Luanda - De acordo com a Constituição, Angola é, formalmente, um Estado Democrático de Direito que tem como fundamento a soberania popular, a primazia e supremacia da constituição da e da lei, a separação de poderes no qual se promove e defende os direitos, liberdades e garantias fundamentais da pessoa humana, na democracia representativa e participativa (artigo 1.º e 2.º).


Fonte: Club-k.net


O governo coexiste com pluralismo político


Segundo o prof. Gomes Canotilho (2003, p. 231), « (...) a ideia nuclear do Estado de direito (...) é a sujeição do poder a princípios e regras jurídicas –, garantindo às pessoas e cidadãos liberdade, igualdade perante a lei e segurança».


Por sua vez, Fernando Macedo e Pedro Romão (2008, p. 51) defendem que a ideia do Estado de Direito colide com a cultura da sacralidade do Estado em relação aos cidadãos, pois a Estado de Direito é visto como « sendo um Estado concebido, criado e estruturado para assegurar o respeito e a garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana».


Esta perspectiva de "Estado de Direito" ganhou um contributo substancial do Papa João Paulo II, de feliz memória, na sua Carta Encíclica «Evangelium Vitae, n.º 101, na qual  asseverou: « De facto, não é possível construir o bem comum sem reconhecer e tutelar o direito à vida, sobre o qual se fundamentam e desenvolvem todos os restantes direitos inalienáveis do ser humano. Nem pode ter sólidas bases uma sociedade que se contradiz radicalmente, já que por lado afirma valores como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas por outro aceita ou tolera as mais diversas formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo se débil e marginalizada. Só o respeito da vida pode fundar e garantir bens tão precisos e necessários à sociedade como a democracia e a paz. De facto, não pode haver verdadeira democracia, se não é reconhecida a dignidade de cada pessoa e não se respeitam os seus direitos».


Neste sentido, para João Paulo II, o Estado de Direito será então aquele que « (...) reconheça como seu dever primário a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente da mais débil».


Assim, com base nestes pressupostos teóricos, podemos afirmar que o Estado de Direito tem na sua essência a ideia de um governo limitado pelas leis, promotor da dignidade da pessoa humana, da justiça, da igualdade de direitos e perante ao Direito, da liberdade e aposto ao arbítrio do poder.  Assim, o princípio do Estado de Direito, segundo Jónatas Machado, Esteves Hilário e Paulo Costa (2013, p. 95) « é incompatível com o dogma " the king can do no wrong"; por isso, não pode ser questionado, interrogado, avaliado, censurado negativamente ou criticado.


Noutra perspectiva, o Estado Democrático supõe que poder reside facto e de iure, no povo, seu verdadeiro titular (art. 1.ºe 2.º). Aqui o governo funciona e actua com base no consentimento do povo manifestado em eleições livres, justas, plurais e transparentes, sem fraude, corrupção ou clientilismos (art. 4.º, 52.º a 55.º).


A democracia se funda no respeito e garantia dos direitos dos direitos fundamentais dos cidadãos. Ela não se resume ao momento eleitoral, nem tão pouco à militância partidária. O Governo e/ou o partido que o suporta são apenas mais um dos entes que coexistem numa sociedade política, cultural  e economicamente plural [art. 14.º, 21.º l), 43.º, 55.º da CRA]. Democracia não significa só eleições, é também um modo de estar  e de viver e estruturar a sociedade que se alicerça com virtudes e acções democráticas reveladoras de transparência, justiça, liberdade e igualdade de oportunidades.


Neste sentido, numa democracia, tal como adoptada formalmente na Constituição angolana, o governo coexiste com pluralismo político assente na existência de partidos políticos, associações, sindicatos e, no geral, numa sociedade civil independente, autónoma e livre do controlo político governamental ou partidário (art. 47.º,48.º, 49.º, 50.º, 55.º).


Assim, os cidadãos de modo individual ou colectivo podem, além de votar ou serem eleitos (art. 54.º), potenciar as possibilidades de liberdade de pensamento, opinião e de expressão (art. 40.º e 44.º), liberdade de criação cultural, artística e científica (art. 43.º), de denúncia, reclamação e queixa para defesa dos seus direitos e contra os atropelos à legalidade democrática (art. 73.º) e de avaliação ou censura da implementação das políticas públicas (art. 52.º).


Pode-se afirmar então que, de acordo com a CRA, em democracia, a voz do governo, do Executivo ou do seu Chefe pode ser a última, mas nunca a única. O contrário, estaríamos diante de um regime político autoritário, ditactoria ou pseudodemocrático.

 
Em Angola, contra o que dispõe a própria Constituição, nem todos os cidadãos que falam de paz, de democracia ou de Estado de Direito, querem a paz, a democracia, o Estado de direito fundados ou alicerçados na liberdade, na justiça, na supremacia da lei, na igualdade perante a lei, pluralismo e no respeito pleno pela dignidade da pessoa humana.


Não poucas vezes, os Agentes, funcionários do Estado e seus comentaristas de mídia, que invocam as leis, a justiça e os direitos e liberdades fundamentais,  são os mesmos que subvertem ou contribuem para violação destes princípios e dos direitos/liberdades fundamentais que dão alicerce ao nosso processo de construção da democracia. Muitos dos seus actos ou omissões constituem, de facto, "golpes ao Estado" de Direito Democrático, com apoio da mídia estatal.


Aqui, a palavra «golpe», entende-se « (...) o acto de força posto em prática pelo próprio governo a fim de se sustentar no poder» [de Plácido e Silva, 2007, p. 660], ou ainda, « (...) o procedimento dos governantes à margem do direito, fazendo uso da força para alterar a legalidade existente». [João M. Franco/ António Martins, 1995, p. 456].


No texto em análise, com a palavra «golpe» referimo-nos aos actos dos órgãos, agentes e funcionários do Estado que visam alterar a ordem democrática prevista na CRA.