Luanda - Angola continua a registar um aumento no número de crianças de rua, algumas abandonadas pelos próprios progenitores, outras fugidas de casa para se verem livres de maus tratos da família e, em consequência disso, põem-se nas ruas na esperança de lá encontrarem algum aconchego e alguém que lhes dê um pouco de amor

Fonte: O País
Eram aproximadamente 21 horas quando a equipa de reportagem deste Jornal pôs-se nas ruas da capital para constatar a realidade e o drama dos meninos de rua.

No momento em que desenvolvíamos a reportagem encontramos várias crianças nos locais que para elas são considerados como os seus aposentos, pois é neles onde estão os seus pertences tais como a cama feita de caixotes, sacos de plástico e colções antigos, a loiça e a roupa apanhadas em uma lixeira qualquer.

No momento em fazíamos a ronda, pelos pontos de maior aglomeração de meninos de rua, passamos pelo largo do N’Zinga onde encontramos o menino Jorge Avelino e os seus companheiros de rua.

Jorge Avelino, de apenas 10 anos de idade disse que está na rua há um mês, os pais vivem no Zango 4. O pequeno disse que saiu de casa porque a mãe mandava-lhe lavar a sua própria roupa e a dos seus irmãos, disse ainda que era sempre ele quem lavava a loiça de casa. O menino contou que quando não fazia as tarefas domésticas que lhe confiavam, os pais batiam-lhe muito, razão que o fez abandonar a casa para ir viver na rua com objectivo de procurar paz e uma família que não o obrigasse a fazer trabalhos de adulto.

“Quando temos fome pedimos dinheiro às pessoas que passam e com o dinheiro que nos dão compramos comida. Somos muitos e quando compramos comida dividimos”, disse.

Há um mês longe de casa, sem tomar banho e sempre com a mesma Marroupa com a qual saiu de casa, o pequeno disse que sente muita coceira no corpo e que gostaria de tomar banho e trocar de roupa.

No mesmo local encontramos o menino Osvaldo Francisco, de 11 anos de idade, e falava connosco soluçando porque encontrava-se completamente tonto e sonolento, por alegadamente ter sido obrigado pelos adultos, beber o famoso ‘ngui’ (gasolina ou diluente) que normalmente utilizam como droga para se embriagarem.

Osvaldo contou que vive na rua há um ano. A mãe encontra-se detida por ter queimado mortalmente o irmão que supostamente lhe roubava as coisas e o pai é alcoólatra.

“Geralmente cheirava a gasolina, mas hoje os adultos que também dormem aqui no largo, obrigaram-me a bebê-la, receberam-me o dinheiro que ganhei das esmolas e disseram-me que se eu não aceitasse beber, iriam-me aleijar”, disse.

O menino afirmou que não sente vontade de voltar à casa viver com o pai, porém gostaria de ir para um centro de acolhimento, para poder estudar e ser um piloto no futuro, como sempre sonhou.

Segundo as afirmações do pequeno Osvaldo que, no momento em que o entrevistávamos queixava-se de dores de barriga, quando não têm o que comer, ele e os amigos dirigem-se aos mercados onde apanham banana podre para comer, e a água que utilizam para beber, é a que corre nas fontes dos jardins que se encontram na Praça da Independência.

Em apenas uma semana que Adilson António de 12 anos se encontra na rua, já aprendeu a inalar o ‘ngui’, tal como o mesmo explicou dizendo ter aprendido a embriagar-se de gasolina com os amigos que encontrou na rua.

O menino contou a O PAÍS o motivo que o fez sair de casa, dizendo que depois de ter deixado o irmão menor sozinho em casa, sentiu medo de que os pais o castigassem por isso decidiu não voltar mais e abrigou-se na rua juntando-se aos outros meninos. Adilson disse ainda que pretende voltar à casa, mas não consegue porque soube que a família mudou-se para outro bairro.

O dia-a-dia dos meninos de rua é uma rotina que se resume em pedir esmolas e fazer alguns trabalhos tais como carregar sacos e lavar carros visando ganhar algum dinheiro para comprar comida.

No fim do dia voltam aos seus cantinhos de descanso. Esses cantinhos são geralmente carcaças abandonadas ou debaixo das pontes, dos edifícios ou mesmo debaixo das árvores ,onde arrumam caixotes, sacos e alguns farrapos de pano que estendem no chão servindo de cama. Entre as crianças que encontramos dormindo naqueles locais, a maioria queixava-se do frio que sentem durante a noite.

Neste ambiente de sofrimento e de luta pela sobrevivência, os mais crescidos aproveitam-se das criancinhas para explorá-las e obrigá-las a drogar-se com gasolina como forma de castigo quando elas não os obedecem.

Prosseguindo, fomos até aos Congolenses onde fizemos uma paragem junto a passagem aérea e lá encontramos outro grupo de meninos de rua dormindo no passeio. Entre eles estava o Manucho, de 17 anos, que disse ter saído de casa quando tinha apenas 13 anos e vive na rua há quatro anos.
Manucho abandonou a família na província da Lunda Sul e rumou à Luanda em busca de melhores condições de vida e desde que cá chegou, a sua vida tem sido viver na rua e a trabalhar duro para sustentar-se.

Psicóloga esclarece causas

A psicóloga Samba Jerónimo esclareceu como tem sido o comportamento das crianças que são tiradas das ruas e levadas ao Centro, dizendo que trabalha com crianças de rua há quatro anos, e o trabalho que faz consiste em ajudar os meninos a encontrarem-se e a adaptarem-se, mostrar-lhes que há regras e limites.

Samba Jerónimo disse que isso acontece porque existem crianças que saem de casa sem saber que existem limites e regas que têm que ser cumpridas, então o seu trabalho é fazer com que essas crianças saiam desse mundo de libertinagem e saibam o que é ser livre com responsabilidade e autonomia.

Segundo a psicóloga, quando as crianças chegam ao Centro demonstram sempre um carácter humilde para poderem ser aceites e integrados no grupo, mas não deixam de ser agressivas, explicou que trata-se de um carácter que adoptam para se defenderem dos outros, principalmente os mais pequenos, porque na rua existe de tudo e por isso acabam assumindo algumas características rudes.

A entrevistada esclareceu que o grupo mais difícil de trabalhar são os meninos mais crescidos, alegando que as criancinhas são mais obedientes e quando são muito agredidas pelos outros procuram livrar-se deles. Já os mais crescidos, ainda que estejam a ser agredidos preferem ficar na rua porque já têm a sua vida e os seus vícios e não podem ser obrigados a sair de lá. No entanto as crianças podem ser moldadas e trabalhar com elas por muito mais tempo. Neste trabalho de acompanhamento comportamental da criança, a psicóloga procura utilizar técnicas como a entrevista e actividades lúdicas. Explicou que a entrevista serve para construir a história da criança, sendo que é nas actividades lúdicas em que é dada a educação psicológica no sentido de fazer com que as crianças valorizem os temas que são desenvolvidos em palestras.

A psicóloga apontou as principais causas que fazem com que as crianças abandonem as famílias e vão para as ruas, destacando a falta de atenção por parte dos pais, a negligência da própria família e as agressões físicas e verbais.

Para a interlocutora, anteriormente a guerra era apontada como a causa principal, mas considerou que hoje em dia o contexto é diferente, e fez menção à violência doméstica e a desestruturação das famílias como sendo também uma das causas que fazem com que as crianças fujam de casa. “ Nem sempre os meninos que saem das ruas e chegam ao Centro conseguem adaptar-se, isso acontece porque o Centro tem as regras de uma casa, tem hora para se fazer determinadas tarefas e os meninos que saem das ruas não conseguem conviver com regras nem limites”, disse a psicóloga.

No sentido de se evitar que mais crianças vivam nas ruas, Samba Jerónimo deixou um apelo aos pais e as famílias em geral, afirmando que uma atenção redobrada às crianças é fundamental, isso porque mesmo estando dentro de casa elas sentem-se abandonadas.

“Por vezes nós corremos atrás de tantas coisas e acabamos por nos esquecer daqueles que são os pilares da casa, é importante saber que os pais são o espelho dos filhos e os filhos seguem os pais, infelizmente os pais passam o dia no trabalho e os filhos passam o dia na rua”, disse.
A psicóloga terminou dizendo que o amor, o carinho e a atenção são essenciais na construção de uma família salutar, ao contrário de muitos que acham que o dinheiro é tudo para manter o individuo.

A equipa móvel de ajuda que socorre crianças de rua

O responsável da equipa móvel de ajuda e também enfermeiro, Fortuna da Costa disse em entrevista, que a referida equipa existe há quatro anos, desenvolve os seus trabalhos à noite, das 19 as 22 horas e trinta minutos. É composta por quatro elementos nomeadamente um motorista, um enfermeiro, uma educadora social e uma psicóloga.

A equipa foi criada pelo Centro de Acolhimento de crianças Arnaldo Janssen que antigamente se chamava de centro Padre Horácio. Foi criada porque havia a necessidade de se fazer trabalhos de rua à noite devido a situação de vulnerabilidade em que se encontravam algumas crianças.

A equipa é financiada por uma Organização Não Governamental internacional e foi esse apoio que fez com que os passeios que faziam apenas uma vez por semana passassem a ser feitos cinco vezes por semana.

Entre os trabalhos que a equipa desempenha, destacam-se a distribuição de alimentos, roupa, e principalmente o apoio psicossocial e médico. Quando os membros desta equipa de ajuda chegam ao local de acção, procuram primeiramente ganhar a confiança das crianças que geralmente encontram entretidas na brincadeira ou a dormir, distribuem os alimentos e de seguida examinam o seu estado de saúde.

As crianças com ferimentos recebem curativos, as que apresentam febre são submetidas ao teste rápido de paludismo, e quando o teste é positivo inicia-se-lhe o tratamento. As que apresentam enfermidades graves são levadas ao hospital onde são acompanhadas por um especialista. E as que precisarem de acompanhamento psicossocial são encaminhadas à psicóloga.

Segundo o responsável da equipa de ajuda, chegam a atender aproximadamente treze crianças enfermas por dia. Entre as patologias que mais predominam, destacam-se as parasitoses e as febres.

O material que a equipa utiliza para a assistência médica das crianças, tal como fez saber Fortuna da Costa, provém de apoios e doações que recebem e têm direito a medicamentos durante um mês. “O que mais faz falta na área de enfermagem é o material gastável, como ligaduras e medicamentos para o curativo, pois as crianças têm tido muitos ferimentos”, disse.

A referida equipa móvel tem desenvolvido acções de ajuda em focos que são chamados de ‘lugar de vida’, e actualmente operam em sete focos nomeadamente, o foco dos Congolenses, do Nzinga, dos Combatentes, do Aeroporto, do Chamavo, da Rádio Vial e o foco de Viana.

Para além do tratamento de assistência médica, os membros desta equipa fazem também actividades recreativas com as crianças para a sua diversão. A faixa etária dessas crianças varia entre os 07 e 19 anos de idade.

Nem tudo é maravilhoso no trabalho que os integrantes desta equipa desempenham, pois já muitas vezes foram alvo de agressão por parte de alguns meninos de rua, e para se prevenirem de possíveis ataques, tomam algumas precauções tais como evitar trabalhar em focos com pouca iluminação.

O maior objectivo desta equipa de ajuda, segundo afirmou o seu responsável é o de tirar o maior número de crianças das ruas e levá-las aos centros de acolhimento e depois dos centros, levá-las de volta para as famílias caso seja possível. “Apesar do trabalho que temos feito, o número de crianças de rua tende aumentar a cada dia que passa, no início do ano em curso registávamos um número reduzido mas, à partir do mês de Março os números começaram a aumentar, em cada foco encontrávamos uma criança nova a cada dia” disse.

No que concerne à origem dessas crianças de rua, Fortuna da Costa disse que são maioritariamente crianças residentes da província de Luanda, são poucas as que provêm das outras províncias do país.

Lar Kuzola acolhe mais de 240 crianças

A directora geral do Centro de Infância Lar Kuzola, Engrácia do Céu disse em entrevista a este Jornal que, a instituição que dirige existe há mais de 39 anos, foi criado em 1976 na altura devido a situação de guerra que o país atravessava e haviam muitas crianças perdidas, deslocadas e órfão. Antigamente era uma instituição de âmbito nacional e atendia crianças de todo o país.

No início da sua criação o lar dependia directamente do Ministério da Assistência e Reinserção Social (MINARS), mas com a questão da descentralização passou para o Governo da Província de Luanda, afecto a direcção provincial do MINARS. Com o decorrer do tempo, o Governo foi trabalhando com parceiros da sociedade civil, e surgiram algumas irmãs-freiras que foram apoiando o Governo na gestão do Lar Kuzola.

A directora fez saber que em 2011 o Governo em parceria com a companhia petrolífera TOTAL que é o patrocinador principal do Lar Kuzola, lançou um concurso público para que outras estruturas da sociedade civil pudessem candidatar-se para a gestão do Lar, e surgiram para tal seis instituições participantes incluindo a Fundação Lwini que teve a melhor proposta técnica e acabou por vencer e ficado com a gestão do Lar.

Antigamente o Centro tinha a capacidade de acolher 150 crianças, mas com a ampliação que foi submetida, passou para 250 crianças de ambos os sexos e funciona 24 horas ao dia. Com essa restauração surgiram no Centro novas áreas. O Lar foi equipado, reforçou-se o número de trabalhadores, comprou-se material de apoio para as actividades, equipamentos de trabalho e uniformes para as crianças e tendo tudo isso sido possível com o apoio do Governo e em particular da Presidência da República. “Embora o mandato da instituição seja albergar crianças dos zero aos catorze anos de idade, temos aqui adolescentes com 15, 16 e 17 anos e estamos a aguardar que exista uma outra instituição para os acolher”, disse.

A responsável afirmou ainda que em 2012 por um decreto presidencial, o Lar Kuzola ganhou um estatuto orgânico que o permitiu tornar-se em unidade orçamentada e incluida no Orçamento Geral do Estado.

Engrácia do Céu afirmou que uma grande parte das crianças que entram no Centro é abandonada em unidades hospitalares em condições de saúde que requer muita atenção, alegando que algumas crianças são mesmo portadoras de VIH, tuberculose, má-formação congénita, malária e tantas outras patologias. Nesta senda, a directora engrandeceu o papel do Ministério da Saúde pelo apoio significativo que tem dado no tratamento dessas crianças.

Referindo-se ao mês de Junho que é dedicado à criança a entrevistada referiu que as crianças precisam da atenção dos adultos em todos os dias e meses, e não esperarem somente que chegue o dia 01 de Junho para se reflectir e falar dela. Acrescentou dizendo que a reflexão em torno da criança deve ser feita no sentido de se saber o que realmente se quer para as crianças angolanas.

“ Quando falamos em construir o amanhã, devemos pensar naquilo que fazemos hoje para as nossas crianças, se quisermos mudar a nossa sociedade temos que fazer com que ela cresça e se desenvolva com homens porque é o factor decisivo”, disse acrescentando que por mais riquezas que um país tenha, a maior delas é o ser humano que começa na criança, e assim sendo deve haver mais responsabilização na educação das crianças a partir da família.

Para finalizar, a directora afirmou que apesar dos esforços que o Governo e a sociedade estão a envidar, o número de crianças de rua não diminuiu ainda e considerou ser importante redobrar mais esforços porque os indicadores continuam a aumentar.

E como possível solução para a diminuição do número de crianças de rua, a responsável apontou a educação comunitária com enfoque nas famílias, alegando que Angola precisa de trabalhadores sociais nas comunidades e que daí capacitem as famílias sobre os cuidados a ter com as crianças.