Luanda - Talvez por serem femininas, gosto muito das palavras, porque elas, mesmo as mais feias, quando mudam de género e viram palavrões, só nos fazem ou dizem mal, porque alguém que não tem  nada a ver com elas, que somos nós, as utiliza com um tal propósito.

Fonte: OPais

As palavras nunca podem, pois, ser acusadas de nada, mesmo no âmbito dos crimes tidos como involuntários ou na forma tentada.

As palavras não se metem com ninguém.

São absolutamente neutras, mas não são passivas.

Ficam ali no seu cantinho do dicionário, bem sossegadas, até que alguém se lembra delas para fazer ou dizer qualquer coisa nesta grande e permanente aventura que tem sido comunicar com o próximo por mais distante que ele esteja.

Mal ou bem, tem sido graças a elas, que temos conseguido comunicar, transmitindo informações, opiniões, ideias, sentimentos e emoções.

Por tudo isto e muito mais, só posso estar grato a todas as generosas palavras que me têm acompanhado nesta passagem pela vida que já vai longa, sem nunca me terem cobrado um tostão que fosse, por tão bons serviços prestados à minha pessoa e à minha causa.

E muito mais, as palavras teriam feito por mim, se eu as conhecesse melhor, se as utilizasse mais, quer em qualidade, como em quantidade, enchendo alguns livros com os sonhos editoriais que continuam por realizar.

Como é evidente, a culpa deste desconseguimento não é das palavras, mas de quem, como eu, não as tem sabido utilizar como gostaria ou deveria.

Para dar inicio a mais um ano nestas andanças pelas colunas da imprensa onde, como devem imaginar, já perdi há muito tempo a conta das palavras gastas, escolhi o termo kandandu para ilustrar a epígrafe e o conteúdo desta primeira crónica de 2015.

Estamos a falar do ano não sei de quê, mas desconfio que venha a ser de alguma coisa muito pouco simpática para os nossos bolsos, para tentar acertar no escuro de uma previsão que parece fácil diante de algumas evidências.

Mais uma vez, só posso desejar que o meu pessimismo se venha a revelar pouco consistente com a realidade, o que só mais lá para frente será possível saber.

Um amigo meu disse-me nos últimos dias ter ficado bastante emocionado, com as lágrimas a rasarem-lhe os olhos depois de ter lido o abraço que lhe mandei em resposta a um outro que me havia enviado.

“O que de melhor temos para dar é mesmo o abraço quando ele nos sai directamente do coração e se chama  kandandu.

Kandandu Luís e muito obrigado por continuares a ser meu amigo”.

Efectivamente, escrevi depois no meu facebook, kandandu é uma das palavras mais bonitas que conheço, sobretudo quando o abraço nos sai do peito. É aí que ele passa a ser um chi-coração daqueles que nós damos às crianças.

Aliás, pela sua composição e à falta de melhor explicação, kandandu será mesmo um abraço pequenino.

A ter em conta o significado da palavra que, originalmente faz parte do nosso kimbundu, kandandu vem de “dandu” que tanto pode ser abraço como familiar ou parente.

Assim sendo, quando queremos dar um “dandu” a um familiar, podemos utilizar o “dandu ao quadrado”.

Para mim faz todo o sentido “dandu” como abraço, ser sinónimo de “dandu” como parente, familiar, próximo.

Em principio não costumamos dar ou enviar abraços a pessoas que não conhecemos ou àquelas que nos são indiferentes ou mesmo de quem não gostamos, sendo a inversa também verdadeira.

O “dandu” é mesmo para os  nossos “dandus”, não havendo aqui muito espaço para excepções, isto é, para outros abraços menos amistosos, do tipo abraço da víbora, pois não há necessidade de se confirmar qualquer regra.

Amigos, amigos, inimigos à parte, para quem se dá ao luxo de os ter ou de não os poder evitar, por razões que muitas vezes ultrapassam a sua vontade.

Para além do seu duplo e convergente significado, também gosto da palavra kandandu, que por direito já é parte legítima do português que se fala em Angola, por causa da sua sonoridade, da sua plástica, da sua musicalidade, um quesito onde as línguas bantus são imbatíveis quando comparadas com as suas homólogas, prosaicas cacofónicas europeias, se me permitirem esta generalização.

NA- Secos e Molhados/Revista Vida/O PAÍS (2-01-2015)