Brasilia  - Resenha do livro “Ferramentas para destruir o ditador e evitar uma nova ditadura. Filosofia política da libertação para Angola”. Quando um mesmo governante se mantém no poder elegendo-se sucessivamente por mais de três décadas, dessa conclusão pode-se chegar facilmente a uma das duas premissas: ou é um governante excepcional que produz níveis equitativos e crescentes de contentamento social, económico e político, ou utiliza-se de métodos autoritários para obter tal façanha. O caso de José Eduardo dos Santos é notória e publicamente o segundo. Deste fato também não é difícil deduzir que o contrário da primeira premissa também é verdade.


Fonte: pordentrodaafrica.com

A repressão em Angola é sinónimo de violência policial


Há alguns anos, constata-se em Angola a emergência do descontentamento em relação ao governo através de manifestações populares, sobretudo de activistas independentes, que sinalizam descrédito na possibilidade de uma mudança governamental pela via eleitoral seja por conta dos partidos de oposição que não conseguem criar efectivamente uma militância capaz de enfrentar a máquina do MPLA, seja pela intensa repressão que qualquer movimento oposicionista – partidário ou não – enfrenta. Desse modo, tem surgido um debate sobre as alternativas que poderiam ser apresentadas pelos movimentos sociais e pelo conjunto dos defensores mais aguerridos da democracia e dos direitos humanos em Angola.


O activista e autor do livro “Ferramentas para destruir o ditador e evitar uma nova ditadura. Filosofia política da libertação para Angola”, Domingos da Cruz, tem em vista a desejável, porém improvável, saída do governo de José Eduardo dos Santos pela via eleitoral, o que não corresponde a apressadamente julgar-se a proposta do autor como defesa de uma via não democrática para perseguir tal intento. Eleição é um critério de admissibilidade da democracia formal sem, contudo, reduzir-se uma à outra. Democracia demanda muito mais que eleição e liberdade de expressão e de crítica é um exemplo de conduta democrática que falta ser respeitada em Angola. E isso em diversas formas de organização social e não apenas no governo, os vários “nós” que, no dizer do autor, são intolerantes em relação aos opositores ou dissidentes: “Nós Igreja onde todos devem estar de acordo, mas podem criticar para fora, desde que não sejam seus parceiros. O crítico interno lhe é dado uma sorte repugnante. Nós Partidos da Oposição onde devem estar todos de acordo, mas podemos criticar o grupo hegemónico. Quem criticar aqui dentro é expurgado. Nós Sociedade Civil onde devem estar igualmente de acordo, mas finge-se tolerância. Pelo que quem criticar “ad intra” deve ser expurgado ou acusado de agente secreto do regime. Nós Grupo Hegemónico onde a crítica é veneno e custa a vida de quem atreve-se à criticar. Mas os grupos acima, suponho que se tivessem poder de repressão e capacidade de impor toda sua vontade, também seriam capazes de matar os que se atrevem a fazer uso da liberdade de comunicar ou outras liberdades incómodas.” (p.13)


Domingos da Cruz elabora uma proposta de actuação política que ele chama de “desafio político”, termo utilizado pelo polémico militar estadunidense Robert Helvey, tido como fomentador de revoluções golpistas, e que parece não preocupar Domingos, mas acredito que isso não possa deixar de ser confrontado em algum momento quando este livro estiver disponível ao debate. De resto, o livro se vale justamente da necessidade de afirmação da democracia e do dever da desobediência, aspectos que, faltantes em Angola, devem ser continuamente buscados para que fundamentalmente exista uma mudança na cultura política e que esta seja precedente de uma pressão popular que alcance o nível de revolução social, uma revolução sem armas e sem violência: “Partir para a violência é uma contradição com a democracia que defendemos.” (p.17)


Diante de algumas possíveis simplificações que ocorrem ao longo do texto, devemos atentar para o fato de que se trata de um livro prioritariamente dirigido para o público angolano sem critérios prévios de escolaridade, ou seja, não é um texto estritamente académico. A linguagem é, portanto, directa e as explicações procuram ser acessíveis e sintéticas. Podemos dizer, em bom português, que o projecto do autor é desenhado tanto para o leitor comum angolano de escolaridade média como para o que tem acesso a informações de, digamos, cunho mais restrito.


A diferenciação entre ditadura e democracia é um dos aspectos mais importantes do livro, tendo em vista a mistificação do processo eleitoral como principal virtude democrática e também porque participar das eleições actualmente em Angola seria a forma mais simpática ao poder de legitimar a ditadura (p.19).


Nesse sentido, a visão do autor, Domingos da Cruz, é de que evite-se a pactuação com as forças políticas internas concorrentes do poder instituído e também as externas (os “salvadores da pátria”, p.20) e invista-se no processo revolucionário pacífico (“mas não pacifista no sentido cristão”, p.37) fortemente apoiado pela resistência do povo oprimido e com uma organização prévia que tenha desde o seu princípio “um Projecto Político Filosófico de Nação e de País, no qual as forças democráticas possam apresentar aos cidadãos envolvidos ou não directamente na queda do regime, a visão do grupo sobre o que desejam fazer para o país após a derrocada da ditadura.” (p.10)


O livro questiona a falta de planejamento local das revoluções árabes contemporâneas, entendidas como forças democráticas, porém, sem um projecto filosófico e político de nação que levasse a uma sucessão eleitoral sem os graves conflitos vividos posteriormente como ocorreu com o Egipto e a Síria. Bem, este é um ponto polémico que o livro guarda pois, como se sabe, as linhagens fundamentalistas, os militares, os cartéis empresariais e os interesses internacionais do capitalismo corresponderam a intervenções nada democráticas nesses países e já não se pode separar “a força das ruas” dessas intervenções, questão que, por outro lado, o autor cita como mal a evitar.


Aliado a uma condenação frontal da violência como método bem como da negociação com o poder estabelecido e tendo em vista a análise atenta da conjuntura política em que a repressão em Angola é sinónimo de violência policial militarizada e institucionalizada, Domingos da Cruz, pretende fundamentar a estratégia da luta revolucionária na actualidade através da organização e fortalecimento das camadas oprimidas do povo angolano e também de um grupo activo capaz de propor acções que enfraqueçam o governo até sua derrocada e dar seguimento às mudanças sem desvincularem-se dos compromissos com a base popular, esquivando-se assim da ideia ingénua de que não deva existir lideranças em uma proposta de acção popular democrática radical. Acredito que, no entanto, a constituição de uma liderança não deva ser o passo seguinte, mas concomitante, entendendo que a formação dessa liderança colectiva deve exactamente apresentar ao povo angolano um projecto de governo alternativo (tema sobre o qual o autor disserta no último capítulo) que, como tal, ele possa legitimar como seu e empunhá-lo ao invés de armas.