Os Gloriosos anos 60 do século XX trouxeram mudanças substanciais para a humanidade. Uma delas foi a conquista de direitos cívicos e políticos plenos pelos negros nos EUA, que contagiaram o mundo e trouxeram muita esperança, traduzida nos avanços da democracia política, primeiro na Europa, depois na América Latina e na Ásia, e, finalmente, em África.

A queda do apartheid na África do Sul e o crescente aumento do equilíbrio entre mulheres e homens em termos de poder político foram outros importantes avanços, que permitiram que nas eleições norte-americanas de 2008 negros e mulheres tivessem um protagonismo sem precedentes.

Porém, estas melhorias no campo dos direitos cívicos e políticos ocorreram em paralelo com bastante desilusão, provocada pela degradação dos direitos económicos e sociais dos cidadãos, como consequência do aumento inaceitável e perigoso das desigualdades sociais e da corrupção.

A separação entre direitos económicos, sociais e culturais, por um lado, e direitos cívicos e políticos, por outro, no lugar de uma convenção única sobre direitos humanos, constituiu una erro trágico das Nações Unidas logo após a aprovação da Declaração Universal em 1948.

No ambiente da Guerra Fria, os primeiros foram conotados com direitos «socialistas» (garantia de emprego, acesso gratuito à educação e serviços de saúde, por exemplo) e os outros com direitos «ocidentais», dos quais sobressaíam a liberdade de expressão e associação. A hegemonia do Ocidente e a sua posterior vitória permitiram que a opinião pública considerasse mais grave uma pessoa ser vítima de tortura ou de limitação da liberdade de expressão do que padecer de fome ou não ter um tecto.

Ao mesmo tempo, alimentou-se o mito de que era mais fácil ao Estado financiar eleições do que a alimentação para os que não tenham acesso a ela. Os EUA, por exemplo, com campanhas eleitorais milionárias, gastam muito mais dinheiro com os direitos políticos e cívicos do que com os direitos económicos, sociais e culturais.

Ao Estado compete, pois, um papel fundamental na implementação dos direitos humanos, na concepção aqui exposta, principalmente em países como Angola, onde a sua utilidade é incontornável no processo de consolidação da nação.

Por isso, sempre achei que não foi errado que os países africanos tivessem desejado construir Estados fortes quando alcançaram as suas independências. A intenção era boa, pois eles constituiriam um meio para vencer a herança colonial, acelerar o desenvolvimento, eliminar ou reduzir as injustiças sociais e, ao mesmo tempo, integrar as diversidades culturais e regionais.

Contudo, as práticas das lideranças africanas produziram efeitos perversos, independentemente das vias de desenvolvimento seguidas, capitalistas ou socializantes. Desse modo, o catecismo neoliberal, fomentado pelos EUA e pelas instituições financeiras por eles controladas, encontrou boa cama para se deitar: afastamento do Estado da economia, incluindo a prestação de serviços; desregulamentação do mercado e da economia; privatizações sem limitações; eliminação de quaisquer restrições à acumulação de riqueza em oposição ao aumento da pobreza.

A aplicação do neoliberalismo aos países africanos, sob a forma de programas de ajustamento estrutural, bem cedo se revelou um fracasso. O efeito mais notório foi o aumento calamitoso da pobreza e das desigualdades sociais.

Alguns dos países considerados bem comportados na aplicação do receituário são, ao mesmo tempo, dos que apresentam índices de Gini - indicadores de desigualdade - mais elevados. O mal-estar foi crescendo perante a indiferença dos países ricos e das instituições financeiras internacionais, até que começaram a soar os primeiros sinais de alarme.

A crise alimentar e dos preços que se manifestou há cerca de um ano, a cri-se energética que já vem de longe e a crise moral e institucional do próprio Estado, que se transformou num antro de corrupção, são outros efeitos desta via neoliberal, e hoje parece não haver dúvidas de que a crise financeira internacional não é senão a parte visível do iceberg da crise económica e social que afecta quase todo o mundo.

A palavra-chave universal

Não admira, pois, que mudança seja actualmente uma palavra-chave universal. Repete-a Barack Obama, mas também o MPLA, bem como a oposição e a sociedade civil angolanas. O que se torna necessário é esdarecer o que mudar e como mudar.

Diz Boaventura Sousa Santos que aconteceu o que para muitos era impensável até há pouco tempo: o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução, mas caso não seja profundamente reformado e democratizado, poderá ser em breve um problema sem solução.

Os primeiros sinais do novo Governo angolano indiciam que não parece haver uma vontade clara de mudança. Mais do que a manutenção de figuras gastas e impopulares no Governo, é preocupante constatar que com o aumento do número de Ministério fica a sensação que se pretende manter o Estado balofo, ineficaz e ineficiente, que dificilmente evitará a eliminação dos efeitos anteriores e conseguirá reduzir as injustiças sociais e catalizar o processo de desenvolvimento.

Isso só seria possível com um Estado forte, capaz de providenciar serviços que o nosso ainda frágil sector privado está incapaz de fazer, principalmente nas áreas rurais, o que se revelaria crucial para esbater a linha de separação entre pobres e ricos, e com isso proporcionar mais empregos e maior poder de compra para mais e mais cidadãos, o que permitiria animar a economia não petrolífera; que possa estimular uma economia de mercado pujante e regulamentar de forma rigorosa os mecanismos do seu funcionamento; que impeça de forma clara quaisquer promiscuidades entre os tesouros do rei e dos nobres e o tesouro público; que se descentralize de modo a permitir uma participação mais ampla dos cidadãos nos processos de tomada de decisões.

Este tipo de mudanças é possível, como disse Obama e como têm vindo a dizer os representantes da sociedade civil e dos movimentos sociais de todo o mundo desde os primeiros encontros do Fórum Social Mundial no início do século.

Estou convencido que uma das maiores conquistas sociais do século XXl será o tratamento da pobreza como unta questão ética e não como questão económica, tal como aconteceu no século XIX com o tráfico de escravos, o que traduzirá um avanço notável no campo dos direitos económicos e sociais. Por mais que os McCain continuem a dizer que mais justiça social significa «espalhar» riqueza.

Fonte: Fernando Pacheco