interesse de quem nos coloca na lista do que de quem nos elegeu.

É isso que tem acontecido?
Eu acho que sim. Acho também que enquanto este modo de eleição continuar, os deputados têm este constrangimento.

Quais são os grandes desafios da Assembleia?
Um é este: tornar o debate aberto.

Isso é importante. Tornar o debate conhecido pelos eleitores. O segundo: o grande desafio da Assembleia Nacional, na minha maneira de ver, é aprimorar os mecanismos de iniciativa legislativa da Assembleia, significa dos partidos políticos.

Por norma, a Assembleia discute e aprova os diplomas propostos pelo Executivo. Portanto, é preciso que a Assembleia assuma completamente as suas responsabilidade, aprove os diplomas vindos do Executivo, mas também as suas componentes tenham alguma iniciativa legislativa.

A nossa bancada teve agora uma iniciativa, propusemos um projecto-lei sobre o poder local e que depois de um debate – penso que foi o mais acalorado que vi nestes oito anosinfelizmente o projecto foi chumbado. Não porque continha imperfeições, mas talvez porque não foi da iniciativa do maioritário ou foi julgado extemporâneo. Seja como for, é uma iniciativa louvável, virão outras e vamos manter a lógica de que ‘água mole em pedra dura tanto bate até que fura’.

Acredita existirem condições para se poder avançar para as autarquias?
Penso que sim. Basta haver vontade política, porque penso que o país está em condições. Se quisermos partir do princípio de que as autarquias são os municípios, não é verdade, que o limite das autarquias coincide teoricamente com a divisão administrativa actual de um município, o que é que está a faltar?  Penso que só está a faltar vontade política.

Os parlamentares do MPLA evocam a inexistência de uma série de condições, incluindo legais para o efeito.

O que pensa?
Isso é normal. Estamos num jogo político de interesses e cada um joga de acordo com os seus interesses.

Acredita que o MPLA não está interessado nas eleições autárquicas?    
Eu estou convencido que está interessado, assim manda a Constituição, mas parece-me que o MPLA ainda não se sente seguro para enfrentar esse desafio. Em todo o caso não se pode mais recuar, isto é um processo, é um dado adquirido, mas talvez não conste ainda da agenda imediata do partido maioritário. Mas é incontornável, o país é grande, tem tantas assimetrias regionais e a única maneira de ultrapassá-las é esta forma de governar. Até mesmo para a solução do eterno problema de Luanda.

A solução do eterno problema de Luanda passa pela implementação do projecto de autarquias, caso contrário vão passando por aqui governadores, vamos queimando os governadores e não se resolve o problema de Luanda. Só as autarquias é que vão resolver o problema de Luanda, quando se poder implementar a máxima do velho Jonas que diz que  “para a solução dos problemas económicos e sociais do país, investir no campo para beneficiar as cidades”.

E as pessoas vão regressar ao campo, estou convencido disso, embora alguns economistas e outros  estudiosos pensem que as pessoas que se instalaram em Luanda já não regressam, vão regressar porque haverá também oportunidade nas autarquias, nos municípios, nas aldeias.

E quando houver oportunidades nos municípios, as pessoas vão produzir mais, vão beneficiar a cidade, haverá diversidade de mercadorias, os preços vão necessariamente baixar, a delinquência vai diminuir, o cancro do trânsito diminui porque todos nós vamos embora para as nossas províncias. A solução do problema de Luanda também passa pela autarquização do país.

Está há oito anos no Parlamento e tem visitado o interior do país enquanto parlamentar. Qual é a opinião que as pessoas têm dos deputados?
Confesso que a opinião da grande maioria da população sobre os deputados está deturpada, exactamente porque as pessoas não sentem o trabalho que os deputados estão a fazer na Assembleia. Mas nós também temos estado a percorrer o país, os municípios, as comunas no nosso trabalho como deputados e chegamos a conclusão de que há um desconhecimento da parte da população. Esse desconhecimento é provocado em grande parte pela não transparência, não abertura do trabalho que os parlamentares levam a cabo a nível da Assembleia.

Portanto, alguns pensam que o trabalho dos deputados é resolver os problemas materiais das pessoas, como é que não os resolvem? Esses problemas de governação são da responsabilidade do Executivo. Aos deputados cabe legislar de acordo com o interesse nacional, esse é o nosso trabalho, mas muitos pensam que talvez os deputados não têm feito o suficiente. De facto não, porque temos uma maioria esmagadora de deputados que apoia o Executivo, que tem uma visão diferente daquela que nós preconizamos.

A vida das pessoas melhorou nos últimos 12 anos?
Basta ver que o êxodo das pessoas do campo para as cidades continua, ainda não estancámos. As pessoas ainda continuam a sair das regiões mais recônditas para a capital à procura de melhores condições. Não encontram as condições desejadas, o ‘el dorado’ na capital, mas também há dificuldades em regressar, daí os problemas que a capital conhece. Portanto, se de um lado está-se a fazer um esforço em termos de infraestruturas, do outro era preciso investir mais e cada vez melhor no homem.

Era preciso dar um sinal de que há vontade de resolver os problemas que afectam directamente a vida das pessoas. Problemas de escolas nas nossas aldeias, municípios, a saúde continua precária, as pessoas ainda têm de vir a Luanda resolver problemas dos dentes e da malária, o problema do emprego.

É verdade que nós não somos de opinião de que o Estado seja o maior empregador, mas é preciso criar oportunidades para que os angolanos possam exprimir os seus talentos através da iniciativa privada, porque até já foi aprovada a lei das micro e pequenas empresas privadas, é só uma questão de implementar.

Isto passa por criar condições de igualdade de acesso ao crédito para que aqueles que são empreendedores possam absorver a mão-de-obra que está espalhada por todo o lado. Eu penso que, mais do que colocar betão, é preciso responder às aspirações mais directas que afectam o dia-a-dia das populações.

A estrada, o aeroporto e o hospital são importantes, mas as pessoas têm de comer todos os dias. A solução não é o assistanato, distribuir meios, os angolanos são trabalhadores e podem trabalhar se tiverem oportunidade. Então é preciso dar oportunidade aos angolanos.

Acredita que há uma dualidade de critérios na atribuição de orçamentos para as províncias?
Penso que sim, pelo menos aí onde temos andado as assimetrias e as necessidades são gritantes. Está tudo acumulado em Luanda. Basta vermos que se estudarmos cuidadosamente o Orçamento Geral do Estado vamos ver que há uma grande concentração da massa monetária na capital e nas estruturas centrais.

Isso explica tudo e não é preciso até ser um observador muito atento. Basta olhar para as cifras para chegarmos à conclusão de que aqui há um problema de concentração de meios em detrimento do interior. Precisamos de ir rapidamente para o interior se nós quisermos resolver e devolver a esperança aos angolanos.

O malogrado líder da UNITA, Jonas Savimbi, faz falta neste momento?
Eu penso que sim. Uma figura como velho Jonas, mesmo estando na oposição, seria sempre um factor de pressão contra quem estiver a governar. Portanto, completaria bem este processo democrático, mas já não existe...