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Luanda, aos 05 de Dezembro de 2015

Exmos Senhores Presidentes dos Grupos Parlamentares da Assembleia Nacional da República de Angola;

Exmos Senhores Deputados à Assembleia Nacional da República de Angola.

C/C: Exmo Senhor Presidente da Assembleia Nacional

Saúde, Paz e Bem.

Carta Aberta aos Grupos Parlamentares

1. Contexto

Hoje é o Dia Mundial do Solo. https://youtu.be/AemJTA14T24 . O solo já não é o que era antes. O solo é um dos materiais biológicos mais complexos do planeta. Segundo especialistas leva mais de mil anos para formar dois centímetros de solo superficial. O Dia Mundial do Solo é uma oportunidade única para refletir sobre a relação do Homem com o solo e reavaliar as políticas relativas a esse recurso de difícil recuperação. Considerando as enormes funções que o solo representa na vida da Humanidade é importante chamar a atenção para determinadas práticas ou omissões que põem em causa a sustentabilidade desse ecossistema.

Angola está a comemorar o Quadragésimo Aniversário da sua Independência Nacional. Como é óbvio, a festa de um aniversário é sempre motivo de um olhar para o passado, no caso, o colonial. A luta pela Independência não foi contra os portugueses como todos sabemos. Foi, sim, contra um regime – um regime que reduziu o Homem (filhos e filhas desta Terra) à condição de escravo na sua própria Terra; um regime opressor que passou a ser o titular e senhor das terras que não eram suas impondo desterros, esbulhos, destruição e descaracterização do património geo-histórico e cultural dos filhos e filhas desta Angola. A relação que as populações de Angola mantinham, antes, com a terra, manifestamente de profunda reenvidicação de uma identidade e memória, foi destruida. A terra deixou de ser expressão da identidade e repositório dos valores culturais dos povos de Angola tendo sido coisificada para fins meramente de lucro.

Finalmente, chegou a Independência Nacional em 1975. Viva Angola.

Com a Angola Independente apenas em 1991 com a Lei no 21-C/91 se reconhece ao cidadão angolano um único direito à terra. Até parecia normal porque a terra para a nossa cultura, mais do que um direito, foi sempre expressão de uma identidade, pertença e história. Em 2004 com a Lei no 9/04 ao direito de superfície juntam-se mais quatro direitos fundiários. É uma grande victória, embora, a realidade legal seja diferente da factual. Contudo, vale a pena. O que é incompreensível e digno de repúdio é a forma como os decisores políticos olham, sobretudo, em matéria de regulamentação e políticas, para os solos de Angola que é a base de sustento e ocupação da maioria da população pobre no país. Os apelos da comunidade internacional são evidentes: 2014 foi o Ano da Agricultura Familiar e 2015 é o Ano Internacional dos Solos segundo a resolução no 68/232 da Assembleia Geral das Nações Unidas. A eleição do tema teve em consideração de entre outros aspectos a degradação dos solos, a desertificação e a seca reconhecidas como componentes de risco para a Humanidade. Em 2015 termina, também, a implementação do Mecanismo de Acção de Hyogo 2005-2015.

  1. Razão da Carta

Esta carta não é um instrumento de ressonância de interesses de grupos ocultos ou de uma reenvidicação infundada. A terra é critério de cidadania (Decreto Presidencial no 216/11), mas desde que Angola é Independente os solos não têm merecido do governo angolano a atenção devida. A prova disso é a inexistência de instrumentos normativos e políticos, ou ainda, de informação sobre o solo no país num mundo cada vez mais marcado por riscos de desastres naturais e cujas populações dependem essencialmente dos produtos do solo. Portanto, a razão é sensibilizar a classe política e população no geral para a importância da gestão sustentável do solo no país. A carta é um apelo, mas acima de tudo, um juizo negativo pelos feitos, na matéria em causa, dos dignos representantes ou servidores do povo Angolano considerando que:

 

1. Nunca se levantou questão sobre como são geridos os solos em Angola. Ninguém se importou com a legislação ou política concreta sobre o solo. O silêncio das bancadas parlamentares da Assembleia Nacional face à governação do solo em Angola é de todo reprovável, pois, o solo não é um simples espaço físico. Os solos são a base de 90% de todos alimentos no mundo e mais do que isso é, para a nossa realidade sócio-cultural, no solo onde estão inscritas as memórias, a fonte da oralidade, enfim, a história, com particular atenção, das comunidades em meio rural que viram esse património natural e geo-histórico descaracterizado e destruido durante a colonização. A preocupação com a governação do solo em Angola prende-se, ainda, com outros aspectos:

1.1. O continente africano perdeu 65% da sua superfície agrícola desde 1950 por degradação do solo (PNUMA, 2014). Em Angola cuja população depende essencialmente da agricultura de sequeiro, portanto, vulnerável aos eventos climáticos extremos pouco ou nada se sabe. Existem alguns estudos dos solos feitos desde 1878 embora os mais sistematizados tivessem lugar a partir de 1946. Depois da Independência alguns estudiosos continuaram a estudar os solos, embora, sem muitos apoios institucionais. Existe no país um sistema de monitoramento dos riscos associados aos solos?

1.2. A seca apresenta em África as taxas de mortalidade mais altas do mundo sendo, também, para a África o evento climático extremo mais expressivo. Em Angola, os ciclos de estiagem no Sul têm sido cada vez mais recorrentes. A fome é uma realidade no Cunene e nalgumas partes da Huíla e Namibe. Há que convir que o solo, como outros ecossistemas, está a perder a sua capacidade de resiliência face, sobretudo, aos eventos climáticos extremos associados alguns às alterações climáticas.

1.3. Em 2015 termina o Marco de Acção de Hyogo, instrumento que se enquadra na Estratégia Internacional de Redução do Risco de Desastres Naturais. O país está marcado por riscos de desastres naturais como a erosão, seca, inundações e outros eventos climáticos extremos, mas ninguém sabe se foram criadas as plataformas nacionais multisectoriais para orientar os processos de formulação de políticas sendo que a primeira prioridade de Acção de Hyogo é fazer com que a redução dos riscos de desastres seja uma prioridade nacional e local com uma sólida base institucional. Não há informação ou capacitação para se aferir do grau de resiliência do país e das comunidades face aos riscos de desastres naturais.

  1. As estimativas globais da Internacional Land Coalition citada pela Esporo (2014) apontam para 57 milhões de hectares do continente africano que foram objecto de negócios com países e corporações internacionais. Em boa verdade, esses negócios não têm sido transparentes e são causa de muitos conflitos, pois, não está em causa apenas a riqueza do solo, mas também, de outros recursos.
  2. A especulação do preço da terra criou uma segregação espacial e humana, sobretudo, em áreas urbanas ou urbanizáveis. As familias mais empobrecidas ocupam áreas de elevado risco com registo de mortes quando ocorrem as inundações ou movimentos de massa. Não existem mapas de riscos. O silêncio face à inexistência de uma tabela de preços da terra e Angola constitui, sem dúvida uma ilegalidade de fonte das receitas do Estado.
  3. A não titulação das terras rurais comunitárias pelo reconhecimento nos termos da constituição fundiária deu lugar ao sentimento de insegurança de posse das terras que integram o dominio consuetudinário. As Autoridades do Poder Tradicional falam em sentimento de abandono, pois, ao mesmo tempo que são acusadas pelas populações de conluio com as Administrações por sua vez estas acusam as Administrações de venderem as terras quando na verdade, em muitos casos, são coagidas a assinar documentos por orientação superior. Existem casos de ameaças de prenderem os Sobas nalguns municípios, simplesmente, por reclamarem o princípio do respeito pelas terras rurais comunitárias em conformidade com o disposto no Artigo 4o da Lei no 9/04.
  4. As Reservas Fundiárias do Estado foram constituida s sem a participação localdas populações. A informação foi deficitária. Por isso, muitas comunidades foram surpreendidas com vedações de grandes extensões de terras. Muitas Reservas foram instaladas em terras rurais comunitárias privando as famílias de suas lavras, culturais, enfim, dos seus direitos culturais e económicos inscritos no domínio consuetudinário. Existem vários casos, fica aqui o exemplo das comunidades de Kissanga-Kungu no município da Cela, Waku-Kungu cujas famílias reclamam por suas terras por não terem sido indemnizadas nem indicados outros terrenos.

Por tudo isso e outras ocorrências que põem em causa a sustentabilidades dos solos em Angola, a segurança alimentar e os direitos culturais e económicos das populações, a Rede Terra não pode calar essas verdades quando está em causa a promoção da justiça social e económica no campo como se pode ler no Decreto Presidencial no 216/11. Por isso, em 2012 submenteu à Assembleia Nacional de Angola uma proposta de resolução de conflitos de terras intitulada «Reflexão Alargada sobre os Mecanismos de Combate às Ocupações Ilegais de Terras e Titulação das Terras Rurais Comunitárias» no quadro de uma audiência que o Exmo. Sr. Engo Paulo Cassoma, Ex-Presidente da Assembleia Nacional concedeu à Direcção da Rede Terra. Infelizmente, depois de alguns encontros com a 6a Comissão o documento não mereceu da Assembleia Nacional a atenção devida.

A Rede Terra apela aos Senhores Deputados, sobretudo, os de círculos provinciais para que criem maior proximidade e diálogo com as comunidades e tenham em atenção as suas preocupações e interesses legítimamente protegidos, por isso, são os seus representantes.

Viva o Dia Mundial do Solo

Bernardo Castro, Director da Rede Terra.