Luanda - A 31 de Maio de 2015 celebramos 24 anos da assinatura dos Acordos de Paz para Angola, assinados em Bicesse, Portugal, por José Eduardo dos Santos, Presidente da então República Popular de Angola (RPA) e por Jonas Malheiro Savimbi, Líder da UNITA. Os Acordos de Bicesse, como ficaram conhecidos, estabeleceram de facto a ossatura, ou seja, as balizas que delimitaram os caminhos para a Paz em Angola, razão pela qual o 31 de Maio deve ser considerado um marco histórico na recente história de Angola.

Fonte: Club-k.net

O percurso até Bicesse foi bastante sinuoso e tortuoso. Com efeito, a assinatura dos acordos de paz foi o corolário de rondas repetidas de aturadas negociações que pareciam estéreis e intermináveis. Chegar a um acordo parecia impossível já que o discurso das partes implicadas situava‐se em polos diametralmente opostos, nada fazendo prever uma possível aproximação. O Governo da RPA estava longe de admitir uma reforma no sistema capaz de albergar o pluralismo político, mesmo diante do desmoronamento em catadupa do bloco do leste. A UNITA, por seu turno, percebia que as suas reivindicações ganhavam cada vez mais eco no contexto internacional e por isso, não estava em condições de fazer concessões neste sentido. Com as posições assim extremadas promover a aproximação das partes afigurava‐se uma missão inglória, à qual, poucas diplomacias no mundo arriscariam um tostão que fosse no tocante a uma mediação exitosa.

A guerra em Angola se compunha, entretanto, de várias camadas de conflitualidade e uma das mais espessas era, talvez, o contexto internacional da guerra fria que levou as superpotências a estenderem o confronto entre si para esta parte austral, polvorosa, do continente. Usando as partes angolanas como autênticos peões, num tabuleiro de xadrêz de elevada complexidade, este contexto internacional funcionou como um factor complicador ao estimular as partes à radicalização. Assim, da mesma forma que a guerra se prolongou essencialmente à custa desta oxigenação externa, o seu fim carecia de um forte patrocínio internacional, não apenas sob a forma de uma mediação impositiva, mas também como agentes participantes, sob os quais impenderiam tarefas preponderantes em prol da paz.

Em 31 de Maio de 1991 os angolanos estavam literalmente cansados de guerra, os efeitos nefastos da guerra eram já a sua segunda pele e pareciam difíceis de ser removidos. Diante dos acontecimentos que levaram à queda do Muro de Berlim, os angolanos começavam timidamente a despertar do turpor provocado por década e meia de um regime opressivo sustentado por ideologias marxistas que estavam então a ser fortemente questionadas e contestadas. O MPLA, alcandorado a regente solitário do Governo da RPA, experimentava então sérias dificuldades para explicar a opção socialista que arruinou praticamente a economia e a estrutura social do país e ensaiava manobras mil para sobeviver da hecatombe socialista provocada pelo furacão Gorbatchev.

Estas manobras, longe de proclamarem uma abertura política irrestrita, refutavam uma mudança mais profunda, argumentando que “o MPLA não precisava de se negar a si próprio”. No esteio desta tese, em vez de abertamente aceitar uma democracia multipartidária, o MPLA propunha uma integração de outras forças políticas no seu seio, no âmbito de uma política que se convencionou chamar “política de harmonização nacional”. Portanto, apesar dos ventos fortes que sopravam do leste europeu e se espalhavam por contágio um pouco por todo o planeta, uma névoa densa pairava ainda sobre Angola e o cepticismo era justificadamente o sentimento predominante entre os angolanos.

Foi por isso com redobrado interesse que no dia 31 de Maio de 1991 os angolanos fixaram atentamente os seus olhos na pequena tela de TV para, à laia de São Tomé, “ver para crer” o que efectivamente estava a acontecer de solene naquela sala longínqua de Lisboa diante de destacadas personalidades internacionais como o então Secretário Geral da ONU Javier Pérez de Cuellar, entre outros.

Testemunhar via TV os líderes angolanos firmarem o Acordo de Bicesse e ouvir depois os discursos de compromisso pronunciados na ocasião foi o estímulo que faltava para os angolanos soltarem o grito de júbilo há muitos anos entravado em suas gargantas. É isto que torna o 31 de Maio uma data memorável, ao acender vivamente uma centelha de esperança para os angolanos. O 31 de Maio deu aos angolanos uma clara indicação de que a Paz era possível, que o convívio na diferença era não só possível, mas vitalmente necessário e que, por isso, Angola não tinha alternativa à democracia, único sistema capaz de acomodar com algum conforto e com o menor atrito possível o convívio na diferença. O 31 de Maio mostrou aos angolanos que o caminho para se ultrapassar inevitáveis desavenças era o diálogo, em vez da confrontação bélica. Em suma, o 31 de Maio se não trouxe a Paz definitiva, proporcionou uma trégua e uma oportunidade para os angolanos repensarem os caminhos a percorrer juntos, rumo à construção de uma Nação singular bem saliente no concerto das Nações.

Mas os Acordos de de Bicesse eram apenas uma construção teórica para a Paz em Angola e logo se revelou que não eram nenhuma varinha mágica para sanar agudas diferenças que conduziram as partes à confrontação. A aplicação prática dos acordos cedo expôs as suas insuficiências e limitações e os mecanismos estabelecidos para harmonizar interpretações díspares nem sempre se revelaram eficazes. Mas há, quanto a mim, um factor que minou profundamente a aplicação dos acordos: a busca por vantagens políticas por parte dos signatários dos acordos. Esta busca se justificava porque o modelo de transição desenhado, com a realização de eleições em 15 meses, lançou rapidamente as partes para uma disputa política desregrada que de imediato fez sobrepor as fortes divergências entre ambos, sufocando acintosamente os factores unificadores, entretanto não amadurecidos. Com isso instalou‐se rapidamente a desconfiança entre os contendores e logicamente, minaram‐se a partida os alicerces que deveriam sustentar o edifício da Paz. A medida que foram se aproximando as eleições e se agudizando a disputa política, as reservas em relação ao cumprimento dos acordos cresciam e os incidentes se multiplicavam, a propaganda hostil fazia moda e nenhuma das partes, verdadeiramente, arriscava desarmar‐se por completo. Ambos mantinham importantes reservas militares para eventualidades.

E as eventualidades não se fizeram rogadas e logo se expuseram imediatamente após a realização das eleições. A guerra voltou com intensidade redobrada e com ela um cortejo de mortes e outras chagas, elevadas a um expoente nunca antes visto. Deslocados, esfomeados, miseráveis passaram a fazer parte da paisagem degradante do país enquanto os contendores pareciam encolerizados. Mas, o que de positivo parecia prevalecer, em meio a tanta desgraça, era o facto de não se terem fechado as portas ao diálogo, parecia que as partes estavam convencidas que qualquer solução teria que ser negociada. A guerra estava a ser utilizada por ambos para se obter vantagens negociais, para se colocar na condição de negociar em posição de força. Ninguém, desta vez, parecia acreditar na eliminação pura e simples do outro e isto mantinha acesa a esperança dos angolanos numa solução mais ou menos rápida do problema.

A comunidade internacional, por meio das Nações Unidas, parecia muito empenhada em aproximar as partes e um dado novo era a nova configuração geopolítica cujos contornos pareciam assumir um carácter monocefálico com os EUA à testa, pois a URSS tinha saído nitidamente combalida e atomizada da Guerra Fria.

Assim, apesar do malogro evidente dos Acordos de Bicesse a porta do diálogo permanecia aberta e de logro em logro foram surgindo emendas aos Acordos, primeiro sob a forma de Protocolo de Lusaka e finalmente o Memorando do Luena. O primeiro procurou essencialmente corrigir as lacunas no modelo de transição previsto por Bicesse introduzindo o Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) e o segundo atacou fundamentalmente os pendentes militares como a conclusão da formação das FAA, como Forças Armadas apartidárias e o complexo processo de desmobilização e reinserção social dos ex‐militares. Portanto, qualquer um destes documentos deixou incólumes os princípios fundamentais plasmados nos Acordos de Paz para Angola, vulgo, Acordos de Bicesse, que são entre outros, o pluralismo político, a realização de Eleições livres e justas, o Exército único e apartidário e o respeito pelos direitos humanos e o reconhecimento pela UNITA do Estado angolano.

Estes princípios plasmados nos Acordos de Bicesse mudaram radicalmente a ordem jurídico‐ constitucional de Angola, abrindo caminho para a implantação de um Estado Democrático de Direito cujos fundamentos são “a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de organização política e a democracia representativa e participativa” (CRA, 2010). Outro mérito de Bicesse é o facto de ter indicado o valor do diálogo como via para a solução de desavenças aparentemente insuperáveis. Com isso, Bicesse estabeleceu as bases para a reconciliação entre angolanos, condição necessária para um convívio salutar na diferença, inprescendível para a compatibilização e conjugação de esforços em prol da edificação de uma Nação coesa, mas plural, sólida, mas complacente com os seus filhos, Nação próspera e que constitua orgulho inquestionável dos seus filhos.

Bicesse é portanto uma referência histórica importante cujas lições devem ser estudadas com dedicada atenção. Desse modo podem evitar‐se reducionismos e simplificações que nada contribuem para o exercício de busca de soluções optimizadas para os inúmeros problemas que ainda dificultam a vida dos angolanos. Bicesse deve merecer leituras por lentes imparciais, desprovidas de preconceitos, sem o viés político‐partidário que distorce invariavelmente a isenção. Bicesse é, enfim, um Tratado, mas ao mesmo tempo um Manual de Bolso ao qual devemos sempre recorrer para encontrar as melhores receitas para a Paz que temos que construir. Bicesse é, portanto, a planta que esboça o projecto do edifício da Paz que temos que necessariamente construir todos os dias. Como diz Alexandra Simeão,

“A Paz é definitivamente um processo. Não é um mecanismo instatâneo e definitivo. Tem que ser monitorado, avaliado e melhorado a cada etapa. Tem que ser implementado com critérios de rigor e que prevejam que sejam dirimidas as dúvidas e os conflitos pessoais. Não podemos usar a Paz como um mecanismo de arremesso, quando consideramos que de forma conveniente vamos amedrontar as pessoas com o monstro da guerra que alguém poderá ressuscitar”.

Como se pode depreender construir a Paz é um processo engenhoso e delicado que implica a existência de referências com base nas quais se monitora e se avaliam possíveis avanços e retrocessos. Isto permite que se condimentem as necessárias correcções e se façam registos fiéis e primorosos sobre a evolução do processo. Bicesse é uma destas importantes referências, certamente não é a única, e deve ser devidamente considerado como instrumento no exercício permanente de reflexão que se impõe em torno da problemática da Paz.

Hoje, distanciados 24 anos de Bicesse e 13 do Memorando do Luena olhamos ainda preocupados para sinais, cada dia mais estridentes, atentatórios ao desejo colectivo de Paz. Todos os dias assistimos impotentes a golpes contundentes desferidos contra o Estado de Direito justamente por aqueles que deveriam ser o garante da Constituição. Sistematicamente o direito à vida é violado por agentes “zelosos”do Estado que se vêm com poderes para retirar a vida a pessoas que pensam diferente do pensamento que se pretende hegemônico. Os recentes acontecimentos no Monte Sumi no Huambo, envolvendo a seita de Julino Kalupeteka, expôs mais uma vez a virulência destes agentes do Estado instrumentalizados para defesa do autoritaritarismo. A reacção absolutamente desproporcional a uma acção totalmente mal conduzida da Polícia Nacional resultou num autêntico massacre que as autoridades procuram a todo custo ocultar. Só que esquecem‐se que esconder centenas de mortes é absolutamente impossível e, por isso, este acto macabro brota todos os dias evidências. A liberdade de expressão é ultrajada todos os dias, a custa de uma pretensa manutenção do poder por uma certa elite, enfim, o poder tem agido deliberadamente de forma a minar os fundamentos do Estado de Democrático de Direito e gerar retrocessos pronunciados nas conquistas democráticas alcançadas com os Acordos de Bicesse.

Estas acções estão longe de ser mera casuística, pois tudo indica que obedecem a uma sistemática com propósitos contrários ao espírito e a letra dos Acordos de Bicesse. A título ilustrativo, alguns aspectos da própria Constituição de 2010 representam um acentuado distanciamento do espírito e da letra dos Acordos. Por exemplo, em relação as eleições, o Protocolo de Estoril, uma das peças dos Acordos, dispõe taxativamente:

“É proclamado que serão realizadas eleições. Para o Presidente da República, serão por sufrágio directo e secreto, através de um sistema de maioria, com o recurso a uma segunda volta, se necessário. Para a Assembleia Nacional, serão por sufrágio directo e secreto, através de um sistema de representação proporcional a nível nacional”.

É este princípio que determinou o modelo de eleições defendido pela Constituição revista de 1991 e que estava devidamente protegido por cláusulas pétreas. Ao impôr um modelo diferente a Constituição de 2010 passou por cima das chamadas cláusulas pétreas da Constituição de 1991 e ignorou na base um dos princípios basilares dos Acordos de Paz para Angola. Houve, portanto, a intenção deliberada de se afastar do espírito de Bicesse e para entender este comportamento é preciso associá‐lo a declarações que espelham uma inconformação com a democracia por ser considerada uma imposição ocidental.

E por último, e porque algumas mentes transtornadas da nossa sociedade, vocalizadas sobretudo por espigões acoitados no Jornal de Angola, enveredam cada vez mais por um discurso perigoso que procura negar direitos políticos à UNITA, vale lembrar que a UNITA conquistou estes direitos por mérito próprio, fruto da sua luta tenaz de resistência que determinou o estabelecimento dos Acordos de Bicesse. Dizem explicitamente os Acordos de Bicesse que

“a UNITA adquirirá o direito a conduzir e participar livremente em actividades políticas, de acordo com a Constituição revista e as leis pertinentes relativas à criação de uma democracia multi partidária. Incluindo especificamente: liberdade de expressão, o direito a apresentar, publicar e debater livremente o seu programa político, o direito a recrutar e angariar membros, o direito a organizar reuniões e manifestações, o direito de acesso à comunicação social do estado, o direito à liberdade de movimentos e segurança pessoal dos seus membros, o direito a apresentar candidatos às eleições, e o direito de abrir sedes e gabinetes de representação em qualquer parte de Angola”.

Ninguém, por isso, está a fazer favor nenhum à UNITA. Respeitar esse direito é uma condição para a Paz por muito que isso doa a algumas mentes que se julgam iluminadas e superiores. Citando outra vez Alexandra Simeão, vale lembrar que: “A Paz não pode ser mantida à força. Ela decorre do compromisso pessoal estabelecido entre pessoas com os mesmos interesses e com o mesmo compromisso em relação à sua Pátria. A Paz só pode ser atingida e mantida por via do entendimento e não por via do sofrimento, da manipulação, das prisões arbitrárias, do impedimento ao Direito de Manifestação protegido pelo artigo 47o da nossa Constituição. A paz não depende do outro. Depende de nós. Cada um de nós pode ser ou não a Paz”.

Luanda, 31 de Maio 2015