Lisboa - O juiz-conselheiro do Tribunal Constitucional, Onofre dos Santos, recorda os momentos de muita desilusão que viveu no período da independência de Angola, porque esperava que "seria tudo maravilha". Em entrevista à Angop, em Lisboa, a propósito dos 40 anos da independência do país, o antigo director-geral das primeiras eleições gerais da história de Angola (1992) conclui que, apesar dos percalços vivenciados, no fim e ao cabo, valeu muito a pena a ocorrência, porque era "a resposta à dignidade dos angolanos", acima de tudo.

Fonte: Angop
Onde é que se encontrava aquando da proclamação da independência nacional, a 11 de Novembro de 1975?
Estava no Ambriz (província do Bengo). Vindo de Kinshasa (RD Congo), cheguei nos primeiros minutos do dia 11 de Novembro. Aterrei no Ambriz, uma discrição que consta no meu livro ?Os meus dias da independência? (2014), que, muitas vezes, é lembrado nesta altura. Naturalmente, passaram-se 40 anos, mas aqueles comentários lembram-me, perfeitamente, aquilo que foram momentos de expectativas, de esperanças, etc.

Que memória ainda guarda?
Sinceramente, tive muitas desilusões relativamente àquilo que estávamos à espera. Eu esperava um acontecimento glorioso; que seria tudo maravilha, mas, como todos sabemos, a independência nasceu como acontece com o nascimento das pessoas: com muito sangue. Foi um parto difícil e levou algum tempo a conseguir chegar-se àquele momento em que hoje andamos. Felizmente, hoje já andamos com o nosso próprio pé. Já se cresceu mais.

Olhando para trás, valeu a pena a conquista da independência?
A independência é uma coisa que foi sonhada durante décadas. Não se pode recuar muitas antecedências, porque Angola nunca foi um país com a configuração geográfica e política que tem hoje. Havia muitos reinos com quem Portugal, nas suas viagens de descoberta, criou negociações ou tratados. Depois, houve ocupações, situações de domínio abusivo e, no fim, já no século XIX, criaram-se as colónias.

Todos os países europeus sentiam que tinham que ter em África uma colónia, que, no fundo, era uma extensão, o seu espaço para expansão. Os europeus admitiam que era em África onde podiam fazer uma afirmação da sua existência na Europa, mesmo no caso de países tão pequenos como Portugal ou a Bélgica.
A independência valeu a pena, porque foi uma resposta à necessidade de dar dignidade aos angolanos. O problema não era saber se os angolanos iriam ficar melhor no dia seguinte. O importante é que os angolanos tinham o caminho aberto para a sua própria dignidade. Este é o ponto fundamental da independência.
Se, hoje, ainda não conseguimos ser o país que gostaríamos de ser, em que o povo todo tenha os benefícios da independência, o facto é que, há 40 anos, foi conquistada a possibilidade de um caminho em que todos se sentissem mais dignos, porque não estaríamos sob dominação de outrem, por cima um europeu, que, em África, era sempre um estranho, e que, durante séculos, justificou a sua presença com função civilizadora. E houve muita coisa que aconteceu, que permitiu que os angolanos fossem tomando consciência de luta anti-colonial.
Foi uma conjugação muito interessante, porque houve angolanos e cidadãos de outros países de língua portuguesa que saíram de Portugal, onde estavam a estudar, para enveredarem pela luta. Alguns deles tornaram-se presidentes ou primeiro-ministros, embora nada tenham conseguido sem o apoio das bases. Por exemplo, no caso da Casa dos Estudantes do Império, o Estado português pensava que era um viveiro de aportuguesados, mas, caricatamente, verificou que estava a criar líderes nacionalistas.

Foi um erro de cálculo do regime colonial português?
Não que tenha sido um erro. Se calhar, ao criarem a Casa dos Estudantes do Império, fizeram-no de boa intenção. Às vezes, tenta-se fazer uma coisa, mas sai ao contrário.

O "tiro colonial" saiu pela culatra a Portugal?
Por mais que a gente contrarie, aquilo que tem de ser e o que deve ser, acontece. A Casa dos Estudantes do Império é um marco, porque nela confluíram não só angolanos, como também moçambicanos, cabo-verdianos, santomenses, bissau-guineenses, entre outros. Curiosamente, coincidiu também com a luta de alguns portugueses, que queriam derrubar o regime fascista, que tinha o aspecto de dominação colonial. A Espanha, ao lado, era também fascista, mas como deu a independência à Guiné Equatorial, já não foi tão atacada nesse plano.

O que terá falhado para que, após a independência, Angola entrasse em guerra? Terá o período de transição sido eficaz e pacífico?
A transição nem foi eficaz, nem pacífica, porque Portugal, naquele momento, entendeu que havia movimentos com os quais fez acordo (os Acordos de Alvor), mas se verificou uma coisa: os angolanos não estavam todos coesos. Mesmo na luta de libertação, o MPLA, a UNITA e a FNLA nunca se congregaram. Houve tentativas para isso, mas o que é facto é que estas diferenças, por momento, se apagaram. Em Portugal (durante a assinatura dos Acordos de Alvor), os três partidos falaram numa só voz, mas, depois, vieram ao de cima as grandes divergências que havia entre eles.

Quais eram, nessa altura, as principais divergências?
Eram mais divergências ideológicas. Estávamos num mundo de dois blocos (o americano e o da então União Soviética), e havia uma inclinação para um destes lados. Havia a possibilidade de jogar com países vizinhos, como a África do Sul, que tinha naquela altura um sistema racista. Havia amigos/aliados de ocasião que foram usados, porque, em desespero de causa, a gente lança a mão ao primeiro amigo que nos estende a corda.

Foi o que aconteceu com os três movimentos?
Exactamente. Mas a democracia levou algum tempo a chegar como solução. No fundo, a ideia foi: ?vamos depor as armas e vamos disputar o poder na base do voto. O povo somos nós todos e vamos deixar o voto falar ao invés das armas?. Esta foi a evolução que se deu em 1991/92 (com as primeiras eleições gerais em Angola). É verdade que o mérito se deveu aos partidos que lutaram entre si, que fizeram o acordo, mas precisamos de ter a noção de que o poder foi devolvido ao povo, no sentido rigoroso e literal do termo, através das eleições.

Pessoalmente, em que termos acredita nessa evolução democrática do país?
Já tivemos três processos eleitorais (em 1992, 2008 e 2012), e notamos que a população eleitoral vai aumentando gradualmente. Dos quatro milhões, passamos para oito milhões de eleitores. Nas próximas eleições teremos mais eleitores. E a vontade do povo vai depender muito daquilo que quer para o seu futuro: um futuro de desenvolvimento e de uma maior justiça social. Por outro lado, as pessoas hoje têm muito mais educação. Este é um aspecto fundamental. Não podemos fugir disso. Angola tem feito um esforço muito grande na extensão da educação a toda sua população. Claro que ainda há regiões de difícil acesso e com carências.

O que vai resultar do que considera ?mais educação?
Resulta que as pessoas têm muito mais consciência. Enquanto, em 1992, as pessoas iam provavelmente por trás de uma bandeira, hoje já perguntam quais são as promessas para o futuro. Ainda estamos numa fase muito intermédia, em que se vota no partido do coração, mas não temos a menor dúvida de que há uma nova geração, mais educada, que já vê o futuro de uma maneira diferente e que espera dos partidos, além da bandeira e do mérito de terem feito a luta de libertação para a independência, pensamento de futuro. E aí vão perguntar: ?qual é o partido que está em melhores condições para nos assegurar melhores condições, para mim e para os meus filhos??. Esta é a preocupação. É muito mais a projecção para o futuro que eu vejo como uma coisa que será a mais importante nos próximos tempos.

Como "homem de eleições" como está Angola nesse sentido?
Defendo que as eleições devem ser fiscalizadas, observadas e ter todos os elementos de verificação e de transparência. Acredito que todas as que foram feitas até agora tiveram este alto padrão de verificação. Mas podemos melhorar estes padrões. Portanto, os partidos devem dizer exactamente quais os padrões que querem e discutir-se isso para que não haja dúvidas quanto aos resultados eleitorais, que dependem do povo. E o povo deve merecer a nossa confiança. Tivemos uma dominação colonial muito longa, uma luta de libertação de muitos anos, depois sucedeu uma guerra civil, também longa, que tornou o país quase martirizado. Felizmente, estamos a construir a reconciliação nacional e progredir. As coisas estão a progredir.

Como vê a grande preocupação de momento: a queda do preço do petróleo no mercado internacional?
Todos estamos a enfrentar hoje um problema que é o de ainda não termos conseguido chegar à diversificação da economia.

Isso pode ou não comprometer o futuro de Angola?
Naturalmente, compromete. Qualquer partido que está no poder precisa usar os recursos materiais para fazer mais escolas, hospitais e para ter mais defesa, mais segurança, etc. Mas, se te dizem que a sua receita vai baixar 50 porcento, tem que se fazer menos daquilo que estava previsto. É uma pena que vamos ter algum retrocesso, mas a vida das Nações é assim mesmo. Pode-se frustrar este ano, mas é impensável medir a perspectiva do futuro de Angola por causa do que vai acontecer nesse ano. Estou mais preocupado com o problema da diversificação da economia, que já constava da agenda de todos. O problema é como um filho que fica 10 anos na Universidade, quando deveria estar só cinco, pensando que o pai garante-lhe tudo.

Um filho desprecavido?
Estamos a passar um pouco disso. Tudo era muito mais fácil. A actual quebra da receita, por causa da queda do preço do petróleo, teve o condão de nos despertar. Pode ser bom, mas não é em um ano que vamos diversificar a economia. Todos teremos que apertar o cinto, provavelmente, por alguns anos. A economia não se revigora em dois dias. Temos que ter a noção de que as coisas vão andar lentamente. Tenho pena que isto tenha acontecido. Mas, por outro lado, já que aconteceu, ela vai servir de despertador para acelerarmos outras reformas, nomeadamente de atracção de investimentos. Não podemos viver só de grandes investimentos, mas também de pequenos. Temos a sensação de que nos grandes investimentos, às vezes, nem um angolano é empregado. Contrariamente, os pequenos investimentos geralmente empregam muitos angolanos.

Ao nível da política externa, como vê Angola? Vai continuar a manter o seu peso no continente africano, principalmente?
Angola deve capitalizar isso. Neste momento, estamos no máximo. Angola está no Conselho de Segurança das Nações Unidas, está a liderar os Grandes Lagos e não há dúvidas de que Angola fez um processo de paz extremamente complexo e difícil; e teve uma negociação que contribuiu para a independência da Namíbia, entre outros. Angola tem uma experiência de diplomacia e de processo de conciliação bastante intenso. Eu não conheço em África um único país que teve processos tão bem conseguidos, e com sucesso, como os que Angola teve. Em Angola, todos os processos de paz demoraram, mas se conseguiu a paz. Há muita gente que pensa diferente em Angola. Pensa-se erradamente só por se estar há bastante tempo a governar. Mas é diferente do que Portugal viveu durante 45 anos de ditadura. Angola tem um processo de teor diferente daquilo que se viveu em Portugal.

Tem alguma mensagem ao angolanos pelos 40 da independência?
Dou os parabéns ao povo angolano, porque conseguiu aquilo por que lutou durante muito tempo e pelo que já tem conseguido. Mesmo se compararmos com muitos países, mesmo com o gigante que está ao lado (África do Sul), a nossa situação é muito diferente. A única coisa que devemos fazer agora é não nos envaidecermos ou pensar que somos o máximo, mas com humildade pensar como é que podemos ajudar os outros a serem como nós, estabelecendo contactos diplomáticos com todos os povos, sobretudo os africanos a nossa volta. Não podemos esquecer que, para Angola ser independente, se deveu também à ajuda de muitos destes países africanos, que hoje estão um bocadinho com menos ordem que Angola, mas que esses países deram a mão. Também temos de dar a mão. Tem de haver mais solidariedade, mais encontros e mais dedicação aos países que estão à volta, porque acredito que nunca seremos grandes sem sermos generosos.

Perfil

Nome completo: Onofre António Alves Martins dos Santos
Data de nascimento: 16 de Dezembro de 1941
Naturalidade: Luanda
Ocupação: Juiz-conselheiro do Tribunal Constitucional, desde 20 de Junho de 2008

Habilitações académicas: Licenciado em Direito (1954-1964) e em Ciências Económicas e Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1964-1966); Curso de pós-graduação em Direito de Petróleo e Gás (2009-2010) na Faculdade de Direito na Universidade Agostinho Neto.

Cargos exercidos: Director-geral das eleições realizadas em 1992; Consultor eleitoral em missões das Nações Unidas de 1994 a 2005, relacionadas com eleições na Guiné-Bissau, Serra Leoa, Bangladesh, Vukovar (antiga Jugoslávia), Lesotho, República Centro-Africana, Níger, Costa do Marfim e Ghana; Advogado em Luanda desde 1966, onde exerceu, cumulativamente, as funções de juiz do Tribunal de Menores e de Execução de Penas, até 1975.