Luanda - Defende a tese de que várias normas jurídicas proibitivas angolanas incorporam elementos que a moderna ciência política identifica como sendo um regime autoritário. Existindo, por conseguinte, esse tipo de regime em Angola por causa da violação continuada dessas normas. Doutorando em Ciência Política na Universidade do Cabo, na África do Sul, Fernando Macedo entende que esse mesmo “regime autoritário” continua a decidir que partidos entram para o Parlamento. Numa conversa pouco ortodoxa e sem papas na língua, o entrevistado fala da ‘realpolitik’ nacional, não poupa críticas ao “apego ao poder por parte de alguns presidentes de partidos da oposição”, e acusa a secreta angolana de “não estar ao serviço do Estado democrático de direito”.

Fonte: Novo Jornal

Deve-se devolver aos cidadãos o  direito de apresentarem candidaturas independentes dos partidos

Nestes últimos dias, assistimos a uma série de situações que colocam a política no centro das atenções do país, aliada a todo o alvoroço económico que ganhou igualmente destaque no espaço de debate público, ligados sobretudo à Sonangol, e etc., etc. Como vê hoje o estado de saúde do país político?

Eu reformularia a pergunta, com sua permissão, da seguinte maneira: Que tipo de regime político temos? A moderna ciência política identifica um novo tipo de regime político, que tem sido criado e mantido no contexto do pós‐Guerra Fria, os “regimes autoritários competitivos” (Levitksty and Way 2010) ou “pseudo‐democracias” (Larry Diamond 1997) ou “regimes eleitorais autoritários” (Schedler 2006). Os regimes autoritários competitivos são regimes civis nos quais existem instituições democráticas formais e são comummente vistas como os principais meios para ganhar o poder, mas nos quais o abuso do Estado dos que estão no poder coloca‐os numa significativa vantagem em relação aos seus oponentes. Tais regimes são competitivos no sentido em que os partidos da oposição usam as instituições para competirem criticamente pelo poder, mas não são democráticas, porque o campo do jogo é pesadamente distorcido em favor dos que estão no poder. A competição existe mas é injusta”. (Steven Levitsky and Lucan Way 2010:5).

Ou explicitado de outra maneira, “o partido governante controla as alavancas do poder (a administração eleitoral, o registo dos partidos, a polícia e o sistema de justiça, os mass media, para não mencionar o crédito, contratos e empregos), de tal modo que os partidos da oposição não têm oportunidade de ganhar poder a nível nacional. O controlo do Estado pelo partido governante impede qualquer partido ou coligação de partidos de mobilizar apoio eleitoral suficiente para ganhar o controlo do governo, se a oposição mobilizar tal suporte, o partido no poder usa a fraude imediatamente para reter o controlo” (Larry Diamond 1997: 3‐4). Pode‐se, nesse tipo de regime político, destacar a violação impune ou quase impune das liberdades civis e políticas dos cidadãos por parte do partido governante e de órgãos do Estado. Os elementos constitutivos dessas definições estão incorporados em normas constitucionais e legais proibitivas da República de Angola, podendo‐se facilmente demonstrar pela violação continuada dessas normas jurídicas que temos um regime autoritário dessa natureza. Todavia, as opiniões e definições podem sempre ser rebatidas. (risos)

Há uma ideia, que é transmitida por alguns políticos, sobretudo ligados ao partido da situação, segundo a qual o fim último da intervenção social na política deverá ser nas urnas. Daí não haver para já espaço para contestações para com quem exerce o poder. Esta ideia que se pretende passar fere ou não alguns princípios do exercício democrático?

Com certeza que sim, fere, na minha opinião! “A democracia pode ser entendida fundamentalmente como forma ou técnica processual de selecção e destituição pacífica de dirigentes” (Canotilho 2003: 291/citando Popper). A democracia não entra de férias depois das eleições. A democracia e o Estado de direito (art. 2.°/1 da Constituição da República de Angola (CRA) pressupõem a contínua participação dos cidadãos nos processos de decisão pública por meio de eleições e de outras formas de participação garantidas pela CRA, apoiando ou contestando quem exerce o poder político. A participação contínua dos cidadão conexiona‐se com a legitimidade do exercício do poder político.

A legitimidade democrática tem duas dimensões: A legitimidade do título habilitante e a legitimidade do (ou no) exercício do poder político. Na primeira dimensão, ganha o direito de exercer o poder político – título habilitante – quem vence eleições livres, justas, honestas (não fraudulentas) e democráticas (art. 21.°/3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 4.° da CRA). Eleições que não sejam honestas (não fraudulentas) não conferem legitimidade a quem as ganhe. Na segunda dimensão, a Constituição em vigor estabelece que o Presidente da República (PR), os deputados e as deputadas podem perder os mandatos através de processos judiciais e disciplinares (estes últimos apenas para os deputados e as deputadas), na eventualidade de exercerem o poder político em desconformidade com a Constituição e as leis ordinárias (arts. 127.°/1/2, 129.°, 152.°/2‐e da CRA).

Está‐se aqui perante a afirmação da legitimidade do (ou no) exercício do poder político, que significa que apenas devem continuar a exercer o poder político até ao fim do seu mandato aqueles e aquelas que não o exerçam contra constitutionem e/ou contra legem. Feito este enquadramento, parece‐me que os defensores da tese por si referida pretenderiam que os governantes, exercessem o poder político sem a contínua responsabilidade perante o cidadão, que deve “ser informado sobre os actos do Estado e a gestão dos assuntos públicos” (art. 52.°/1 da CRA), e que tem a liberdade de opor‐se aos governantes que violem a Constituição e as leis ordinárias de maneira gritantemente dolosa.



Não havendo hoje uma responsabilização sobre os actos de gestão que levem, por exemplo, governantes à Assembleia Nacional, ou à consequente fiscalização dos actos do exercício do poder (suspensa ainda no mandato de Paulo Cassoma), faz dos detentores de cargos públicos isentos de qualquer responsabilidade perante os seus actos. Qual é o seu entendimento sobre essa situação?

Essa omissão deliberada da Assembleia Nacional – caucionada por um acórdão aberrante do Tribunal Constitucional, que poderá ser considerado fraude à CRA – a que faz referência e à qual se poderá juntar a do sistema judicial, pode induzir a uma lídima resposta pacífica por parte de cidadãos. O meu entendimento é de que a Assembleia Nacional violará várias normas constitucionais se não exercer as competências de controlo e fiscalização política e legislativa sobre o executivo e o impulso da acção criminal contra o PR, se houver fundamento para tal (artigos 161.°/c/d/e/h/k/m, 162.°/a/c/d/e, 170.°, 171.°, 172.°, 129.°/5 da CRA). Todavia, o Presidente e os seus auxiliares no exercício das funções legislativa (actos normativos com força de lei) e administrativa (actos administrativos e regulamentos) estão igualmente sujeitos à responsabilidade civil e criminal perante os tribunais pelas acções ou omissões que resultem na violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para o titular (pessoas de carne e osso) destes (direitos, liberdades e garantias) ou para terceiros e ainda por acções ou omissões definidas pela CRA como crimes passíveis de destituição do cargo (art. 75.°, 127.°/1/2, 129.°/1 ‐ a, b, e,/2 – a,b,c, da CRA).

Caso a responsabilidade do Presidente e dos seus auxiliares perante a Assembleia Nacional e os tribunais falhe de maneira permanente ou simplesmente se for ostensivamente omissiva, na minha opinião, os cidadãos podem mobilizar‐se para exigirem que a Assembleia Nacional e os tribunais ajam em conformidade com a Constituição e a lei. Se ainda assim tudo permanecesse na mesma, estou seguro de que assistiria aos cidadãos, em última instância, o recurso ao direito colectivo de manifestação pacífica contra essa subversão da ordem democrática. Note, a título ilustrativo, o seguinte quadro: Se um grupo de cidadãos fosse capaz de mobilizar milhares, quase ou milhões de cidadãos através de manifestações pacíficas – repito destacando manifestações pacíficas – exigindo que o Presidente da República deixasse o poder, por prática de crimes previstos no art. 129.° da CRA, este poderia renunciar ao mandato nos termos do art. 116.° da CRA. Tudo dependeria da magnitude do protesto público, da irrefutabilidade das omissões e acções imputadas ao PR e da sua elevação espiritual. Trata‐se, na minha opinião e salvo seja melhor opinião, de um acto de responsabilidade política do PR perante os cidadãos perfeitamente coberto pela interpretação sistemática da Constituição vigente. Pior seria ainda a circunstância da subversão da ordem democrática pelos poderes executivo, legislativo e judicial...

“As secretas em Angola não estão ao serviço do Estado democrático de direito”



O debate político neste momento limita‐se à Assembleia Nacional, e este debate, por sua vez, não é visto pelo grande público. Estamos em presença de uma clara violação, se atendermos ao facto de que o cidadão é deliberadamente impedido de acompanhar as decisões políticas do país?

Debate limitado e com ameaças aos deputados e deputadas da oposição. A Assembleia Nacional deve, por força da Constituição em vigor, o mais depressa possível, transmitir via RNA e TPA, em directo, os debates que nela tenham lugar. E mais, organizar‐se ao ponto de as intervenções das deputadas e dos deputados serem transcritas e publicadas. Muitos parlamentos africanos têm essa prática, em países com menos recursos do que Angola. Por força de comandos constitucionais e legais, os cidadãos têm o direito de ser informados em tempo oportuno acerca das soluções que os legisladores dão aos seus problemas.

Há uma observação algo fatalista, que não faz fé na oposição, que reclama que esta não tem estado à altura da velocidade política, inclusive apresenta‐se como exemplo a cobertura que o MPLA tem nos órgãos públicos de informação sob pretexto de que as outras forças políticas não têm uma agenda que justifique, digamos assim, uma aparição constante nessa mesma imprensa. O que pensa sobre isso?

Não estou de acordo com essa tese. A competição política mede‐se por meio da avaliação permanente dos governantes e dos que pretendem exercer o poder político pelos cidadãos‐eleitores. Para o efeito, os partidos políticos têm de ter igual oportunidade de apresentar as suas ideias através do contraditório por via dos órgãos de comunicação social do Estado e dispor de todas outras condições indispensáveis ao exercício do direito de oposição democrática (art. 17.°/4 da CRA), para que se institucionalize de facto a competição política. Sem prejuízo de se deverem organizar ao ponto de o seu programa de governo merecer o apoio do eleitorado, em eleições não fraudulentas.

Contudo, os partidos políticos da oposição não têm tido igual tratamento nos órgãos de comunicação social do Estado e outras condições mais para o pleno exercício do direito de oposição democrática. Para além dos partidos políticos, indivíduos e organizações da sociedade civil, independentes, devem poder contribuir para a formação da opinião pública numa sociedade pluralista e democrática. Mas tal como aos partidos políticos da oposição não lhes são proporcionadas oportunidades iguais nos órgãos de comunicação social do Estado, que estão transformados em órgãos de propaganda do partido que governa.

Falar‐se em golpe de Estado até há um tempo a esta parte constituía um exercício quase de conspiração explícita contra as instituições do país. Hoje fala‐se de golpe de Estado por tudo e por nada. Esta ideia quase banal de golpe de Estado expõe demasiadamente as instituições do Estado ligadas à segurança ou não?



Expor as instituições do Estado ligadas à segurança? (risos). Em Angola muitos agentes da segurança do Estado (entenda‐se secretas) são conhecidos por exercerem essa profissão! As secretas em Angola não estão, na minha opinião, ao serviço do Estado democrático de direito...

O que pensa da alusão que fez o presidente do MPLA ao 27 de Maio de 1977 para se referir ao alegado golpe de Estado que os jovens estariam, segundo a PGR, a preparar? Um dossier que era até então uma matéria quase intocável pelas lideranças do MPLA, por representar um passivo do partido até hoje pouco esclarecido.

Estou convencido de que milhões de angolanos e angolanas gostariam de saber o que o engenheiro José Eduardo dos Santos pretendeu ou pretende atingir com essa afirmação!

Uma das provas a que fez referência o procurador‐geral da República é uma lista de um tal “Governo de Salvação Nacional”, cuja redacção, ao que se sabe, teria surgido nas redes sociais há três meses, e teve como mentor o jurista Albano Pedro, que já assumiu publicamente ser o seu iniciador. Que força legal tem uma prova como essa?

Esperemos para saber em sede de audiência de julgamento quais serão os argumentos do Ministério Público!

A UNITA vai agora em Dezembro a congresso, que poderá decidir a continuidade de Samakuva ou a ascensão de Numa ou de um outro quadro do partido que se venha a candidatar. Pensa que o sucesso ou insucesso desta força política nas próximas eleições está muito dependente do que sairá desse congresso ordinário?

Na minha modesta opinião, a UNITA precisa de manter e consolidar a sua coesão interna. Penso que esse congresso constituirá um grande teste à visão e comportamento democráticos dos líderes desse partido. A ver vamos...

Na sua opinião, enquanto segunda força política do país, a UNITA tem feito o suficiente para a alternância política ou está ainda refém dos erros do MPLA?

Eu classifico o actual regime como autoritário. Neste tipo de regime a participação dos partidos políticos e da sociedade civil é dificultada pela acção do aparelho securitário e dos órgãos de comunicação social do Estado. Em bom rigor, é incerto aferir o poder de representação política dos partidos se as eleições não tiverem sido e não forem justas e não fraudulentas. No entanto, o Grupo Parlamentar da UNITA e o presidente deste partido político têm estado muito activos. É de justiça reconhecer

 que a CASA tem tido igual prestação do seu Grupo Parlamentar e presidente do partido. Com sinceridade, espero muito mais da FNLA e do PRS. O Bloco Democrático é um partido com enorme potencial competitivo. Mas penso que todos estes partidos podem fazer muito mais no plano da organização interna, do estudo das questões políticas, económicas e sociais. E pela capacitação dos seus militantes, dando especial atenção aos seus jovens quadros. Com este esforço aumentarão seguramente a sua capacidade de contribuir para a democratização do Estado.

Já é possível antever o que virá a ser o cenário político pré‐eleitoral, olhando como está o xadrez das forças políticas, neste momento composto pelo MPLA, UNITA, CASA‐CE (que deve passar a partido político), a FNLA, o PRS, estes com assento parlamentar; o Bloco Democrático, PDP‐ANA, entre outros, estes fora do Parlamento?

Se os partidos políticos da oposição não conseguirem que os órgãos de comunicação social do Estado respeitem a ordem informativa democrática baseada no contraditório, iguais oportunidades de intervenção discursiva e objectividade da informação e que as eleições sejam honestas e transparentes (arts. 17.°/4, 44.°, 4.°/1 da CRA e 21.°/3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem), em minha opinião, continuaremos a ter um regime autoritário que decide que partidos entram para o Parlamento e com que percentagem de deputados. Por outro lado, e salvo melhor opinião, não acredito que um único partido da oposição, no contexto actual e em razão de vários factores, consiga atingir esses objectivos sem um esforço baseado numa forte coligação de partidos. Mas os partidos são livres de competirem não coligados. E os cidadãos livres de os penalizarem através do seu voto, em eleições não fraudulentas. Preocupa‐me o apego ao poder por parte de alguns presidentes de partidos da oposição. Entendo que os partidos políticos não devem ter presidentes vitalícios, ainda que eleitos.

“Em certos círculos restritos era quase dado adquirido que o Presidente da República não levaria o seu mandato até ao fim, mas é evidente que não é sensato encarar esta opção nas circunstâncias actuais”, afirmou José Eduardo dos Santos na última reunião do Comité Central do MPLA. A quem acha que o líder dos camaradas dirigia esse recado?

Com humildade, não disponho de elementos suficientes para fazer conjecturas em relação às intenções do senhor engenheiro José Eduardo dos Santos. Todavia, numa democracia, dada a relevância pública do assunto, à saída dessa reunião o senhor engenheiro José Eduardo dos Santos teria sido confrontado com perguntas feitas por jornalistas tendentes a esclarecer o seu pensamento e intenções.

O facto de se ter referido abertamente à transição nas fileiras do MPLA não deixou de constituir um dado novo na abordagem política do seu partido, mas ter avançado que convinha primeiro que se escolhesse o candidato a Presidente da República antes da eleição do presidente do partido é indício de alguma mudança de fundo que possa ocorrer ou uma espécie de encontro de “cartas marcadas”?

Na minha opinião, o senhor engenheiro José Eduardo dos Santos deve criar as condições, com lisura, para que os seus companheiros que queiram, disputem em plena igualdade de oportunidades a liderança do MPLA. Penso igualmente que se deve despedir da política não se voltando a candidatar aos cargos de presidente do MPLA e de Presidente da República.

Ainda hoje é discutível o imperativo constitucional segundo o qual os candidatos a Presidente da República têm de estar atrelados obrigatoriamente a partidos políticos. Na sua opinião, o princípio de igualdade constitucionalmente consagrado sai de algum modo ferido por esse outro imperativo constitucional?

Tenho fé de que um dia vamos rever a actual Constituição e pôr fim à forma de eleição do Presidente da República e devolver aos cidadãos o direito de apresentarem candidaturas independentes dos partidos a esse órgão do Estado.