Lisboa - O escritor, um dos rostos da luta pela democratização de Angola, diz, em entrevista à Renascença, que José Eduardo dos Santos já não tem dinheiro para calar a contestação. "Não tem alternativa: ou insiste neste percurso e vai acabar mal ou percebe que só sobreviverá abrindo o caminho à democracia".


Fonte: Radio Renascença


O escritor José Eduardo Agualusa nasceu em 1960 em Angola. A 11 de Novembro de 1975, quando Angola declarou a independência, era adolescente. Viveu esses primeiros anos da Angola independente com euforia, mas a guerra, as divisões internas e a falta de democracia matizaram o sonho.

Em entrevista à Renascença na sua casa, em Lisboa, o escritor diz-se optimista. Vê um “endurecimento” do regime de José Eduardo dos Santos, mas encara-o como o “canto do cisne”.

 

Nasceu com o país em guerra. Era adolescente quando Angola se tornou independente. O que recorda desses tempos?
Sim, era muito jovem, de facto, mas, naquela época, mesmo os mais jovens, adolescentes, participaram nesse movimento de euforia e de consciencialização que foi a independência. Lembro-me muito bem dessa época e de ter sentido uma grande alegria, que era o que toda a gente sentia. O sentimento geral era de que havia ali alguma coisa a começar, embora de forma errada, porque havia uma guerra começando também. Mas nós não tínhamos percepção nenhuma de que essa guerra iria continuar por tanto tempo. Não acreditávamos que a guerra pudesse durar muito tempo; acreditávamos, sim, que estávamos diante de todas as possibilidades, de todos os sonhos.


Acreditavam que a independência uniria o que nasceu dividido? 
Acho que sim. Foi uma época muito intensa. Recordo-me que havia esses confrontos, morria gente, mas, ao mesmo tempo, havia um sentimento geral de euforia.


Quando é que começou a desiludir-se ou a ver o sonho ficar mais matizado, menos sonho?
De uma forma geral, as pessoas nunca pensaram que a guerra se fosse prolongar durante tanto tempo. Havia sempre aquela ideia: "Para o ano a situação será melhor". Mas, ao mesmo tempo, aconteceram episódios que não foram apenas resultado de guerra. A seguir à independência, o regime era extremamente repressivo. Muitos amigos meus acabaram por ser presos. Mesmo estudando em Portugal, os meus contactos e as minhas companhias eram angolanos e alguns deles tinham passado por momentos difíceis.


Como é que essa percepção face à política e ao país tem evoluído nestes 40 anos?
Houve vários momentos. Houve momentos em que voltamos a acreditar, como em 92, quando aconteceu a paz e houve as primeiras eleições em Angola. Infelizmente, tem sido assim: há momentos de esperança e momentos de menos esperança. Mas também é importante dizer que ao longo desse tempo todo houve coisas que foram sendo construídas e que têm valor por si só. A independência é um valor por si só, a dignidade das pessoas não tem preço. Apesar de todos os contratempos e da má gestão política, a verdade é que muita gente foi para as escolas, se formou, etc.. Isso é uma realidade completamente diversa da realidade do tempo colonial. Evidentemente que a preocupação do colonialismo não era a melhoria do povo angolano.


Este aniversário fica marcado pela prisão dos 15 jovens, entre os quais Luaty Beirão. O que é que este caso revela? Por um lado, vemos uma inflexibilidade do regime; por outro lado, é impossível calar o impacto mediático e global da luta dos jovens. No meio disto tudo, como é que o José Eduardo Agualusa se situa: mais optimista ou mais pessimista?
Sou sempre mais optimista, creio. Todos os angolanos são optimistas. Acredito que estamos outra vez diante de um momento de viragem e que pode ser encarado com optimismo. Acredito que estamos a assistir ao fim de um ciclo. Acho que o regime angolano está a viver os seus últimos dias e o único caminho possível é o da democratização e da pacificação completa do país. Encaro com optimismo, embora também com alguma preocupação porque este período de transição que vamos viver, ou já estamos a viver, tem também muitos perigos.


Que perigos?
Há um endurecimento do regime, efectivamente, mas também há um movimento a favor da democracia que parece ter sido criado e que já parece estar a funcionar no terreno. E eu acho que não tem volta atrás. Instalou-se na sociedade angolana uma discussão intensa sobre democratização, sobre pacificação efectiva do país, sobre todos estes anos que o Presidente leva no poder. Acredito que, ainda que estejamos a assistir a um endurecimento do regime, esse endurecimento é já em si um sinal de fraqueza. Portanto, não me parece que haja grande alternativa se não abrir as portas a uma efectiva democratização do país.


Este endurecimento que diz existir é já o regime na defensiva?
Exactamente. É uma espécie de canto do cisne. O regime está confuso, não sabe como reagir. Estamos a ouvir todos os dias manifestações desencontrados, como esta do ministro do Interior, Ângelo Tavares [disse que Luaty é um “jovem que valoriza muito pouco o bem vida”]. O que traduzem é uma enorme perplexidade e confusão, o regime não sabe muito bem o que fazer, está confuso. Está a endurecer, a prender mais jovens, mas não pode continuar por esse caminho.
Não acredito que esse caminho seja possível. Não acredito que, com este tempo de crise que se vive em Angola, o regime tenha condições de se perpetuar porque este regime sempre sobreviveu redistribuindo dinheiro aos seus clientes. E neste momento o dinheiro acabou. O Presidente José Eduardo dos Santos não tem alternativa: ou insiste neste percurso e vai acabar mal ou percebe que só sobreviverá abrindo o caminho à democracia.


Não tem mais trunfos?
Ninguém segue o Presidente por questões ideológicas, ninguém segue o Presidente devido ao seu carisma ou por razões de amizade. As pessoas dentro e fora do país que apoiam o Presidente e que têm apoiado ao longo de todos estes anos têm-no apoiado por interesses económicos. Tão simples como isto. A partir do momento em que o Presidente não tem mais possibilidade de redistribuir esses fundos públicos pelos seus apoios, não me parece que tenha possibilidade de persistir no poder. Neste momento, José Eduardo está na mesma situação que estava Jonas Savimbi quando foi abatido – é um estorvo para o seu próprio partido, é um estorvo para o próprio sistema.


Ao falar que José Eduardo dos Santos pode “acabar mal", vai ao encontro da tese de Rafael Marques de que é urgente criar um quadro de transição?
Evidentemente que quem ter o poder de derrubar José Eduardo dos Santos não são 15 jovens estudantes, quem tem o poder para fazer isso são as pessoas do seu próprio partido e os militares. O que acontece é que há uma inquietação dentro do próprio partido. Uma situação dessas pode acontecer. Para evitar isso, o Presidente deveria assumir o papel principal de abertura, de diálogo com todas as forças políticas e sociais e avançar com um efectivo processo de democratização do país – convocar eleições e afastar-se a seguir.


Nestes anos em que tem sido uma das vozes críticas do regime, já foi alvo de represálias?
Acontece comigo o mesmo que acontece a todas as pessoas envolvidas neste processo de democratização do país e que manifestam opinião sobre o assunto. O regime tenta alcançar essas pessoas de todos os pontos de vista. Comigo também. Através da família, através de rendimentos da vida pública, etc.. Comigo é um pouco mais difícil, sou escritor, não dependo de Angola para sobreviver, é um pouco mais difícil exercer pressão económica sobre mim. Mas há outras formas de exercer pressão. Sobre a família, etc….


Que tipo de pressões?
Não vale a pena particularizar porque o que acontece comigo é o que acontece com toda a gente.


Mas são ameaças à integridade física ou outras, mais veladas?
Para quem tem emprego não se dá emprego às pessoas. Há sempre maneiras de tentar sufocar as pessoas, de tentar pressionar, mas comigo é um pouco mais difícil.


Foi um rapper que pôs, de novo, os olhos do mundo em Angola. Os escritores também têm um papel na luta pela democratização de Angola?
Os artistas de forma geral sim. O movimento começou por música, este movimento é iniciado nas ruas por vários rappers. Mas o movimento de solidariedade que se fundou a seguir e que se generalizou teve por base também jovens artistas angolanos – de todas as áreas: do cinema, das artes plásticas, da música, da literatura.

Os rappers têm impacto directo noutros jovens através das suas letras.

A música tem um impacto mais geral na sociedade, em particular numa sociedade como a angolana, que não tem muito acesso ao livro. Não são os escritores que têm grande impacto, quem tem maior impacto são os músicos. Sobretudo estes rappers, que têm presença nos musseques, nas zonas mais desfavorecidas, e que fazem da luta por uma maior justiça social o seu próprio trabalho enquanto artistas. Os rappers têm uma presença maior e uma capacidade maior de mobilização social.

Disse há pouco que há uma “inquietação” dentro do próprio partido no poder, o MPLA. Mas publicamente os diplomatas e responsáveis do governo argumentam que Angola é uma democracia.

Não, acho que o regime está muito isolado e que nem os próprios apoiantes do regime acreditam nesse tipo de argumentação. Defendem-na publicamente, mas em privado não a defendem. Não conheço alguém que em privado defenda o regime angolano. Mesmo da parte dos militantes mais acérrimos do regime, há esta percepção de que estamos a viver um fim de ciclo. Em privado essas pessoas reconhecem que é preciso mudar.


No jornal “Rede Angola” escreveu: “Como é que um jovem idealista, de coração puro, se transforma num tirano?” Referia-se a José Eduardo dos Santos. Consegue dar resposta à questão?
Infelizmente, vemos isso por toda a parte. Regimes como o angolano tendem a puxar pelo pior das pessoas. Democracias têm o efeito contrário: puxar pelo melhor das pessoas. É mais natural encontrar isso em regimes totalitários, mas acontece em todo o lado – pessoas que quando eram jovens eram idealistas e quando envelhecem tornam-se egoístas. Infelizmente, é uma espécie de linha da vida.


Subsiste a ideia de que o colonialismo português era mais benigno do que os outros colonialismos?
Essa ideia em si mesma é absurda. É como dizer: a cólera é melhor do que a peste. O colonialismo é em si um sistema perverso porque é um sistema de dominação de umas pessoas sobre as outras. O colonialismo português assumiu características especiais? Talvez, sobretudo porque Portugal era um país muito pobre e muitas das pessoas que foram para Angola eram pessoas de origem muito humilde e encontravam-se numa situação socialmente semelhante ao da maioria dos angolanos. E portanto era mais fácil as pessoas terem relações, terem filhos, casarem, etc..

No caso Luaty Beirão, Portugal foi criticado por não ser mais activo na defesa dos direitos dos activistas ao mesmo tempo que Angola também o criticava por ingerência.

Angola critica Portugal porque tem a percepção que o regime e o governo portugueses são frágeis. Angola tem essa percepção de que pressionando, chantageando o governo português, obtém resultados. E tem essa percepção porque historicamente tem sido assim. Faz isso com Portugal, mas não faz com o Brasil, não faz com os Estados Unidos. Angola critica Portugal porque Portugal se deixa criticar.


A crise económica em Angola não deveria mudar esse quadro?
A verdade é que mesmo antes Portugal tinha a faca e o queijo na mão. Sempre teve. Muitos dirigentes angolanos têm os seus bens em Portugal, processos que já deram processos judiciais. Portugal sempre teve uma posição muito frágil em relação a Angola e vai continuar a pagar por isso.


É o complexo de ex-colonizador?
Não tenho explicação, não sei explicar, sei que há uma relação muito diferente da que a que Inglaterra e França têm com as suas antigas colónias.