Luanda - Tal como estava mais ou menos na cara, desde que o primeiro comunicado oficial confirmou a detenção dos “révus” a 20 de Junho último, ao que se seguiram mais algumas notas oficiosas por entre uma inédita maratona de contactos políticos e diplomáticos, o “processo do ano” não tem legitimidade nas pernas para andar, mas agora vai ter mesmo que ir para frente, a não ser que aconteça o “milagre da lucidez”.

Fonte: RA

Este “milagre” em que algumas pessoas ainda acreditam, a ser possível, vai, certamente, resultar de como se fará a evolução do factor tempo numa conjuntura que até ver, é, manifestamente, desfavorável aos desígnios do poder estabelecido, que é a parte mais interessada e activa deste processo do lado da acusação.

Antes de mais, em termos de conjuntura, não há como ignorar o peso do comportamento negativo do preço do petróleo, com todas as consequências recessivas que ele já está a provocar.

Para já, o tempo é mesmo o único conselheiro que poderá fazer os promotores deste processo, entre os que estão na ribalta e os que se movimentam na sombra, a desistirem das suas intenções.

Também já está mais ou menos claro que estamos efectivamente diante de um “processo de intenções” com a roupagem de um processo judicial, alquimia que não é muito difícil de se conseguir para quem conhece a realidade política angolana, que continua a ser marcada pela pesada herança do passado monopartidário e do sistema das correias de transmissão, no centro do qual existia a “vanguarda” que controlava toda a engrenagem. Pelos vistos esta “vanguarda” continua a existir, havendo algumas novidades do lado das “correias de transmissão”.

Num “processo de intenções” por melhor que seja montado para o fazer passar por um processo judicial normal/sem aspas, há sempre qualquer coisa estranha que chama a atenção dos observadores mais atentos que de imediato começam a desconfiar de que ali há gato escondido com o rabo de fora.

No caso em apreço até os mais distraídos tiveram esta sensação de estranheza desde os primeiros momentos em que as “notícias” começaram a chegar à opinião pública e publicada, incluindo a mais bombástica que foi a última, relacionada com um suposto pedido de asilo político aos EUA, via sua embaixada em Luanda.

A possibilidade de ainda podermos vir a ser testemunhas do “milagre da lucidez” vai decorrer enquanto não se formaliza a acusação/despacho de pronuncia, que ao que tudo indica e depois de todos os “flagrantes delitos” e com todas as “provas” já recolhidas e algumas delas apresentadas, deverá ficar-se pelo artigo 28 da Lei 23/10 de 3 de Dezembro que é a Lei dos Crimes contra a Segurança do Estado.

O referido artigo que no limite nos pode levar ao absurdo, cria alguns crimes na forma tentada ou mesmo pensada, pois pune com pena de prisão até 3 anos ou a multa até 360 dias “os actos preparatórios” em várias situações previstas, sendo uma deles a de rebelião (artº21).

O mencionado crime é aquele que os comunicados e os pronunciamentos oficiais mais têm referido até agora, embora já tenhamos ouvido falar também em destituição do Presidente da República, o que não é exactamente a mesma coisa.

“Actos preparatórios” pode ser tudo e mais alguma coisa, desde que o Ministério Público e a autoridade policial que agora se chama Serviço de Investigação Criminal (SIC) assim o decidam.

Trata-se de uma concordância que entre nós não oferece grandes dificuldades de se obter, pois só agora e ainda muito timidamente as pessoas começam a acreditar que a PGR já faz parte de um poder, o judicial, que é independente e que não deve qualquer tipo de subordinação ao Executivo.

Na prática e nesta direcção, as coisas estão mesmo só a começar para concluirmos que neste âmbito da nevrálgica separação de poderes, que é uma das traves mestras do Estado Democrático de Direito, a procissão ainda vai mesmo no adro.

Dissemos que o processo não tem legitimidade para acrescentarmos que no limite talvez ainda lhe sobre alguma legalidade, embora mesmo neste quesito e apesar de todas as garantias dadas, já se estejam a verificar alguns atropelos não negligenciáveis, que posteriormente podem dar lugar aos inevitáveis recursos por inconstitucionalidade.

Sempre muito discutível esta questão da legitimidade versus legalidade e sem se pretender alargar esta discussão para patamares mais académicos por falta de espaço, e também por não ser bem a nossa praia, somos partidários dos que defendem como o brasileiro António Carlos Volkmer que a primeira “incide na esfera da consensualidade dos ideais, dos fundamentos, das crenças, dos valores e dos princípios ideológicos”.

Está mais do que claro que neste processo, para já, a nota mais consensual que ele está a provocar é o agravamento da fractura sócio-política e o desentendimento total entre os cidadãos, não havendo a mínima possibilidade de todos aqueles que discordam do passo dado pelas autoridades, reconhecerem nele outras razões que não sejam efectivamente políticas na base da intolerância e da manipulação da opinião pública.

Todos os outros que, aparentemente, mais por razões de disciplina partidária e fidelidade política apoiam esta perseguição aos jovens como tendo alguma legitimidade, estão para já refugiados no argumento da legalidade, limitando-se a defender que é preciso deixar a justiça fazer o seu trabalho, evitando-se a politização do dossier.

Um argumento que de repente, não sei bem porquê, nos fez lembrar o papel que alguns advogados oficiosos fazem nos julgamentos de cidadãos indigentes, onde só abrem a boca para dizerem duas palavras: Peço Justiça.

Nos últimos dias os contornos da intencionalidade deste processo tornaram-se ainda mais visíveis, depois de se ficar a saber que a “prova” mais importante dos alegados planos golpistas do grupo, que era tal lista do governo de salvação nacional, afinal não passava de uma “proposta” que já circulava nas redes sociais há pelo menos duas semanas como tema de debate público.

O seu proponente, um preclaro jurista da nossa praça assumiu a sua autoria na maior das calmas, mas com uma grande firmeza que ele soube traduzir numa verdadeira e gritante acusação da acusação, que só pode resultar, obviamente, na absolvição dos arguidos, caso este processo venha a ser julgado apenas por um Magistrado Judicial na solidão da sua consciência e independência.

PS- Gostaria de me incluir no grupo de pessoas que ainda acredita na ocorrência do citado “milagre da lucidez”.