Luanda - A parceria entre o estado e a igreja durante os 40 anos de independência, o contributo dos fiéis na luta de libertação nacional e o envolvimento destes nos aspectos sociais do país concorrem para que o metodismo continue a ser um movimento aglutinador, segundo o bispo Emílio de Carvalho.

Fonte: Angop

A maior parte dos nacionalistas está ligada à religião. Com base nisso, qual foi o contributo da Igreja Metodista para o alcance da paz?
Um grande contributo sem igual e sem ele a luta de libertação não teria expressão nacional. A igreja teve um papel positivo, foi uma igreja que não recuou. Enfrentou o colonialismo, porque os colonialistas visaram em primeiro lugar os metodistas, acusando-os de políticos desnacionalizantes, de estarem envolvidos na luta de libertação. Voluntária ou involuntariamente, estes religiosos viram-se envolvidos nesta movimentação de massas, de correspondências ideológicas e escritas. Em tudo isso, os metodistas estavam envolvidos. Havia grupos de nacionalistas fora de Angola a travar também uma grande luta política e armada, e encontravam apoio dentro das populações que viviam no interior de Angola e dentre eles muitos metodistas. Estas pessoas envolveram-se voluntariamente ou involuntariamente na luta de libertação nacional. Tivemos 98 pastores mortos e outros tantos massacrados pelos colonialistas durante a guerra de libertação nacional e muitos estavam envolvidos na luta de libertação nacional.

Uma vez alcançada a independência, que papel desempenhou a Igreja Metodista?
A Igreja Metodista considerou-se parte do território de Angola. Não podemos separar, embora muitas pessoas no principio quisessem separar religiosos e não religiosos, a verdade é que na luta de libertação de Angola houve mistura, não se fez esta distinção. É o povo de Angola, o povo angolano e pronto.

Está satisfeito com o desenvolvimento registado no metodismo?
Estou satisfeito e também não estou satisfeito. É uma posição paradoxal. Satisfeito porque alcançamos alguma coisa, mas queremos alcançar mais. Queremos continuar a evangelizar, não podemos parar, se bem que alguns pensam que podemos parar porque já há outras tarefas onde estamos envolvidos. Mas a tarefa principal e fundamental da igreja é continuar a evangelizar, ganhar vidas para Cristo, assim como envolver-se igualmente na evangelização social. É necessário que nos empolguemos na obra social em prol da sociedade angolana, sejamos parte desta obra social, educacional. Tudo isso é uma obra importante para a nossa igreja.

E nas conquistas de infra-estruturas, na expansão da igreja o que gostaria de ver conquistado?
Houve muitas conquistas e infra-estruturas. Se falarmos de infra-estruturas, estamos também a falar do trabalho que o estado está a desenvolver e que o metodismo está envolvido por ser parte do povo angolano. Sinto-me satisfeito com o desenvolvimento industrial, agrícola, educacional, expansão do ensino, saúde e todo tipo de obra social, porque o metodismo faz parte da sociedade angolana. Portanto, faz parte de todo contentamento que a sociedade angolana pode sentir por estas infra-estruturas direita ou indirectamente, mas deve-se fazer mais a todos os níveis.

Angola viveu longo período de guerra, com irmãos desavindos. A igreja alguma vez foi chamada a intervir no processo de pacificação?
A igreja sempre foi um lugar onde todos podiam se reunir, sejam do MPLA, FNLA, UNITA e outros partidos políticos. Estavam todos dentro da igreja. A separação deles era ideológica e nunca espiritual. Quando se tratava de adorar a Deus, estavam todos no mesmo lugar. Estávamos divididos politicamente, é natural. E este pluralismo político registado é muito salutar. Eu não condeno o pluralismo político, condeno-o quando são postos de lado os objectivos da pátria, da nação, para realçar objectivos pessoais e partidários. Mas eu não ponho de lado o pluralismo político, sejamos diferentes politicamente, mas saudáveis porque nem todos nós pensamos da mesma maneira.

Apesar dos últimos acontecimentos políticos, com tentativas de manifestações, descontentamentos. Acredita que a paz é definitiva?
Sim, é definitiva. Nascemos num país jovem de 40 anos apenas, onde não temos ainda experiência política. Em outros países registam-se acções como estas. Não podemos ver tudo pacificamente, indiferentemente do olhar um dos outros. É necessários haver estes choques políticos. Choques políticos sim, mas sem manifestações violentas e com a exclusão de qualquer tipo de violência. A nossa constituição, as leis permitem a democracia representativa. Faz parte da democracia do estado de direito.

O que fazer para a preservação da paz?
A paz é um objectivo e todos quando olham para este objectivo, o olhar, a atenção, a forma de agir, a actuação têm em vista este objectivo que é a paz. A paz é um objectivo e a estrada que conduz à paz tem estas radiações, estas variações notadas em Angola, mas o objectivo de todos é a paz.

Qual foi o maior feito da Igreja Metodista nos 40 anos de independência?
Foi que no meio de todas estas lutas alcançamos a paz. A Igreja Metodista manteve as suas instituições, o seu dever patriótico, a fé em Jesus Cristo. Isto é que são vitórias que podemos clamar para nós mesmos.

Há uma crescente proliferação de seitas religiosas no país. Como a Igreja Metodista encara este fenómeno?
Encaro o fenómeno das seitas religiosas apenas num plano. Quando se trata de mostrar a nossa fé, conta em primeiro lugar a compreensão da fé cristã. Ela varia de pessoa para pessoa, de cultura para cultura. Nota-se entre as diferenças políticas. São positivas porque elas representam uma maneira diferente de cada pessoa olhar pelo aspecto político no país. Somos diferentes. Este pluralismo, vou voltar a falar, de ver as coisas, é saudável, mesmo na religião.
No protestantismo há uma série infinita de religiões protestantes. Esta variedade plural demonstra que as experiências religiosas também são variáveis. Estou a falar do lado positivo, não do lado da “proliferação”. Esta palavra para mim é negativa. A variedade de experiência religiosa varia de pessoa para pessoa. Estas denominações começaram porque cada um tem uma compreensão da fé, daí aparecer os vários ramos das denominações religiosas. Mas é só, quando se torna uma anarquia, a influência é negativa.

O que deve ser feito para regularização da situação?
Anarquia aparece quando no seio de muitas igrejas há lutas de poderes. Em África, por exemplo, há luta da tribo, onde cada tribo quer ter o seu grupo. Quando isto acontece é prejudicial, assim como não se pode formar uma religião com base na raça. Tudo isso são elementos que penetram no pluralismo, mas mesmo assim é saudável.

Agora torna-se muito difícil. No princípio, nós insistimos muito com as estruturas governamentais para que prestassem muita atenção nos problemas das denominações em Angola. Agora que elas estão ”proliferadas” é muito difícil voltarmos para trás. Medidas drásticas, disciplinares, coercivas. No campo da religião, estes procedimentos não existem, geram confusão, até mesmo mortes. Acho que temos de agir com muita paciência, continuar com encontros ecuménicos, com o movimento pela unidade das igrejas, que não é uma unidade orgânica, mas uma unidade em torno de Cristo e dos objectivos da religião.

Temos de estar sempre juntos a discutir, conversar e vermos estes problemas, porque se estivermos sempre juntos não haverá problemas. Outro passo é prestar muita atenção ao ecumenismo, movimento pela unidade das igrejas, ainda que não esteja ligado a um organismo internacional, mesmo localmente. Temos de criar grupos para conversar e discutir problemas teológicos e sociais. Isto iria desabafar o clima de divisão que nós temos.

Segundo a afirmação do Bispo, “a palavra de Deus pode-se transformar numa propaganda em benefício de homens ávidos de poder e de dinheiro”... Que diferença com a pregação?
Isto é um dos aspectos dos problemas da expansão do evangelho em Angola e no mundo. Há elementos que para espalhar a palavra de Deus transformam-na em propaganda religiosa como forma de ganhar dinheiro através da religião, trazendo prejuízos para a religião e para a própria igreja.

E prejuízos para a sociedade...
Não digo muito os prejuízos para a sociedade, mas para os próprios cristãos que devido a este tipo de actos surgem os problemas de questionar certos aspectos sociais, religiosos, porque os que andam a fazer propaganda religiosa são confusos.

Presentemente fala-se muito da perda de valores morais e cívicos. No entender do bispo, o que tem estado a faltar à sociedade?
Acho que estamos a cair muito no absolutismo, perdas de valores? Quantas famílias perderam valores? Poucas. Temos que distinguir que há famílias e pessoas exemplares em Angola. Devíamos olhar para o exemplo que estas famílias dão e tirarmos de lá lições para a nossa própria vida. Tirarmos lições do evangelho, que está sendo esquecido em certos aspectos, olhar ao campo do aspecto positivo do relacionamento humano onde podemos melhorar o problema de violência em Angola.

A gente vai pela violência, fala-se muito da violência doméstica. Nem todas as famílias vivem com a situação de violência doméstica. Há casos sim. Coisas que já existiam até no tempo colonial. Portanto, a violência já está localizada. Não é generalizada, não podemos dizer que as famílias angolanas andam a matar-se a torto e a direito.

Considera o povo angolano participativo?
Sim. O povo angolano é um exemplo fora de série. Exemplo em tudo. Não digo que seja o melhor povo do Mundo ou de África, até porque todos os povos do Mundo são bons, já viajei muito pelo Mundo a fora e fui bem tratado. A bondade do ser humano é universal e tem de ser aproveitada para o bem e para o benefício das nossas populações, primando sempre por mencionar este lado positivo do ser humano, sem esquecer o seu lado negativo.

Defende maior envolvimento das pessoas nas questões sociais, económicas e de cidadania para o desenvolvimento do país?
Sim. Estamos há 40 anos independentes. Temos suportado muito bem as responsabilidades de ser independente, de ser livre. Mas 40 anos ainda é pouco tempo. Estamos a ter experiências positivas no campo económico, financeiro, educacional e sanitário. Angola está a desenvolver a olhos de todos que quiserem ver. Está aí tudo para ser visto. É só sair do seu beco de Luanda, da sua caverna, e vai ver, mas há muita coisa para se fazer ainda. Se os outros povos estão independentes há 300, 400 anos e continuam a lutar até agora, que dizer de nós com apenas 40 anos de existência? Não se pode fazer tudo em 40 anos.

Como caracteriza a justiça social em Angola?
Não vou justificar a injustiça social, não vou dizer que a injustiça é própria do ser humano. Acho que se tem tentado fazer muito pela justiça social em Angola, mas ainda há muito por se fazer. Temos acompanhado a prática da justiça em Angola, nós mesmos (igreja) somos agentes da justiça social. Considero que estamos no bom caminho.

Como surge o movimento metodista em Angola?
Surgiu em 1885 com a vinda a Angola do bispo William Taylor com seu grupo de missionários. Mas antes andavam dois missionários que tiveram a missão de preparar o ambiente para a chegada da caravana do Bispo Taylor.

Fale da sua relação com este movimento...
Sou de uma família genuína de metodistas e serei sempre metodista. Estou dentro deste movimento desde que nasci. Meu pai foi pastor da Igreja Metodista, aceitou o evangelho em 1910/12. Andou com os missionários americanos. E eu em 1950 tornei-me pastor, não por ser filho de um pastor, mas por seguir o exemplo dele, fui chamado para ser pastor.
O metodismo continua a ser um movimento evolvente, temos alguns metodistas fracos, nê? Mas isto não é metodismo. Metodismo sempre foi um movimento envolvente e veio da Inglaterra, foi para América, depois para África. Foi sempre um movimento que envolve os seus membros, os seus adeptos, não só na fé em Cristo, mas também na sociedade porque estamos rodeados de necessidade e de responsabilidades sociais. Os pontos fracos do metodismo não levam o fracasso total do metodismo em Angola.

PERFIL

Nome completo: Emílio Júlio Miguel de Carvalho
Idade: 82 anos
Local de nascimento: 03 de Agosto de 1933, em Pungo Andongo, província de Malanje.
Filho de Eva Pedro de Andrade Miguel e Júlio João Miguel, ambos já falecidos.
Herança: herdou dos pais a dedicação ao Cristianismo e o dom de servir a Deus, à igreja e aos fiéis.
Formação: Ordenado diácono em Junho de 1960, na primeira Igreja Metodista de Wisconsin Rapids, nos EUA; e presbítero a 22 de Janeiro do mesmo ano, na Igreja Metodista Central de Luanda.
Foi preso por dois anos pela polícia portuguesa, PIDE-DGS, em Agosto de 1961 por defender a liberdade. Dois anos depois, em Abril, o bispo Emílio de Carvalho foi colocado em “liberdade vigiada”, com residência fixa.
Cargos exercidos: Presidente Geral da Juventude da Igreja Metodista em Angola (1950 a 1953), professor e reitor do Seminário Emanuel, na Missão do Dondi Angola (1965-1972). Foi o primeiro bispo angolano da Igreja Metodista e reeleito bispo vitalício pela Conferência Central de África. Ordenado primeiro Bispo da Metodista Unida em Angola, em 1972, tendo posteriormente com a criação de duas conferências, liderado a conferência do Oeste até a sua reforma em 2000. Foi chanceler das Universidades de África, presidente do Concilio dos Bispos Metodistas da Conferência Central. Cidadão Honorário da Cidade de Luanda, desde 2002.
Livros: Tem 12 publicações, das quais se destacam as obras: “Oiço Passos dos Milhares”, “A Igreja no Meio do Temporal”, “A África no Centro da Sua História“, "Heróis Angolanos no Metodismo” , “Levando a Preciosa Semente”. Autor, tradutor, escritor, o bispo reformado Emílio de Carvalho é casado com Marilina Stella de Jesus Figueiredo, há 47 anos e pai de três filhos.