Luanda - O jurista e advogado Benja Satula esclareceu, em entrevista ao Novo Jornal, que "a introdução do processo em juízo dá-se com a notificação da acusação aos arguidos", contrariando assim o comunicado do Ministério Público, uma vez que "é nesse sentido que se pode dizer que a culpa está formada, (e) é o momento em que o arguido toma conhecimento dos factos de que vem acusado". Benja Satula defendeu também que "a hierarquia da PGR deve deixar os procuradores em instrução processual trabalhar com serenidade e não condicioná-los a agir para justificar pronunciamentos dos superiores hierárquicos".

Fonte: NJ

O Ministério Público (MP) emitiu esta semana um comunicado no qual dava conta que "a fase de recolha de provas, instrução preparatória dos autos sobre o caso dos 15 jovens", 17 na verdade, "foi concluída antes de expirar o primeiro prazo de prisão preventiva", que afirma ser de 90 dias. Numa reacção recente, em entrevista à Luanda Antena Comercial (LAC), questionou esse entendimento do MP, afirmando mesmo que os 90 dias não configuram o primeiro prazo da prisão preventiva. Qual seria o entendimento mais correcto?

Para mim, o Ministério Público (MP) não precisava de sublinhar a ideia do primeiro prazo de prisão preventiva, porque, salvo lapso da minha parte, os prazos de prisão preventiva em instrução preparatória estão fixados na Lei 18-A/92, que fixa um prazo de 45 dias como primeiro prazo de prisão preventiva e depois permite que esse primeiro prazo possa ser prorrogado por igual período de 45 dias. O que totaliza 90 dias e, por essa razão, já não se fala do primeiro prazo mas, sim, do segundo, pois o primeiro terminou quando findaram os primeiros 45 dias. Ora, se o processo foi "introduzido em juízo" depois de 45 dias e antes dos 90 não pode o comunicado dizer que "foi concluída antes de expirar o primeiro prazo de prisão preventiva".

 

Nessa mesma entrevista, o senhor abordou a questão da jurisprudência e os prazos possíveis para a prorrogação da prisão preventiva, fazendo uma alusão às prorrogações possíveis que totalizariam 135 dias, salvaguardando aquilo a que chamou de bem jurídico. Poderia esmiuçar isso?

Sim. Quando fiz referência aos prazos jurisprudenciais foi para fundamentar o meu entendimento em relação ao respectivo comunicado ao ter-me referido ao primeiro prazo, pois esse comunicado e a expressão "primeiro prazo" apenas faz sentido se entendermos que o MP tivesse considerado o prazo geral de 135 dias que a jurisprudência do Tribunal Supremo fixou como um limite máximo, para que o titular da acção penal possa manter um cidadão em prisão preventiva em instrução preparatória.

Entretanto, mesmo esse prazo é resultado de um somatório geral de duas prorrogações, isto é, se se decreta a prisão preventiva de 45 dias, a Lei 18-A/92 permite que, em caso de crime contra a segurança do Estado ou criminalidade complexa, se possa fazer duas prorrogações de 45 dias, o que no total perfazem os 135 dias como limite máximo. Foi nesse sentido que falei no bem jurídico protegido que pode ditar um prazo máximo de 90 dias ou alterar esse prazo para 135 dias. E o critério de distinção é o bem protegido pela norma penal incriminadora

O pretexto de mediatização para uma actuação do Ministério Público em função de uma alegada confusão que se registava na sociedade e nas redes sociais é suficientemente, como referiu o comunicado no seu preâmbulo, plausível, para que ele viesse a público prestar esclarecimento sobre um caso que afinal estava em instrução preparatória?

Sempre vale que se façam esclarecimentos sobre determinados casos, só que isso não pode significar quebra de sigilo profissional, nem tão pouco a banalização da investigação. A actuação das autoridades de investigação e dos titulares da acção penal deve ser uma actuação conforme a lei e que venha assegurar e solidificar a tranquilidade e ordem públicas. E não inserir dúvidas, confusão e questionamento, o que não contribui para a confiança dos cidadãos nos órgãos responsáveis pela acção penal e investigação criminal.

 

Diante de tudo isso, o pedido da defesa de libertação por excesso de prisão preventiva tinha ou não razão de ser, olhando para os "timings" previstos no Código Penal?

A liberdade é um bem sagrado e qualquer pedido de libertação por excesso de prisão preventiva faz sempre sentido, desde que algum prazo tenha sido prejudicado. Neste particular vale esclarecer que em Angola, até à entrada em vigor da Lei n.º 25/15 de 18 de Setembro, que estabelece um novo regime jurídico das medidas cautelares, não é possível recorrer-se do despacho que fixa a prisão preventiva, porque em tese os despachos que privam a liberdade dos cidadãos devem sempre ser fundamentados, coisa que o MP não faz e não fez nesse caso em concreto.

Ora, se assim é e se a defesa dos arguidos entender, como entendeu que a medida de coacção aplicada era excessiva, o único expediente que tinha era um recurso hierárquico. Recurso que poderia desde logo afigurar-se infundado, porque a primeira imputação e caracterização de uma conduta gravosa aos detidos tinha sido feita pelo procurador- geral da República - que é o topo da hierarquia dos titulares da acção penal -, ficava logo claro que ele nunca iria depois dar por procedente uma reclamação de medida excessiva, quando foi na sua pessoa que a sociedade teve ciência dos factos de que vinham indiciados os co-arguidos. Daí que neste caso em concreto e noutros, a defesa vá sempre com o argumento de excesso de prisão preventiva, mesmo se o fundamento seja excesso da medida aplicada por existirem outras menos gravosas que pudessem desempenhar a mesma função e finalidade.

 

O juiz presidente do Tribunal Provincial de Luanda veio a público terça-feira esclarecer que "o processo dos 15 jovens está em fase de análise e notificação da acusação aos réus e seus respectivos advogados". Que entendimento é que se pode ter do facto de o processo ter sido entregue a tribunal sem que os arguidos e respectivos advogados tivessem sido notificados? Qual é o enquadramento legal que se faz desta actuação do MP?

Há uma nota importante a deixar: A introdução do processo em juízo dá-se com a notificação da acusação aos arguidos, é nesse sentido que se pode dizer que a culpa está formada, é o momento em que o arguido toma conhecimento dos factos de que vem acusado, das provas existentes e do tipo de crime em concreto. E este acto de notificação é da responsabilidade do cartório da secção onde o processo foi distribuído. Então, apenas quando o arguido recebe a douta acusação é que se pode materialmente dizer que a instrução preparatória está finda ou, como se diz, já existe culpa formada e isto de igual modo dita o fim do segredo de justiça interno e permite contacto com o processo e o requerimento de diligências que entender necessárias ou simplesmente aguardar pelos ulteriores termos do processo.

 

A tipificação criminal dos acusados teve ao longo destes três meses vários rótulos (permita-nos a expressão na ausência de uma melhor); primeiro, foram acusados de tentativa de golpe de Estado, depois de crimes de rebelião, e agora de crimes de actos preparativos de rebelião. Isso tem alguma influência por altura do julgamento ou o que se disse no início, inclusive pelo PGR, não tem qualquer respaldo legal?

Isto demonstra que no início do processo houve da parte do titular da acção penal uma "debandada inicial", o que é de todo reprovável e deixa uma marca de menor zelo e menor rigor no trato das competências que lhes estão acometidas. Esses episódios são hoje dispensáveis quando o que se pretende é construir uma robusta perseguição ao crime. Os órgãos de investigação criminal e os órgãos titulares da acção penal devem exercê-la com tranquilidade, serenidade, respeito pelas regras do segredo de justiça, do acusatório e do contraditório e sempre no e com respeito à pessoa humana, sob pena de o cidadão comum deixar de acreditar naquilo que os titulares desses órgãos venham dizer noutros processos. Penso claramente que essa graduação em menos de três meses leva exactamente a que a acusação fique enfraquecida mas, por outro lado, abre portas para novos contornos em favor dos arguidos.

 

E a questão do flagrante delito, não é hoje para aqui chamada?

É-me difícil conceber uma situação de flagrante delito nos actos preparatórios de rebelião. Entretanto, como não conheço o processo estou, tal como muitos colegas, curiosos para perceber o que vem daí.

 

A ida ao Parlamento explicar aos deputados, inclusive apresentando alegadas provas, da suposta tentativa de golpe de Estado fere e vicia o processo ou não?

Sim, fere. Todos os actos, atitudes, pronunciamentos feitos na fase inicial deste processo foram infelizes, pois a hierarquia da PGR deve deixar os procuradores em instrução processual trabalhar com serenidade e não condicioná-los a agir para justificar pronunciamentos dos superiores hierárquicos que, diga-se em abono da verdade, vivem longe do movimento processual diário e às vezes equivocam-se na qualificação dos factos e induzem cidadãos em erros, como sucedeu nesse caso. E é preciso dizer, mesmo ignorando os contornos, a atitude do magistrado - fazendo fé que o que me diz é o que consta do processo - de deduzir a acusação abandonando as imputações feitas no comunicado incial, é uma atitude de coragem e de equidistância, e que vem provar que pronunciamentos iniciais em fase de instrução preparatória são sempre infelizes.

 

Numa altura como esta dizer que este processo tem motivações políticas ou que os arguidos são presos políticos não tem peso legal nenhum? Ou seja, é um argumento que não tem qualquer influência aquando do julgamento?

O que se disse inicialmente e a notoriedade que o procurador-geral da República deu ao caso, ao assumir que se tratava de uma tentativa de golpe de Estado, acendeu a discussão sobre presos políticos, por resultar do senso comum que em Angola, como de resto em todos os ordenamentos jurídicos, Golpes de Estado vem sempre com gente inserida no seio do poder, por um lado, e por outro num crime de tentativa de golpe de Estado ou equivalente. O bem jurídico protegido é sempre a integridade das instituições e dos órgãos de soberania, logo é um crime com motivações políticas, como resulta da própria lei dos Crimes contra a Segurança do Estado. De qualquer modo, se a acusação já veio em termos diversos dos pronunciamentos iniciais, parece-me que o Tribunal estará menos pressionado na apreciação do caso e na sua qualificação.

 

O vice-procurador-geral, Hélder Pita Grós, em entrevista à Televisão Pública de Angola, chegou a afirmar que "o objectivo dos detidos era a alteração do poder político e dos órgãos de soberania saídos das últimas eleições gerais". Uma afirmação como esta, com um carácter bastante judicativo, numa altura em que não se tinha deduzido a acusação, torna o processo viciado ou não?

Num País livre, qualquer cidadão é livre de se expressar. Entretanto quem exerce funções de destaque deve sempre ter recato no que diz, fundamentalmente quando o seu pronunciamento vincula a instituição em nome da qual fala; porém o que o vice-procurador-geral ou o procurador-geral diz não faz fé em juízo e logo não passam disso mesmo: Meras palavras. O processo vale pelas provas que foram juntas e principalmente por aquela que vai ser produzida, por isso, vale esperar pelo desfecho para vermos de que lado está a razão e se os vários pronunciamentos de parte a parte têm ou não sustentação factiva e probatória.

 

Um dos assuntos que tem chamado a atenção da sociedade tem sido a situação carcerária dos arguidos. Em que situação é que se permite que os 15 jovens, enquanto arguidos, sejam mantidos em solitárias?

A Constituição da República é clara no seu n.º 4, do artigo 67.º em relação a visitas e a alínea b), do n.º 3, da CRA proíbe tratamentos degradantes, humilhantes e cruéis, logo se de facto eles estão em celas solitárias sem que tenham violado qualquer regulamento interno dos Serviços Prisionais configura uma situação bizarra, degradante e humilhante e contraria os postulados da Constituição que citei.

 

Igualmente as limitações de visitas só a familiares?

Tal como disse, se isto ocorre é em clara violação da Constituição em relação às garantias do processo criminal.

 

De acordo com o que vem saindo na imprensa, as famílias lamentam que as regras para as visitas mudam consoante o oficial que está de serviço. Nestas situações como devem os cidadãos inverter este quadro?

Se isto ocorre e agora que o processo foi introduzido em juízo, é fazer-se uma reclamação ao juiz da causa com conhecimento aos Serviços Prisionais.

 

Que lições é que este caso lega ao exercício do Direito em Angola?

É comum dizer-se "diz-me que processo penal tens e dir-te-ei se tens cidadãos ou súbditos" ou "diz-me que leis tens e dir-te-ei se tens um Estado de direito ou uma farsa". Nenhuma geração estende um tapete vermelho a outra e à medida que a sociedade evolui surge sempre a necessidade de nos adaptarmos aos novos tempos. E o exercício do Direito é uma conquista que se faz, à medida que ultrapassamos com serenidade cada obstáculo rumo à perfeição, mesmo que ela seja impossível. Basta a utopia de a alcançar.