Washington - Três e meia da madrugada em Luanda, seis e meia no Dubai, em cujo espaçoso aeroporto me encontro a caminho de Washington, onde deverei chegar apenas amanha de manha, segunda-feira, as oito e trinta, tempo da capital federal dos States, que são menos 5 horas do que na banda.

Fonte: RV

Isto, naturalmente, se tudo correr conforme está planeado e se me deixarem passar na fronteira, pois ter um visto válido por si só já não garante a 100% a crítica passagem pela “fortaleza” americana.

Espera-me um longo dia aqui no aeroporto sem fazer nada, a olhar para as pessoas e para as montras, até chegar a hora de subir para o próximo pássaro de ferro e passar mais 13 horas lá em cima, nas alturas, a desafiar a lei da gravidade.

Deixei sábado Luanda com a triste notícia da morte do Américo Gonçalves (OCIREMA) em Benguela. Não podia ter sido pior esta despedida da banda.

As minhas condolências a família.

A Aline (esposa), ao Wanga e ao Bruno (irmãos) e aos filhos, o Mandela, a Djamila e ao Ariel.

Lamentavelmente, não vou poder comparecer ao funeral deste companheiro de todas as horas e de todas as aflições, sobretudo com sua Horton Pediátrica.

A todos nós que com ele trabalhamos e convivemos, o AG marcou-nos, certamente, pela positiva, sobretudo pelo destacado contributo que ele deu ao surgimento na década de 90 da moderna e independente imprensa privada luandense, com a entrada em cena dos semanários de forte pendor político e crítico.

Já começo a ter saudades desse tempo, quando os nossos jornais eram mesmo só nossos, dos jornalistas, sem interesses obscuros na sombra, a manipular, a censurar e a comprar.

Pelos vistos sobrou muito pouco dessa herança para contar a história.

AG tem as suas marcantes impressões digitais nos genéricos do Correio da Semana, Angolense (o original) e a Capital.

Do ponto de vista pessoal a minha relação com o Ocirema foi uma verdadeira história de sucesso e de prevalência de valores como a amizade e a solidariedade, sobre tudo o resto. Tudo mesmo.

Desconsegui de estar presente na sua “hora di bai”, que aconteceu terça-feira em Luanda.

Na distância da imensidão americana, aqui vai para ti, Ocirema, o último kandandu dos muitos que trocamos em vida.

Este é diferente. É mais apertado. É profundamente triste. Chega a ser doloroso. Começando por ti, todos sabíamos que este momento ia chegar antes do tempo a que temos direito nesta passagem pela banda.

Em tempos o meu amigo Luis Kandjimbo escreveu no facebook e também a partir de um aeroporto qualquer deste mundo, citando um autor cujo nome não fixei, que os aeroportos são “não lugares”.

De facto é verdade.

Estamos rodeados de gente mas não conhecemos ninguém e ninguém faz a mínima ideia quem somos.

Olhamos para as pessoas mas não as vemos e os únicos afectos que trocamos são, às vezes, amarelados sorrisos de conveniência.

É isto ( e muito mais) que faz os “não lugares”.

Neste momento separam-me pouco mais de duas horas para deixar este “não lugar” no Dubai, onde fiquei quase uma eternidade da minha existência a espera da ligação para Washington.

Por serem mais ou menos iguais, os “não lugares” não nos marcam, não nos dizem nada, são apenas “acidentes de percurso”.

Nunca ouvi ninguém dizer que tem saudades de um aeroporto, por mais bonito e bem arranjado que ele esteja, como é o caso deste.

Não dei a volta ao mundo, mas estava quase, após treze horas a sobrevoar três continentes.

Volvidas não sei quantas horas de voo, para aí umas 5, olho para o computador que no ecrã sinaliza a par e passo o trajecto do avião e reparo que estou a sobrevoar os territórios da Rússia e da Ucrânia.

Foi exactamente nesta rota que o avião da Malásia foi recentemente abatido por “desconhecidos” selvagens.

Um calafrio percorre-me a espinha, pois nunca pensei que iríamos passar pelo local do monstruoso crime ainda não esclarecido.

Na pele de cada um dos cerca de 300 ocupantes do 777 da Malásia Air Lines, vivi por instantes aqueles fugazes e dolorosos momentos após o terrível impacto do cobarde míssil terra-ar que desfez em pedaços grandes e pequenos, tantas vidas e tantas esperanças.

Estou em Washington e já vi ao longe uma manifestação contra um regime africano. Dezenas de etíopes (ou centenas) manifestaram-se esta manha na Avenida da Pensilvânia contra o regime de Addis Abeba.

A manifestação teve lugar não muito longe da zona dos hotéis onde as delegações africanas estão alojadas.

Depois de um negro americano há uns anos em Luanda ter dito que eu era parecido com o Myke Tison, o que não me deixou muito feliz, ontem aqui em Washington a minha “nota” melhorou bastante. Uma kota americana, também negra, com um ar meio “estranho” e a falar pelos cotovelos, interpelou-me na via pública para me dizer que eu lhe fazia lembrar o Tyler Perry.

Depois de dizer que era africano/angolano agradeci-lhe a comparação dando-lhe a mão, o que ela recusou dizendo-me que não dava a mão a ninguém com receio dos germes.

Eu disse-lhe que podia estar descansada que eu (ainda) não tinha ébola.

E assim nos despedimos…

NA- Publicado na Revista Vida/Secos e Molhados (08/08/14)