Luanda - Professor titular na Universidade Agostinho Neto, Paulo de Carvalho é co-autor do livro ‘O que é racismo?’ que vai ser lançado nos próximos dias, em Luanda. O assunto é considerado por muitos como tabu. O sociólogo aceitou falar sobre o tema, com ideias próprias, como, por exemplo, acreditar que a ‘mestiçagem é o futuro da humanidade’. De qualquer modo, o nosso entrevistado pensa que a questão do racismo no país precisa de ser debatida sem preconceito.

Fonte: O País
Paulo Carvalhoo.jpg - 61.83 KBÉ co-autor do livro ‘O que é racismo’. Diga-nos, então: o que é o racismo?
A “raça” é uma coisa inventada pelos seres humanos, para demonstrar que uns são superiores a outros e que a algumas das diferenças biológicas perceptíveis a olho nu corresponderiam diferenças comportamentais, diferenças no coeficiente de inteligência e diferenças em termos de capacidades e competências. Há muito a ciência demonstrou que tudo isto é farsa, pois não condiz com a realidade.
Os bebés não notam as supostas diferenças raciais, o que significa que elas são aprendidas socialmente. E olhe que eu até já lidei com pessoas adultas de vários países, que não notam diferenças na tonalidade da pele das pessoas; só se apercebem disso quando se lhes chama à atenção para o facto. O racismo pressupõe uma suposta hierarquia nessa coisa a que se chama “raça” e essa hierarquia é muito elementar, pois considera que “o que é nosso é melhor”.
O racismo pressupõe preconceito e pressupõe normalmente discriminação com base nesse critério de diferenciação. Nada disso é natural, tudo isso é criação humana. E muitas vezes nós alinhamos nessas coisas, sem nos apercebermos que estamos realmente a fazer o jogo dos de fora, daqueles que não nos querem ver unidos, que nos querem ver desunidos.

O que é que pretendem com esta publicação?
O livro enquadra-se numa colecção, que é dirigida pelo sociólogo moçambicano Carlos Serra (da Universidade Eduardo Mondlane), intitulada “Cadernos de Ciências Sociais”, que já tem vários números publicados. O mais velho Carlos Serra conseguiu reunir seis dezenas de investigadores sociais dos quatro cantos do mundo (de Tóquio e Dili a Maputo e de Ottawa e Rio de Janeiro a Luanda). Este é o primeiro livro da colecção com a participação de um angolano, mas estão já no prelo outros livros desta série sendo coautores o sociólogo Víctor Kajibanga e o linguista José Pedro, também angolanos. Se calhar, vou propor a inclusão de mais alguns angolanos no grupo. A intenção é cada livro ter pelo menos três autores. É um projecto muito sério, em que cada autor tem autonomia para escrever o que considera mais oportuno e mais válido. A minha próxima participação será no livro “O que é Sociologia”, que vai ter quatro autores e deverá estar entregue na tipografia antes do final do ano.

E no caso concreto deste livro, qual foi a intenção dos autores com a sua publicação?
Eu inscrevi-me para este tema, porque considero ser um dos temas tabu em Angola, que precisa de ser desmistificado, desconstruído e esclarecido. Mas de um modo geral, penso que para os quatro autores do livro a intenção terá sido trazer a público, antes de mais, uma abordagem académica acerca do racismo, que é apresentada de forma a ser percebida por todos.

Os autores são duas brasileiras, um português e um angolano, com formação em quatro áreas distintas: antropologia, letras, psicologia social e sociologia. Todos nós trazemos elementos teóricos, mas também casos práticos e vivências próprias. Portanto, o livro é útil para estudantes e profissionais das ciências sociais, para políticos, investigadores e público em geral. As pessoas comuns devem ler o livro e perceber que, quando olhamos para o outro (qualquer que ele seja), devemos perceber as semelhanças que temos com ele e não as diferenças físicas ou culturais, como muitas vezes fazemos.

Em Angola existe ou não racismo?
É difícil responder taxativamente a essa pergunta, numa breve entrevista. O meu texto, no livro, intitula-se “Racismo enquanto teoria e prática social”. Incluo aí um item intitulado “Há racismo em Angola?”, cuja leitura aconselho. Mas vou tentar responder à pergunta, abordando dois aspectos distintos. Primeiro, se me pergunta se há casos de discriminação racial em Angola, respondo positivamente: há-os, sim. Aliás, não era de esperar outra coisa, pois saímos de um longo período colonial há muito pouco tempo, para se ultrapassarem as sequelas daí resultantes – incluindo as que têm a ver com aquilo que se designa habitualmente por “raça”. Mas se a pergunta é se existe racismo institucionalizado em Angola, a resposta só pode ser negativa.

Havia, sim, no período colonial, mas a proclamação da independência trouxe uma série de coisas boas, sendo uma delas a eliminação do racismo institucionalizado. Hoje, as pessoas têm acesso ao ensino superior (por exemplo), independentemente da cor da pele – coisa que não ocorria no período colonial. Hoje, não é a cor da pele que determina quem chega ao topo de qualquer carreira profissional em Angola.

E além disso, é preciso reconhecer que (ao contrário do que sucede com alguns grupos étnicos) não há reuniões de grupos raciais como tais, para se traçarem estratégias de actuação comum. Portanto, acredito que a fase do racismo institucional esteja ultrapassada em Angola, o mesmo não se podendo dizer de manifestações que encerram discriminação racial, que existem de forma isolada, não de forma organizada. As pessoas comuns (e até alguns jornalistas e políticos) confundem estas duas perspectivas, que são distintas e, por isso, não devem ser consideradas no mesmo patamar. Uma coisa é o racismo institucional (mais global, mais abrangente), outra são actos de discriminação racial (mais isolados, menos abrangentes e com menor percepção social).

Distinga os tipos de racismo que existem em Angola?
Há, realmente, vários tipos de racismo – desde aquele que encerra apenas preconceito, àquele que encerra discriminação e violência massiva. Em Angola, temos uma série de racismos aprendidos socialmente, seja na família, seja no grupo étnico, seja nos grupos de amigos, seja ainda através de alguns meios de comunicação social cujo objectivo é criar a divisão no seio dos angolanos.

Pode dizer-se que não há em Angola racismo que envolva violência massiva e praticamente não existem actos de racismo com violência. O racismo mais comum pelo mundo é o que pressupõe a supremacia dos mais claros, como se o dia tivesse supremacia sobre a noite e como se ambos não se complementassem apenas. Por cá existe este racismo tradicional, que foi herdado do período colonial.

Mas existem também outras manifestações de racismo, que pressupõem que à supremacia demográfica de uns deva corresponder a sua hegemonia e o afastamento dos grupos “raciais” menos expressivos. Um e outro racismo consideram elevada dose de egoísmo, pois em cada um dos casos se pega nalgumas das diferenças somáticas perceptíveis para tirar algum benefício. Esta é a questão fulcral a considerar: tal como sucede com a utilização da diferenciação étnica, também se utilizam supostas diferenças “raciais” de forma mais ou menos subtil, para procurar tirar vantagem económica, social ou política. Temos, pois, de estar atentos a isso.

O racismo ainda é considerado tabu no seio da sociedade ou tem sido visto de maneira apaixonada?
É um dos tabus presentes na nossa sociedade. Aliás, a nossa sociedade é perene em tabus. Posso apresentar um outro caso: eu falo de sexo nas minhas aulas, pois considero ser preciso ultrapassar tabus, quanto mais não seja, para sermos mais felizes. Pois em tempos alguém se foi queixar à direcção da faculdade depois de ter reprovado numa minha disciplina, dizendo que eu falo de sexo nas aulas, como se isso não fosse a coisa mais comum, como se não se devesse falar de sexo na escola, desde a adolescência. Claro que, na minha geração, fomos todos educados com base em todos esses tabus. Acho que o segredo está em sabermos ultrapassá-los. E para ultrapassarmos os tabus, temos de os abordar com seriedade e de forma desapaixonada. Não há outra via. Calar é manter os tabus, é deixar perpetuar a sua existência social nefasta.

Que outros tabus pode enumerar?
Para além da questão racial, já referi o sexo enquanto elemento que faz parte da natureza humana. Sem sexo não existiríamos, sem sexo não seríamos tão felizes quanto somos. Então como é possível não podermos abordar um assunto que faz parte da nossa própria natureza? Mas atenção, que não está certo aquilo que vi em tempos num programa da TPA, em que um suposto “especialista” abordava detalhes e dizia impropérios e asneiras em público, ao ponto de a apresentadora do programa ficar encabulada. Isso não tem nada a ver com abordagem séria de assuntos que são tabu.

É preciso que haja conhecimento de facto e que haja o mínimo de sensibilidade, para não ferirmos susceptibilidades. Um outro dos grandes tabus tem a ver com a questão étnica. Por que razão não se pode dizer que temos por cá elites de vários grupos étnicos que se juntam e traçam estratégias? Por que razão não se pode dizer que há empresários e dirigentes que se rodeiam maioritariamente de pessoas do seu grupo étnico? Não creio que essa seja actuação correcta, por isso mesmo considero ser necessário abordar este tipo de matéria, até para que possamos ultrapassar isso para garantirmos a harmonia social e para que possamos dar passos mais significativos rumo à consolidação da nação angolana.

Voltando ao nosso tema, acredita que o conturbado processo de descolonização de Angola, provocado pelos portugueses, terá pesado de alguma forma para a existência de alguns resquícios de racismo no país?
Claro que isso ocorreu, mas naquela altura. A forma como decorreu o processo de descolonização (que foi um processo conturbado, temos de assumir) foi prejudicial para aquele período, mas do ponto de vista da racialização até não terá sido tão prejudicial para o futuro.

A esmagadora maioria dos colonizadores e seus descendentes abandonou Angola, de modo que terão desaparecido muitos dos focos de racismo tradicional. Os “brancos” que ficaram são maioritariamente pessoas que estavam contra a colonização, pessoas até que lutaram contra a colonização, com armas e com canetas na mão. Portanto, o processo de descolonização em Angola e em Moçambique não fez perpetuar a manutenção do poder por parte de quem o detinha antes. Essa possibilidade existia, mas felizmente não ocorreu.

Se tivesse ocorrido, aí sim, poderia continuar a haver derramamento de sangue com base na racialização, até que a situação mudasse e atingisse o patamar que tem hoje. Hoje, estamos felizmente libertos desse mal que antes existia institucionalmente.

Quais são os sectores da sociedade angolana onde se assistem mais actos de racismo e como é que ele se tem manifestado?
O que me parece que haja mais, hoje, em Angola são actos de racismo subtil, que visam algum benefício – emocional, social, económico ou político. A “raça” é mais utilizada de forma instrumental, como um dos elementos que se utiliza para afastar “a concorrência”.

Estou lembrado, por exemplo, de um antigo colega que falava permanentemente contra mulatos e brancos, mas quando estava diante de um mestiço dizia: “Até os meus filhos são mestiços…” Enfim, esta utilização instrumental da “raça” é de uma tal desonestidade intelectual, que demonstra a toda a gente que o seu autor apenas quer beneficiar afastando eventuais concorrentes.

Mas ultimamente, temos de reconhecer que a crise económica internacional está a trazer para Angola problemas do foro laboral que, ou têm, ou se supõe terem base racial. Não generalizemos, mas temos de reconhecer que há empresas e organizações estrangeiras ou de âmbito internacional em que existe claramente alguma discriminação contra angolanos.

Quando se fala em racismo estaremos apenas cingidos à questão rácica ou há outros elementos que devem ser considerados?
Parece-me que estão erradas aquelas pessoas que consideram “raça” e etnia no mesmo patamar. Uma coisa é a identidade étnica e outra a “raça”, enquanto construção social que supõe aquelas diferenças físicas ou somáticas que nos interessam. Por que razão a tonalidade da pele ou o formato do nariz hão-de ser biologicamente mais importantes que o formato das orelhas ou o tamanho dos dedos? Mas as “raças” foram socialmente construídas como foram, de modo que temos de viver com isso. Agora, mesmo que consideremos a existência de várias raças humanas, não podemos colocar “raça” e etnia no mesmo patamar. Ambas essas identidades são aprendidas socialmente, mas enquanto a identidade étnica está presente em nós, com base nos nossos elementos culturais e na nossa vivência, a verdadeira identidade racial existe apenas naqueles países onde há racismo institucionalizado. Angola está fora desse grupo, felizmente.

MCK, um rapper angolano, diz numa das suas músicas que em Angola o ‘mercado de emprego está colorido’ e que os poucos negros que vê no banco são apenas o homem que limpa o chão e o segurança. Há algum exagero nisso? Qual é a realidade actual?
Bem, eu não vou diariamente a bancos, mas frequento esses locais. Só quem não vai a bancos pode dizer que a maioria dos funcionários bancários são “brancos”. Isso não é verdade. Pode até haver uma agência bancária com mais “brancos” que “negros”, mas isso não é comum por cá. Para quem tiver dúvidas a este respeito, que vá a agências bancárias lisboetas; se, estando aí e olhando à volta, não vir diferenças, ou seja, se pensar que está em Luanda, aí então sim, o rapper terá razão.

Mas não tem razão, felizmente. Isso é aquilo que eu designo por “conversa de kandongueiro” – ou seja, é apenas conversa, que não tem expressão na realidade. Parece o caso de um conhecido jornal da nossa praça, que há alguns anos veio garantir que nos postos de direcção da Sonangol havia então mais “brancos” que “negros”. Só depois de o terem afirmado foram contabilizar e viram que era conversa gratuita. Claro que numa afirmação dessas só pode haver falta de seriedade. Agora, se houver meia dúzia de “brancos” a trabalhar em bancos, por que razão isso poderá constituir problema? Se forem angolanos, que problema haverá nisso? Mas se forem estrangeiros a trabalhar em balcões de agências bancárias, aí sim, podemos torcer o nariz e notar que alguma coisa não vai bem. Mas isso não tem a ver com a cor da pele; quando o problema se apresenta em termos de cor da pele, apresenta-se de forma errada. A questão deve ser analisada em termos de competências e de postos de trabalho que devem ser destinados maioritariamente a angolanos (independentemente da cor da pele).

Acredita que o facto de alguém ter a tez da pele mais clara do que outrem é um passaporte para um melhor emprego e sucesso na vida?
Depende de onde se estiver. Se for no Brasil, muito provavelmente sim. Se for nalguns estados norteamericanos, certamente que sim. Mas se for em Angola, obviamente que não. Eu atingi o topo da carreira universitária, sou Professor Titular há 3 ou 4 anos. Então quer dizer que eu cheguei a Professor Titular por ser um pouco mais claro que os meus colegas? Ou por ser um pouco mais claro não deveria lá ter chegado? Nada disso, a ascensão em qualquer carreira deve fazer-se por critérios objectivos.

A maioria dos Professores Titulares da UAN tem tez mais escura que a minha e a esmagadora maioria até tem menos investigação e menos publicações que eu – então por que razão eu não poderia lá chegar? Fixe que o exemplo da universidade não é excepção à regra. É o comum por cá. E o ensino superior é um bom sector para olharmos para esse tipo de diferença. Eu já estive em universidades brasileiras, às quais a maioria (“negros” e índios) quase não tem acesso. Não é isso que se passa em Angola. Estamos até muito longe disso. Agora, não digo que não haja em Angola quem discrimina. Há. E no acesso ao emprego há elevada dose de discriminação, sim. Há sobretudo discriminação étnica e discriminação sexual, mas também há discriminação racial. Quando alguém diz, por exemplo, que o gerente de um restaurante deve ser europeu, está claramente a discriminar. Só que quem faz essa discriminação não são normalmente “brancos”, são “negros”. É isso que temos de assumir!

Brasil, que integra a Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, estabeleceu quotas para o ingresso de negros na universidade. Como é que pensa que a nossa sociedade reagiria se se adoptasse uma medida idêntica para os brancos em Angola em relação a determinados sectores, tendo em conta que são uma minoria?
Não, isso não faria qualquer sentido em Angola. No Brasil sim, faz todo o sentido, porque (como disse há pouco) existe clara discriminação de “negros” no acesso à instrução. Em Angola, os “brancos” não têm qualquer dificuldade de acesso ao que quer que seja, por serem “brancos”. Portanto, as quotas por cá não farão qualquer sentido, qualquer que seja o sector para o qual olhemos.

Criou mossa à sociedade angolana uma matéria publicada há vários anos no Semanário Angolense de que a riqueza em Angola teria mudado de cor. O que achou na altura? Houve algum exagero dessa publicação?
Terá realmente criado mossa? Se criou, então quem se sentiu mal vive noutro país que não o nosso. Claro que, se considerarmos haver “raças” na espécie humana, então a conclusão só pode ser essa, de a riqueza ter claramente mudado “de cor” com a proclamação da independência e com a liberalização económica. Se houvesse a possibilidade de termos acesso aos montantes depositados em bancos e à fotografia dos titulares das contas bancárias, constataríamos exactamente isso. Porquê então alguém se sentir ofendido, se a realidade é essa? E não era de esperar outra realidade, isso é o que está correcto. Mas, felizmente, isso não foi feito olhando para a cor da pela das pessoas, ocorreu normalmente. Olhe, recordo-me que dei na altura os parabéns ao meu amigo Graça Campos, pela profundidade de análise – que foi uma análise puramente sociológica. Sem qualquer exagero.

Como sociólogo, o senhor acha que a nossa legislação pune actos que constituem práticas de racismo?
Não, que eu saiba, a nossa legislação é praticamente omissa nesta matéria. A questão da discriminação está presente nalgumas normas, mas não está noutras. Nós temos grande deficiência em termos de legislação laboral. Diz-se que estamos bem a este respeito, mas a verdade é diferente. E é preciso mudar rapidamente este quadro, pois esta é matéria que considero fundamental para a estabilidade e a harmonia social. Atrevo-me até a dizer que, hoje, fala-se demasiado em racismo, sobretudo devido a essa lacuna na legislação laboral. Confunde-se discriminação de outro âmbito com racismo, mas há discriminações várias no acesso ao mercado de trabalho e esses actos não são punidos como deviam. Aliás, até se o faz publicamente, com total impunidade. Só mesmo em Angola isso é possível. Também digo isso no livro.

Como encara o facto de algumas instituições nacionais e até mesmo estrangeiras anunciarem nas páginas do Jornal de Angola que pretendem empregar preferencialmente cidadãos estrangeiros?
Era mesmo disso que falava. É uma aberração. O que foi que aconteceu às empresas que têm esse tipo de comportamento anti-angolano? Nada! Fazemos de conta que não aconteceu nada e, por isso, vão continuar a agir dessa forma, com toda a desfaçatez. Acha que seria possível sair uma coisa dessas num jornal português, chinês, russo ou até americano, com total impunidade? Acha mesmo? Isso não era possível. Mesmo nos Estados Unidos, onde existe nalguns estados racismo institucionalizado, a identidade nacional fala mais alto. Por cá, não. Passámos de 8 para 888. Permitimos de tudo. Isso aconteceu durante muito tempo em empresas petrolíferas.

Olhe, até já aconteceu comigo, num episódio que relato no livro e que não podia tornar público na altura, pois estive algum tempo contratualmente vinculado à organização para a qual trabalhava na altura e me demiti por ter sido alvo de discriminação, por ser angolano. É a esses comportamentos que chamo o “complexo do colonizado”: a colonização já passou, mas continuamos nós a vergar-nos, como se ainda mantivéssemos essa condição. Não está certo. Temos de superar isso.

Não será uma prática de racismo camuflada?
É difícil chamar a isso racismo, porque quando se diz que “não há nenhum angolano para assumir tal função”, fala-se de todos os angolanos, independentemente da cor da pele. As características são similares às do racismo, mas o coordenador da colecção, o moçambicano Carlos Serra, esclarece no livro que isso é mais xenofobia. Eu diria que será, sim, xenofobia, mas com um pouco de racismo tradicional camuflado pelo meio. Aliás, é muito provável que seja mesmo o racismo que está na base desse tipo de xenofobia. Mas o que é pior em tudo isso é que, por incrível que pareça, há angolanos (fundamentalmente de pele escura) que apadrinham esse tipo de xenofobia, contra nós próprios.

O luso-tropicalismo é ou não uma teoria falida?
Considero o luso-tropicalismo, não uma teoria, mas uma ideologia. E como ideologia, é realmente algo falido, algo que caiu em desuso logo à partida. A ideia de que os portugueses eram o máximo e a colonização portuguesa serviu para “aproximar” os “negros” dos “brancos” é coisa que não colhe. Posso ser acusado de estar a simplificar a análise, mas penso estar a fazê-lo bem. Até porque uma das muitas coisas esquecidas pelos adeptos do luso-tropicalismo é que a colonização (qualquer que ela seja) nunca é benéfica, pois traz consigo imposições várias. Passar paninhos quentes por aí não resolve, não altera nem atenua o que quer que seja.

A terminar, gostaria que falasse na questão dos mestiços.
Esta é realmente uma questão importante, que não deve ser ignorada. A mestiçagem é o futuro da Humanidade. Vamos lá tentar desmistificar a questão dos mestiços. Biologicamente falando, o que é o nosso mestiço? O nosso mestiço, resultado do cruzamento entre “negros” e “brancos”, é biologicamente “negro”. Se olharmos para as características somáticas do mestiço (que se têm em conta quando se consideram raças na espécie humana), só podemos concluir que o mestiço é “negro”. O mestiço não tem as características fisionómicas do “branco”, tem as características fisionómicas do “negro”.

A tonalidade da pele, para a qual se olha em primeiro lugar, é apenas um dos elementos, e até o menos importante – pois eu posso escurecer ou clarear a minha pele de um dia para outro, se o pretender. E sem ter de recorrer a cirurgia. Além dos traços característicos da suposta “raça” negra, o mestiço possui também as doenças características da “raça” negra. Biologicamente falando, o mestiço é negro e ponto final.

Sociologicamente falando, o que eu penso é que devemos deixar de olhar para o mestiço como “acidente de percurso”, para olharmos para a mestiçagem como o futuro da Humanidade. Vistas as coisas em termos raciais, o que posso dizer é que, nas cidades angolanas, a maioria somos mesmo mestiços, podemos crer. Não é uma questão de cor de pele, é preciso olharmos para as características somáticas como um todo e para as árvores genealógicas de cada um, e aí vamos verificar que tenho razão.

Qual será o seu próximo livro?
Essa é uma pergunta à qual não consigo responder taxativamente, porque tenho 3 livros começados em diferentes etapas da minha vida. Se calhar, vou concluir primeiro o último deles, para em 2015 tratar de concluir os livros acerca do ensino superior em Angola e acerca da delinquência e criminalidade em Luanda. Fiz, no ano passado, com um colega polaco de nome Jaroslaw Jura, um estudo acerca da percepção que os angolanos têm da China e dos chineses.

O estudo produziu resultados interessantes, que constam de um artigo que vai ser publicado em duas revistas científicas (de Luanda e Varsóvia) e que constam de um livro em inglês que foi produzido sob direcção do Jaroslaw Jura. Acerca do livro em português, que é de minha responsabilidade, tenho já meio livro escrito, com a contribuição também do meu colega. Penso concluí-lo ainda este ano, para chegar ao público leitor em 2015.