Luanda - Foi com uma certa perplexidade que no ano que acaba de “bazar” assistimos ao nível de um certo discurso e com alguma insistência, a transferência para a instituição família, do maior ónus pelos comportamentos individuais mais conflituantes com a ética e a lei.

Fonte: Opais

Em abono da verdade sentimos que esta transferência obedeceu a uma estratégia político-institucional visando sacudir a água do capote do Estado no que toca às suas responsabilidades, que assim passaram a estar mais diluídas, na hora de se identificarem as causas mais profundas das consequências mais visíveis e chocantes.


A ter em conta os factos mais mediatizados, ficamos claramente com a impressão que a esmagadora maioria dos seus protagonistas são pessoas oriundas de meios sociais periféricos esmagados pela extrema pobreza/miséria, onde até um prato de feijão pode dar origem a uma rixa mortal entre pai e filho.

De facto e praticamente em todas as notícias que em 2105 foram engrossando este cortejo das nossas desgraças, particularmente com os crimes de natureza sexual e passional, sentiu-se claramente o cheiro de uma pobreza muito especial se nos permitirem introduzir esta categoria no debate da generalidade.

Continuamos convencidos que as famílias afectadas por esta pobreza são uma maioria muito expressiva da nossa população que está muito longe de se esgotar nos 36%, que é agora a taxa oficial da população que vive no limiar da pobreza em Angola.

Em termos de análise, esta especialidade da pobreza angolana é de facto um interessante caso de estudo para se perceber melhor até que ponto é que, por exemplo, famílias que supostamente deveriam estar na prateleira da classe média baixa, em abono da verdade não têm parado de empobrecer.

Se passarmos depois em revista as famílias que são efectivamente pobres, aí é que vamos ver mesmo o “diabo a assar sardinhas”, antes de entramos no inferno da miséria/exclusão social onde vale tudo, incluindo arrancar olhos.

Em relação a nossa preocupação inicial, efectivamente não vemos como é que as famílias angolanas mais desfavorecidas podem ser chamadas a desempenhar um papel mais estruturante na moralização da sociedade, por mais campanhas mediáticas que se façam, por mais discursos que se pronunciem a respeito.

Não tenho nada contra este tipo de intervenção ao nível da superestrutura ideológica, mas também sei quais são as suas limitações a fazer lembrar-nos um bocado a imagem de alguém a querer incomodar o elefante com um alfinete de costura.

Por si só a pobreza não gera necessariamente comportamentos anti-sociais mais graves que chocam com as fronteiras da legalidade e dão origem a delinquência.
Só que há pobreza e há pobreza, havendo aqui que destacar que apesar de serem todos pobres, há pobres que são muito mais iguais que os outros.
Somos originários de uma família pobre.

Isto para dizer que por exemplo a pobreza de ontem não tem nada a ver com o nível de alguma/bastante pobreza de hoje, que em meu entender não permite sequer que a família exista como uma instituição minimamente estruturante no que toca à socialização/transmissão de valores.

A família é mais do que o resultado aritmético de algumas pessoas que se abrigam debaixo de um mesmo tecto com laços de consanguinidade.

Não se pode pois responsabilizar a família para efeitos pedagógicos, quando ela não tem possibilidades de sobreviver com um mínimo de dignidade e decência.

Melhor dizendo, poder até se pode, pois é o que está a ser feito nesta transferência de responsabilidades, que em nosso entender terá poucos resultados práticos, pois estamos a falar de casas sem pão onde já ninguém ralha, porque todos parecem ter alguma razão para explicar o que de errado está a acontecer.

São nestes meios familiares problemáticos onde estatisticamente acontecem os casos mais preocupantes do ponto vista da ética e da lei que levaram as autoridades a emitirem um alerta que ainda não é vermelho, mas que vai justificar, provavelmente, mais um programa de educação cívica e pouco mais.
Vai ficar a faltar o resto, que é o mais importante.

In Secos e Molhados/Revista Vida/O País (1-01-2016)