Luanda - O projecto dos direitos materno-reprodutivos continuam e a desta vez fui esbarrar com as parteiras tradicionais.

A figura da parteira tradicional é de particular e especial relevância no estudo dos partos, no mundo, mais especialmente nas nossas comunidades tradicionais, e até tempo recente, nas cidades, bairros e ruas das nossas províncias, superpovoadas de mulheres das mais diversas realidades e latitudes. É a elas que hoje dedicarei esse artigo. Não apenas em jeito de reconhecimento, mas também em jeito de protesto à uma medida governamental que pode retirar-lhes o papel e a função social que ocupam nas nossas comunidades (rurais e periurbanas, especialmente).

Fonte: Club-k.net

Soube-o no Longondjo, pela boca de um médico, município da província do Huambo há alguns meses que, “as parteiras tradicionais deveriam deixar de fazer os partos domiciliares e passar a encaminhar as mulheres grávidas aos centros médicos municipais para terem os seus bebés, é o que chamam de parto institucional.

A diferença, entre os partos domiciliares e os partos institucionais, reside no facto de aqueles serem realizados em casa, no domicílio, por pessoas que não sendo médicas ou enfermeiras-parteiras, adquiriram conhecimentos de alguma forma (experiência, transmissão oral de conhecimentos, práticas geracionais e ancestrais) para os realizar; já os partos institucionais identificam-se com a sua realização em centros médicos ou hospitais por uma equipa médica especializada, com recursos científicos e tecnológicos diferentes. Apesar das diferenças, existe uma terceira questão relacionada com ambos: a segurança do parto e a salvaguarda da vida da mãe e do recém-nascido.

Mas antes de discorrermos por aí, convém falar um pouco mais da parteira tradicional. As parteiras tradicionais são mulheres que pertencem a uma comunidade, geralmente aldeias e vilas na zona rural, periferia e zonas periurbanas das grandes cidades angolanas

( é uma realidade africana), são senhoras de idade adulta que tendo aprendido com as suas antecessoras as habilidades e a sabedoria de realizar partos, trazem ao mundo bebés das mulheres da comunidade. A parteira pode ser também uma curandeira ( não feiticeira), devido ao conhecimento e habilidade de curar doenças com recursos a ervas e outros medicamentos naturais ( especialmente por causa dos cuidados pós-parto que as mulheres precisam). Assim sendo, a parteira é uma senhora, geralmente mais velha, cuja posição na comunidade é respeitada pela função e papel que desempenha na gestação e parto das mulheres.

Não é uma figura mítica é real, e muitos de nós a conhecemos, ou pelas suas mãos viemos ao mundo, não descurando do seu simbolismo na maior parte das culturas tradicionais. Por essas razões, a parteira é uma entidade socio-comunitária, a sua presença serve especialmente para, ali onde não existam serviços de saúde, ser ela esse sinal de certeza e de segurança de que ainda assim é possível trazer bebés ao mundo. Que o digam as mulheres que vivem em aldeias, periferia, as que viveram em zonas de conflito, e tantas outras privadas durante muito tempo de serviços hospitalares.

Foi exactamente neste ano, a abeirar o meio, que num encontro com o Senhor Secretário de Estado para a Saúde, Dr. Carlos Masseca que soubemos que, as parteiras tradicionais “têm de deixar de existir como tal”. A minha colega e eu ficamos espantadas, e como eu faço muito recurso ao silêncio e quietude, valeu-me a natureza inquiridora da companheira que soltou de imediato um “porque?” A mesma continuou dizendo que em respeito aos direitos culturais e práticas tradicionais, as parteiras tradicionais devem ser preservadas, que elas fazem parte de um conjunto de valores da comunidade, que orientam toda uma lógica de princípios morais, crenças comunitárias e práticas tradicionais, como o facto de que o corpo da mulher casada grávida, apenas pode ser tocado e observado por outra mulher, o que pode ajudar a explicar a resistência de algumas mulheres, nas zonas rurais, em serem assistidas por médicos, ao invés de médicas.

Mas, veio então a resposta da autoridade pública, segundo o Secretário de Estado para a Saúde têm a ver com a segurança e a salvaguarda da vida humana. Uma vez que, continuou, mulheres há que decidem realizar partos em casa e perdem a vida por causa de procedimentos incorrectos.

Para os profissionais de saúde, a expressão mais correcta é segurança sanitária, um conceito abrangente, amplamente desenvolvido a partir de situações de perigo à vida humana. Seja nos alimentos, no ambiente, nos medicamentos, ou nos procedimentos médicos. Para os especialistas em saúde, a segurança está muito associada a prevenção, daí ser muito associada a outra expressão, que ouvimos falar bastante, que é a de vigilância sanitária.

Soube-se então que para evitar mortes de mulheres e crianças durante o parto, nos próximos tempos ( sem avançar quando), as parteiras tradicionais deixarão de realizar partos em casa. O seu papel vai ser substancialmente alterado. Passarão a ser uma espécie de agentes comunitárias de saúde, mais especificamente para as mulheres grávidas. Terão a missão de conhecer todas as mulheres grávidas das suas comunidades (aldeias, bairros, ou comunas), encaminhá-las ao hospital para as consultas pré-natais, e acompanhá-las ao hospital no dia do parto.

Estamos perante duas faces da mesma moeda. Por um lado, existem de facto dados hospitalares que indicam que, algumas mulheres que tentam realizaram seus partos em casa, com ajuda de parteiras tradicionais, terminam em risco de vida, ou mortas quando o parto se complica, especialmente quando há hemorragia. A chegada tardia ao hospital, e a perda excessiva de sangue é uma das principais causas de morte materno-infantil nos hospitais públicos. Entretanto, é bom lembrar que complicações existem também nos partos hospitalares, e também nesses se perdem vidas. E não associo o fim das parteiras tradicionais à questão da modernização, porque teria de reflectir sobre o estado tecnológico do nosso sector da saúde.

Entretanto, é bom lembrar que não são todos os partos domiciliares que se complicam e terminam em morte. Se assim fosse, muitos não estariam aqui. Certo é que, é dever dos governantes tomarem medidas de prevenção e combate de situações que perigam a vida humana. Entendo que, nenhuma dessas medidas deve ser terminar com uma instituição tradicional e social tão importante.

Como já se referiu, e bem as parteiras tradicionais fazem parte da organização social e cultural das comunidades angolanas, no sistema de saúde feminino das zonas rurais e periurbanas, são, se não as únicas, as principais cuidadoras de certos aspectos da saúde materna e reprodutiva nessas áreas, a sua presença, as suas práticas tradicionais de auto preservação do corpo e da sexualidade feminina e o seu trabalho conferem-lhe status e valor social, que não podem ser negados.

Pensamos que a segurança sanitária é apenas uma parte da questão, e que os partos domiciliares podem ser tão seguros quanto os partos hospitalares. Pensamos também que não é justo transformar as parteiras tradicionais em agentes de saúde comunitária, principalmente porque não existem planos para a sua remuneração.

Quando as parteiras deixarem de fazer o seu real trabalho e passarem a acompanhar outras mulheres e levá-las ao hospital, passarão igualmente a realizar um trabalho pelo qual não serão contratadas ou remuneradas, mas cujo tempo não será compensado e cujas actividades produtivas ficarão certamente afectadas, como o cultivo da lavra ou a venda no mercado. É verdade que muitas parteiras tradicionais, se não todas, realizam o seu trabalho sem compensação financeira, não havendo obrigação da parturiente pagar qualquer preço pelo serviço, podendo haver gratificação.

Penso ser igualmente importante analisar a natureza da prestação do serviço das parteiras na nova configuração, e a relação entre o direito humano e social a saúde e as parteiras tradicionais em Angola.

Em primeiro lugar, é importante referir que existe entre o Ministério da Saúde e as parteiras tradicionais, uma espécie de “acordo de cavalheiros”, onde as parteiras tradicionais são incentivadas a continuarem com o seu trabalho, mais o acompanhamento e registo das mulheres, partos realizados, nados vivos, nados mortos etc., da parte do Ministério o que sabemos é que existe o compromisso de organizar um sistema de registo das parteiras (para conhecimento e controlo, presumimos), dar-lhes formações básicas sobre questões de primeiros socorros, regras de higiene e outras, e atribuir-lhes um kit composto por luvas, gases, álcool ou sabão (não sabemos que outros produtos mais fazem parte) para a realização dos partos. É assim que a relação entre ambos se tem mantido.

As parteiras tradicionais não exercem tal função como um trabalho remunerado, entretanto a mudança da lógica funcional do seu serviço e a introdução de um novo elemento: o Estado, faz-nos colocar agora tal questão, especialmente por ser interesse do Estado. Poderemos, nós estar diante de um contrato de trabalho entre o Estado e as parteiras?

Um contrato de trabalho é aquele através do qual uma parte se obriga mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa sob orientação e direcção desta (artigo 1152.o do Código Civil).

Pelas informações que foram passadas, não existe qualquer intenção se remunerar as parteiras tradicionais, por virem a desempenhar as suas novas funções, ao nível do sistema público de saúde. Não havendo contrapartida financeira, como podemos avaliar essa relação entre o Estado e as parteiras. Alguém nos disse que é uma relação que deve basear-se no dever moral de solidariedade social.

Pensamos nós que um Estado deve sempre ser justo. A justiça é um valor importante para o direito, não fosse um Estado Angolano Democrático e de Direito, o que quer significar que as leis, a actuação do Estado deve fundar-se nas formas de participação e representação dos cidadãos, e no que estabelece a lei.

Entretanto, aspirar a justiça é um dever legal e moral do Estado na pessoa dos seus servidores. Alguém definiu justiça como sendo a “vontade perpétua e constante de dar a cada um o que é seu” dai que, prosseguem as mesmas linhas “o direito deve orientar-se fundamentalmente pelo valor da justiça, estabelecendo critérios de repartição dos bens da vida, de modo a que cada um tenha o seu, receba uma parte adequada”.

É curioso, que na passada sexta-feira, 29 de Agosto, na Universidade Católica de Angola, alguns académicos das ciências médica falavam da importância do profissional de saúde pública que devem desempenhar um papel importante do sistema de prevenção de doenças, especialmente junto das comunidades. Parte da função desses profissionais é promover bons hábitos e práticas de saúde básicos, ajudar a combater comportamentos inadequados e prejudiciais à saúde humana, para melhor o nível de saúde das pessoas. Coloco esse dedo na nossa conversa porque penso que, o trabalho de acompanhar, cadastrar e encaminhar as mulheres grávidas aos hospitais é um trabalho de um profissional de saúde pública, remunerado e com vínculo laboral com o Estado, evitando o aproveitamento inapropriado e desvirtuando da função das parteiras tradicionais.