Luanda – A priori, colocamos as seguintes questões: será que uma sociedade lúcida absorve todas as estruturas e formas culturais exteriores sem filtrá-las através dos vários mecanismos de equilíbrio que possibilitam a manutenção da sua identidade? Pode um povo lúcido alienar-se da sua substância de causa e perder-se em futilidades? Como as futilidades servem aos interesses de grupos hegemónicos?

Fonte: SA
Nuno Dala.jpg - 34.91 KBEfectivamente, o Big Brother Angola configura a absorção acrítica de uma estrutura cultural exterior à Angola. Mas, então, o que é o Big Brother?

De acordo com Wikipédia 2014, “Big Brother é um popular Reality Show onde, durante cerca de três meses, um grupo de pessoas (geralmente menos de 15) fica confinado sem contacto com o mundo exterior.

Dentro da casa onde os participantes ficam confinados não se pode acessar internet, canais de televisão nem estações de rádio por exemplo. Os participantes têm como objectivo permanecer na casa até o último dia, quando a audiência escolherá, por meio de voto (internet ou telefone), quem será o vencedor e ganhador do grande prêmio final.

Apesar de o vencedor só ser escolhido no último dia do programa, as pessoas da casa são obrigadas a votar em um ou dois participantes para ser eliminado do programa. Esses participantes vão para o “paredão” juntamente com o participante indicado pelo Líder, dentre os participantes que estão no paredão o que receber mais voto popular deixa o programa.

O Líder é um participante que conta com privilégios que os outros participantes não contam. Ele é imune, ou seja, não pode ser colocado no paredão. Ele também escolhe sozinho um dos participantes que vai para o paredão, além de ter um quarto especial só para ele, com alguns confortos a mais. Toda semana é realizada uma prova que define quem será o Líder daquela semana, podendo ser outra pessoa ou o mesmo que foi Líder na semana anterior”.

A Wikipédia 2014 prossegue, afirmando que “em 1999, John de Mol, um executivo da TV holandesa, sócio da empresa Endemol, teve a ideia de criar um Reality Show onde pessoas comuns seriam selecionadas para conviverem juntas dentro de uma mesma casa, vigiadas por câmaras, 24 horas por dia.

O nome do programa foi inspirado no nome de um personagem do livro 1984 de George Orwell: Big Brother (em alguns países o nome do programa é traduzido, o que não foi o caso de alguns, como o Brasil ou em Portugal).

O termo em inglês Big Brother surgiu devido à novela escrita por George Orwell, intitulada 1984. Big Brother (ou Grande Irmão como foi traduzido nas versões lusófonas do livro) é o líder que tudo vê da distópica Oceania, governante do mundo ocidental em um futuro fictício.

Representado pela figura de um homem que provavelmente na trama não exista, vigia toda a população através das chamadas teletelas, governando de forma despótica e manipulando a forma de pensar dos habitantes.

O Big Brother orwelliano, na verdade, é o apresentador do programa. Ele é o único contacto que os participantes têm com o mundo fora da casa. Além disso, como por exemplo na versão brasileira com Pedro Bial, o apresentador também assume a função de grande irmão ao instruir psicologicamente os participantes. É curioso notar que como em 1984, quando os participantes do Big Brother veem a éfige do apresentador na tela, esses o enaltecem da mesma forma que os habitantes da Oceania fazem com o “Grande Irmão”.

Ora, o Big Brother já foi/tem sido realizado em diversos países, tais como Alemanha, Argentina, Brasil, Bélgica, Portugal e Tailândia. Assim, Angola também passa a fazer parte desta lista. Depois de 60 dias, o Big Brother Angola chegou ao fim, tendo sido eleito vencedor o cidadão Luís da Silva Andrade, mais conhecido por Larama. Sim, o Larama, por quem milhares de angolanos nutrem admiração!

Larama é efectivamente admirado, adulado e idolatrado por milhares e – talvez – milhões de angolanos: jovens e adultos(as), homens e mulheres, héteros, homossexuais e lésbicas, religiosos(as) e não-religiosos(as), solteiros(as) e casados(as), indoutos(as) e instruídos(as), etc.

O Big Brother Angola é certamente um evento que tem permitido perceber várias questões sobre o tipo de sociedade que temos. Durante os 60 dias em que decorreu o Big Brother, os diversos participantes – com maior ou menor/nenhuma dificuldade – protagonizaram cenas diversas de questionável validade ética e moral que remeteram à reflexão sobre o tipo de sociedade que pretendemos, ou melhor, que estamos a construir.

Milhares de Angolanos acompanharam regularmente o programa, que foi exibido por um canal de TV por assinatura. Dada a forma como o público reagiu ao programa, podemos afirmar aptamente que poucos angolanos compreenderam as implicações ético-morais e até mesmo antropológicas do que foi exibido.

As opiniões sobre o Big Brother vão desde as que o consideram uma evidência da maturidade ética da sociedade angolana até as que definem o Big Brother como aberração de todo tamanho. Quem está certo? Os que defendem o Big Brother como forma de manifestação da liberdade? Ou aqueles que consideram este programa como uma forma de manifestação de libertinagem pública?

Certamente, deve-se aqui reconhecer que cada ser humano tem o direito de escolher como usar a sua liberdade. Os valores e princípios éticos e morais não devem ser impostos ao estilo inquisitorial. Assim, no âmbito da nossa abordagem, cada um é efectivamente livre para escolher como, com quem e com que se divertir. Mas, então, por que falar de implicações ético-morais e até mesmo antropológicas do Big Brother Angola?

Em primeiro lugar, as sociedades se regem por consensos éticos e morais mínimos, sem os quais não é possível a convivência civilizada, harmoniosa e pacífica dos seus membros. Não urinar nem defecar na rua, ser fiel ao cônjuge e respeitar as cláusulas de um contrato de trabalho são exemplos de consensos mínimos, que fazem do homem um ser regido por uma razão ético-moral assente em civilidade, diferente – como nos diz Rousseau - do estado natural, do qual evoluiu.

Em qualquer sociedade são inquestionáveis as normas acima referidas a título de exemplo, e quando alguém viola tais normas, é alvo de contestação, repúdio e punição pelas diversas estruturas criadas para a manutenção da ordem social – no quadro tanto das relações humanas como das relações sociais.

Em segundo lugar, os consensos ético-morais mínimos visam a própria sobrevivência dos fundamentos civilizacionais sobre os quais repousam as sociedades. Para Fonseca 2008, a educação serve de instrumento que ajuda as novas gerações a respeitar a civilização. Respeitá-la e contribuir para a sua evolução.

A educação formal tem na escola a sua estrutura realizadora, a qual recebe o indivíduo e o mergulha num longo e exaustivo processo educativo, a que designamos formação académica e profissional. Por outro lado, a educação informal e não-formal compreende todos os esforços empreendidos por entidades várias que, apesar de diferentes abordagens de acção, visam todas a um fim comum: construir o cidadão, e assim edificar continuamente a sociedade.

Em terceiro lugar, as sociedades recorrem à arte e outras estruturas da cultura para que estas sejam e se mantenham funcionais e se desenvolvam. À luz duma pedagogia crítico-construtivista, as diversas expressões artísticas (música, literatura, dança/coreografia, cinema, etc.) são formas que tanto visam entreter como educar o indivíduo, os grupos, enfim, a sociedade.

À arte se juntam outros elementos da cultura (religião, hábitos, costumes, etc.) cujas funções se traduzem numa dialética ecológica, que visa – em última análise – à manutenção do equilíbrio Homem-Natureza, necessário à própria sobrevivência do homem e, como tal, do meio como suporte da existência humana. Deste modo, o homem passa a ter uma razão ética que rege suas acções na arte e na cultura como o todo universal.

É esta razão ética que o leva a fazer divisões de consumo da arte e da cultura; determinadas abordagens passam a ser impróprias/inadequadas para certos segmentos. É assim que filmes pornográficos – por exemplo - (no quadro da arte cinematográfica) são vetados a crianças e adolescentes, sendo de consumo apenas indicado para adultos. As sociedades criam mecanismos legais que também impedem a exibição de tais filmes em cinemas, resultando que a pornografia seja apenas consumida em espaços restritos e apenas por quem se revê nela.

Todavia, apesar de esforços assentes numa preocupação geral de manutenção de consensos ético-morais mínimos, o sexo explícito e outras actividades de vida íntima chegam a fazer parte de programas como o Big Brother. Porquê?

As razões que subjazem a este facto são inúmeras, mas podemos citar algumas: os interesses políticos e económicos dos grupos hegemónicos, as condições do meio social, as transformações endoculturais e exoculturais inerentes e a degradação moral.

A sociedade angolana, entendida aqui como a entidade viva e dinâmica que antecede e ao mesmo tempo suporta e essencializa o estado, apresenta várias lacerações nos seus diversos tecidos: humano, social e económico.

Para já, o processo de criação do estado e da nação foi seriamente prejudicado pela guerra que assolou Angola por anos a fio; a tomada do poder fora dos consensos políticos subscritos pelos três movimentos de libertação (FNLA, MPLA, UNITA) empurrou Angola a uma guerra que levou à morte de milhares e milhares de angolanos, levou a privações e deslocações de milhões de angolanos do seu espaço de origem para outros – remetendo-os à lógica da “sobrevivência na selva”, implicando em abrir mão de valores e princípios seculares de toda uma vida regida pela chamada dialética bantu do naturalismo (sustentar-se dos recursos da terra, mas sem prejudicá-la nem prejudicar o quinhão alheio), etc.

A guerra – de facto – se traduziu numa conjuntura que remeteu os angolanos à lógica da sobrevivência a todo custo possível, criando um quadro vertiginoso de degradação ético-moral. Milhões de angolanos nasceram de famílias destruturadas e que deixaram de exercer a função educativa, pela qual instilariam valores e princípios sadios.

Por outro lado, a governação assente na gestão de interesses supostamente “do Povo”, que continua a ser uma governação norteada por uma lógica política maquiavélica, não se tem pautado pela realização do cidadão, mas pela realização socioeconómica dos grupos hegemónicos, que não desejam que a maioria – a vasta maioria – se interesse e faça a necessária luta política traduzida em o cidadão angolano “participar na vida da polis” – interessar-se e inteirar-se da gestão da rés pública, e levar a cabo acções democráticas de manutenção de uma governação inclinada em realizar o cidadão. Devemos acrescentar o problema grave de a maioria dos cidadãos não possuir uma percepção politica mínima possibilitadora de leituras argutas e crítico-construtivistas da realidade do país.

De facto, em Angola há muitos seres humanos, mas poucos cidadãos. A educação cívica precária, o medo mórbido pela luta política (partidária ou cívica) evidentes no chavão “Xé Menino Não Fala Política” fazem dos angolanos um povo “sem ocupação de substância política”, ou seja, os angolanos se demitiram de “participar na vida da polis [Angola]” assim como se demitiram de defender as estruturas culturais de manutenção e salvaguarda da ética e da moral, remetendo a moral pública a um arrepiante debalde geral.

Ora, “desocupados” e terrivelmente frustrados como estão, os angolanos atingiram um estado psicossocial e sociopolítico em que só passaram a se interessar pelas “coisas básicas” e as formas de gerir tal frustração nacional: trabalho e entretenimento.

Os grupos hegemónicos conhecem bem as formas de gestão maquiavélica dos elementos da psicologia das multidões, como postulado por Le Bon e Jung. E é assim que a eles não interessa nada senão que o povo continue alienado, continue ocupado com as futilidades diversas que abundam na sociedade.

Em condições normais, a realização do cidadão e a construção da nação seriam temas centrais de discussão e uso público da razão, segundo Kant. Mas não. Não. Não tem sido assim. E de facto – lamentavelmente – a maioria dos angolanos permanece numa idiotice política de tal magnitude, que não é honesto afirmarmos que este é um “Povo Especial” ou “maduro”.   

Além das novelas e do kudurismo social e político, agora temos o Big Brother Angola, um instrumento perfeito para acentuar a anestesia geral e a perdição ético-moral em que se encontra a vasta maioria dos angolanos.  

Ora, é um facto que o Big Brother Angola não foi realizado em Angola e não foi transmitido pela Televisão Pública de Angola (TPA). Mesmo assim, os milhares de angolanos e angolanas que acompanharam regularmente o Big Brother e outros têm celebrado efusivamente o big brother e têm adulado e idolatrado efusivamente o Larama.

De facto, tais cidadãos são uma amostra do tipo de sociedade que temos: UMA SOCIEDADE PRIMÁRIA QUE CELEBRA FUTILIDADES, uma sociedade que – como bem diz um ditado Kikongo – “permite que o chefe lhe enfie o dedo nos olhos”; uma sociedade em que morrem dezenas de crianças nas pediatrias, em que os cortes de energia e de água são já culturais, em que a corrupção é já um direito, só faltando consagrá-la na Constituição, uma sociedade em que activistas são assassinados, em que as obras públicas são de qualidade sofrível…mas o “Povo Especial” prefere dizer/fazer “Xé Menino Não Fala Política”… e CELEBRA O LARAMA, CELEBRA O BIG BROTHER, CELEBRA A FUTILIDADE!