Luanda - Recentemente, o Ministro do Interior de Angola, em declarações públicas, sobre o caso dos 17 jovens detidos acusados de tentativa de subversão, referiu-se ao caso de uma cidadã europeia expulsa de Angola, que em reuniões com os jovens os instigava a implementarem acções violentas de rua. O NgolaJornal localizou e entrevistou a referida cidadã, natural da Itália, Katy Tirzy, que esteve durante muitos anos no nosso país a trabalhar com a sociedade civil. A mesma desmente todos os factos que lhe são imputados e esclarece: “em nenhum momento eu disse, nem sequer uma vírgula do que o senhor ministro declarou no que se refere a instigar até a morte. É contra os meus princípios”

*Suzana Mendes
Fonte: Ngola Jornal

NgolaJornal (N.G.): Fale-nos um pouco do seu trabalho em Angola
Katy Tirzy.: Como já tive oportunidade de dizer a minha primeira vez em Angola foi em 1997, para um projecto com uma ONG italiana coordenado pelas Nações Unidas nas área de aquartelamento da Jamba, no Kwando Kubango. Era responsável pela distribuição da comida para a população da Jamba e Biongue (quase 60 mil famílias). Fiquei aí desde Outubro 1997 até final de Fevereiro 1999. A partir de Maio 1999 até inicio 2000 acompanhei projectos de emergência no Huambo, Kuito, Waco Kungo e Malanje. Voltei para várias curtas missões nos anos a seguir. Desde Março 2004 até Maio 2005 fui Assistente Técnica pelo programa PAR (Programa de Apoio à Reconstrução), financiado pela União Europeia e tendo como Ministério de referência o Ministério do Planeamento, pelo Governo província de Benguela.

De 2007 a 2010 fui coordenadora da primeira fase do PAANE, programa sempre financiado pela União Europeia, tendo como Ministério de referência o Ministério do Planeamento. Entre 2011 e 2012 fiz outras curtas missões sempre em directa coordenação com o Ministério do Planeamento e pela Delegação da União Europeia, para definir o programa de Identificação do novo projeto ” de apoio e reintegração dos grupos vulneráveis”. A partir de Fevereiro de 2013 estive a coordenar a segunda fase do PAANE. Assim como previsto na estratégia do PAANE, aceite pela Delegação da União Europeia e Governo de Angola, através do Ministério do Planeamento, referente a toda a cooperação com a União Europeia, as actividades prioritárias eram a favor da capacitação dos Actores Não Estatais, melhorar o dialogo entre os vários Actores Não Estatais e Governo. Grande importância era prevista à vertente da comunicação assim como tinha sido realizado na primeira fase do PAANE. Importa salientar a tal propósito que, num encontro de 2009, em Bruxellas, de todos os programas PAANE, fui convidada para apresentar os resultados do PAANE Angola como boa pratica.

NJ: Ao longo do exercício das suas funções mantinha contacto permanente com as autoridades angolanas?
K.T.: Quase diariamente, por várias rações. Primeiro, é obrigatório que cada programa financiado com o FED (Fundo de desenvolvimento Europeu), tenha um Comité Técnico, onde participa a equipa da Assistência Técnica do Programa de Apoio aos Actores Não Estatais (PAANE); o ponto focal da Delegação da União Europeia e do Ministério do Plano e, no nosso caso, também da ex UTCAH. Este Comité mantem reuniões mensais onde são discutidos todos os problemas, as acções para implementar a estratégia já aprovada e assinada pelo Ministro do MINPLAN (o dito ordenador Nacional) no âmbito da Convenção de Financiamento. Além desde encontro mensal tem um encontro semestral onde são convidados vários Actores Não Estatais, Instituições do governo, igrejas, embaixadas, doadores, etc envolvidos com o PAANE. A última tinha acontecido no dia 8 de Maio, dentro as Instalações do Ministério do Planeamento.

Devido a tipologia das actividades era prática comum manter uma comunicação quase semanal com os pontos focais, seja da DUE quer do MINPLAN. Isso para dizer quequalquer ideia e acção era e foi sempre discutida e aprovada pela Delegação da União Europeia e pelo Ministério do Plano.

N.J.: Sei que recebeu ordem do Governo angolano para abandonar o país, como aconteceu?
Duma forma….péssima!!! no dia 23 de Maio 2014, uma VI feira que nunca vou esquecer na minha vida, um colega de trabalho recebeu no seu móvel uma mensagem dos serviços Imigração a dizer que na segunda feira era para eu ir nas instalações dos Serviços de Migração com passaporte e bilhete de passagem e que tinha 72 horas para deixar o pais.


A primeira coisa que fiz foi ir a minha Embaixada. O Senhor Embaixador e o seu staff ficaram muitos surpreendidos com o que estava acontecer comigo, principalmente por eu ser uma cidadã italiana muito conhecida, em positivo, pelo meu trabalho. Outro facto que surpreendeu muito a Embaixada foi o facto que uma noticia assim, importante e delicada teria sido enviada por mensagem num móvel de uma outra pessoa e´ não direitamente para mim, ou, ainda mais correcto, à mesma Embaixada da Itália. A partir da VI feira eu fiquei sob a protecção da minha Embaixada, porque ninguém entendia o que se estava a passar!!

Na segunda feira, dia 26 de Maio, quem foi no SME foi um funcionário da minha Embaixada ao qual foi dito a voz, sem nenhuma carta, que Ordem superior estavam a querer que eu deixasse o país. Ao pedido de esclarecimento o funcionário não soube responder. A única informação foi que no dia seguinte teria sido enviada uma carta ao Ministério do Plano. Pessoalmente, sempre em coordenação com a Embaixada, fu ao Ministério do Plano procurando a tal carta que nunca apareceu. Voltei no dia seguinte e o Director me confirmou que sim, alguém tinha falado dum pedido de anular o meu visto de trabalho mas que ele não tinha conhecimento das rações e que, pelo contrário, não estava a entender o porquê, sendo que o meu trabalho era ótimo e que teria pedido explicações ao Ministro.

No dia 27 duas pessoas da DUE pediram um encontro privado comigo e foi aí que fui informada que a Delegação da União Europeia, há um mês, sabia que tinha uma investigação contra mim mas que se tinha pedido o silêncio !!!! Nem sequer tinha sido informada a Embaixada da Itália!!! Dizer que eu, por um mês, fui deixada a continuar a trabalhar como sempre, com as mesma modalidades e com um risco também que algo poderia acontecer contra mim.

As funcionárias, no dia 28 de Maio, uma V feira, convocaram um encontro com todas as Embaixadas da União Europeia, a informar sobre o que estava acontecer comigo. Mas na pratica ninguém fez nada!!
No dia 30 de Maio, por volta de 13 horas, um funcionário do SME foi a Embaixada da Itália para entregar uma carta onde está escrito que o meu visto de trabalho foi anulado e que eu tenho 72 horas para deixar o Pais. Nesta carta não há explicação nenhuma do porquê que o meu visto foi anulado. Lembro que no mês de Março o Serviço de Migração e Estrangeiros tinha renovado o meu visto de trabalho por um ano!!!

N.J.: Ouviu as declarações do nosso ministro do Interior sobre uma cidadã europeia que foi obrigada a abandonar o pais porque instigava os jovens a rebelarem-se. Como recebeu estas declarações?
K.T.: A minha primeira reação foi quase para rir no sentido que pensei: não é possível que um Ministro do Interior está a dizer isso!!!! Enviei logo uma mensagem a minha Embaixada preocupada, pedindo que, por via diplomática, o Sr Ministro se pronunciasse se a tal cidadã europeia era EU. Isso porque, durante os vários encontros que ele teve com o Chefe da Delegação da União Europeia (depois que eu pressionei em Bruxellas que a Delegação da União Europeia teria que fazer algo por mim!!) e com o meu Embaixador, o Senhor Ministro nunca disse as razões do porquê do meu visto de trabalho ter sido anulado. Sendo que as suas declarações são muito graves, eu pedi a Embaixada de ter um encontro com o Ministro a pedir as provas caso, repito, a tal cidadã seja eu.
Estou espera dum feedback por parte da Embaixada.

N.J.: Realmente, manteve contacto com os jovens da Central? Alguma vez lhes disse o que foi referido no discurso do Ministro?
K.T.: Sim, tive contacto com os jovens da Central assim como tive contacto com várias organizações e pessoas que têm uma posição critica com o Governo porque, volto a lembrar, um dos objectivos do Programa de Apoio aos Actores Não Estatais é ajudar a melhorar o dialogo entre Actores Não Estatais e o Governo.


Se falamos de melhorar significa há alguns problemas e o que importa é mesmo tentar encontrar, alem das outras, as organizações pessoas mais criticas para tentar encontrar um caminho de dialogo. Os 4/5 encontros foram realizados à luz do sol, como se diz, dos quais um na sede da ADRA Nacional e um na Embaixada Alemã. O objectivo era de delinear uma pesquisa sobre as novas tecnologias e também uma aproximação entre as novas e “antiga” geração de organizações e cidadãos.

Os resultados desde encontros foram sempre relacionados seja à Delegação da União Europeia quer ao Ministério do Plano. Ainda demais, no encontro semestral do dia 8 de Maio, na presença de varias Embaixadas, funcionários da DUE, Universidades, instituições do governo, foi apresentado um resumo das atividades executadas e das próximas. O encontro foi realizado no Ministério do Plano.

Em nenhum momento eu disse, nem sequer uma vírgula do que o senhor ministro declarou no que se refere a instigar até a morte. É contra os meus princípios e, pelo contrário, mesmo no encontro na ADRA as minhas palavras foram: é importante que as velhas organizações com muita experiencia falem com os jovens porque, caso contrario, eles estão entregar -se ao alto risco de morrer pela possível repressão ( e se não falo o nome da pessoa da ADRA que estava presente no encontro, assim como da pessoa que recebeu a mensagem no seu móvel por parte da SME, é porque tenho….pena deles. Cada um tem a sua consciência. Eu é que não tenho vergonha de mim mesma ao olhar-me no espelho!!! )

N.J.: O que acha da ideia que tem sido repetida pelas autoridades angolanas, de que forças internacionais querem criar instabilidade no pais?
K.T.: Apesar que pessoas mais competentes já deram as respostas (até a mesma NATO teve que desmentir o que foi dito) a minha ideia é que as autoridades angolanas estão a dar conta que já é muito mais difícil controlar a insatisfação da maioria dos angolanos perante a grave crise económica e politica que atravessa o Pais há muito tempo. A crise económica e social é profunda e nunca como agora, em vários parte de Angola, há diferentes grupos de cidadãos que estão expressar esta insatisfação, raiva, desilusão. Em qualquer parte do mundo, quando as pessoas que estão a gerir o pais, ou um partido, ou uma qualquer Instituição, estão a ter uma crise interna, é uma metodologia bem conhecida aquela de tentar de “distrair” as pessoas, “o povo”, mostrando que o inimigo está fora de nos!

Muitas vezes, infelizmente, esta prática consegue obter o objetivo desejado porque a população nem sempre tem instrumento/capacidade de análise. As vezes, mesmo tendo esta capacidade tem medo de expressar a própria ideia, as vezes prefere ser cúmplice desta prática por interesse pessoal.


Mas, felizmente, esta pratica acaba depois de “implodir” as vezes vai demorar um tempo, as vezes muito pouco. E me parece que, no caso das ultimas declarações das autoridades angolanas, vais ser…. em muito pouco tempo. Nesse caso a função dos jornalistas é determinante para perseguir a verdade!!

N.J.: Trabalhou muitos anos em Angola, qual é o seu sentimento genuíno sobre o nosso pais?
K.T.: Cheio de contradições: amor, odio, raiva, saudade desejo de voltar, desejo de nunca mais voltar. É um mix incrível. Já passou quase um ano e meio do tal 30 de Maio de 2014 em que, com o coração partido, tive que deixar o Pais. Por muito tempo pensei e desejei de receber uma ligação de alguém a dizer: foi feito um erro, você pode e deve regressar. Quem teria que apoiar para isso acontecer…preferiu não fazê-lo e nesse caso refiro me as pessoas angolanas e internacionais, as varias organizações e instituições e embaixadas.Mas também fico super feliz das muitas palavras de estima e carinho que recebi naquela altura e mesmo agora nesta circunstância.

Angola nunca foi um país simples e talvez é esta complexidade que faz que as pessoas acabem para não conseguir sair. Eu fico muito preocupada com o nível de pobreza e falta de serviços básicos em que a população continua a ficar. Angola tinha uma grande oportunidade, por exemplo em termos de cuidar do próprio patrimônio histórico, da própria natureza para servir de exemplo para os outros países. Mas, infelizmente isso não aconteceu e as várias análises socioeconómicas realizadas ao longo dos anos para diferentes pesquisadores explicam muito bem as razões. A qualidade da educação continua a ser muito fraca é isso é um problema sério para o futuro de qualquer pais.

O meu sentimento é que o cidadão sempre se sinta parte dum processo de transição/ estabilização e mudança do próprio Pais. Sempre vou desejar o bem para Angola mas para aquela Angola que não tem medo de expressar as suas ideias, para aquela Angola capaz de compartilhar a própria comida com que tem muito pouco, para aquela Angola que, perante qualquer injustiça tem o coragem de “…desafiar o silêncio …”.