Luanda - Hernando Agudelo é o representante, em Angola, da Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 2013. A sua voz foi praticamente desconhecida dos angolanos – até que Luanda começou a registar casos suspeitos (muitos deles mortais) de febre-amarela. Uma doença sem registo de ocorrências nos últimos 40 anos.

Fonte: RA
Nas últimas décadas, Hernando Agudelo desempenhou funções como médico em áreas como pediatria, ginecologia, educação para a saúde e assistência técnica internacional para a melhoria dos sistemas de saúde. Até à sua nomeação para Angola, trabalhou para as ONG’s Médicos sem Fronteiras e Save the Children e serviu o Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP) no Nepal, Cambodja, Madagascar, Timor Leste e Jamaica.

É médico cirurgião, nasceu em Cali (Colômbia), em Abril de 1957, e completou os seus estudos nas Universidades Libre da Colômbia, Universidade de Nantes, em França, e na London School of Hygienne and Tropical Medicine, no Reino Unido.

Para já, segundo Agudelo, estão confirmados cientificamente 10 casos de febre-amarela no país. O surto acontece depois de reiteradas críticas acerca do peso orçamental dos sectores da saúde e educação. Ao mesmo tempo, acentua-se a crise económica e aumentam as dificuldades dos serviços públicos da capital cuidarem do lixo e do saneamento básico.


Durante cerca de 40 anos não houve casos registados de febre-amarela em Angola. Agora temos um surto da doença, sobretudo em Viana (Luanda). Como foi possível chegar até este ponto?
Normalmente, os surtos de febre-amarela acontecem no meio rural. Mas hoje, com o aumento da população, das cidades, estão a aparecer cada vez mais surtos em regiões urbanas – que são muito mais complicadas de gerir em relação ao meio rural. A febre-amarela desenvolve-se nos macacos. Os mosquitos picam os macacos e os macacos picam/mordem os seres humanos. É uma doença que aparece muito em gente que trabalha na agricultura, nos bosques, e transmite-se desta maneira. Há muitos reservatórios da doença. Inicialmente, o problema surgiu numa comunidade de cidadãos da Eritreia. Ficámos um pouco confundidos porque era uma comunidade pequena (pouco mais de dez pessoas). Nenhuma tinha entrado ou saído do país recentemente. O período de incubação da doença é muito curto e algumas destas pessoas tinham meses e anos seguidos em Angola. Não fazia muito sentido. Eu pergunto-me: ainda não temos prova científica (a OMS trabalha apenas com provas científicas) mas é provável que o vírus tenha sido importado.

Porque apareceu em Viana?
Ainda não temos a resposta. Nós estamos numa região do mundo que é considerada uma zona propícia ao surgimento de doenças como a febre-amarela. Angola está dentro da chamada cintura da febre-amarela. É um país susceptível, apesar de durante muitos anos não termos casos informados da doença. Não quer dizer que não existam casos ao longo deste tempo, significa apenas que não há registos oficiais de pacientes com febre-amarela. Você sabe que Viana é um lugar onde passa gente de todo o país, é um lugar comercial.

É uma zona de ligação entre o campo e a cidade.
Exacto. As pessoas compram em grandes quantidades e é um lugar que tem estas particularidades. De onde vem o vírus? Ainda não conseguimos identificar. Estamos a tentar evitar um alastramento da doença para outros municípios. E também para outras localidades fora de Luanda, como o Huambo ou a Huíla, que têm casos suspeitos reportados.

O surto de febre-amarela está directamente relacionado com as muitas chuvas e com a crise do lixo que Luanda vive desde o ano passado?
O mosquito Aedes Aegypti é um mosquito que está presente em todas as províncias do país – excepto no Moxico, aparentemente. Há dois anos tivemos uma pequena epidemia de dengue que foi controlada depois da época de chuvas. Nessa altura fizemos um pequeno estudo para ver onde estavam os mosquitos – e os mosquitos estão em quase todas as províncias, com mais ou menos prevalência. Se o mosquito existe, se transporta o vírus, se o mosquito pica os seres humanos, o surto pode alastrar-se. Esta é a situação.

É ou não verdade que as enormes montanhas de lixo – algo que é controlável e que está ao alcance de todos – visíveis um pouco por toda a cidade impulsionaram o surgimento de doenças?
O lixo também é um factor de risco porque cria a possibilidade de acumular bolsas de água. Quando chove, as latas de conserva, de bebidas, as garrafas, podem encher-se de água e o mosquito aproveita para se reproduzir. Mesmo assim, o mosquito prefere um ambiente interior e há muita gente que não se apercebe da existência de grandes quantidades de mosquitos dentro da sua própria casa. Porque se colocas plantas no interior (especialmente naqueles vasos com um pequeno prato de água em baixo) podem desenvolver-se as lavras. Se tem flores, tem água nas flores. Ali pode estar um mosquito. Em Angola, a água não é canalizada em muitos locais, então as pessoas usam reservatórios que muitas vezes não são tapados. Ali estão as lavras. São factores de risco. De alto risco. E é uma das causas da existência de tantos mosquitos.

Está em vigor uma campanha geral de vacinação contra a febre-amarela, em Luanda. Para além da vacinação, quais são as medidas de combate que a OMS recomenda?
A vacinação é muito importante, é mesmo fundamental para não apanhar a doença. Foi decidido vacinar todas as pessoas acima dos 6 anos. Uma das razões é o risco, porque a doença está no país. É um facto. Angola já introduziu a vacina da febre-amarela no programa de imunização de rotina das crianças menores de 1 ano. Mas ainda não há cobertura de 100 por cento. Então calculamos que a cobertura está entre 45 a 70 por cento das crianças menores de 15 anos. A rotina da vacina começou nos anos 1980, de forma progressiva. Há 10-15 anos que está dentro da rotina de vacinação do país. Nós temos estatísticas claras desde há 10 anos: a cobertura, quantas crianças receberam a vacina e então temos este cálculo. Isso faz com que exista um certo nível de protecção.

Qual é a principal forma de impedir que a doença alastre?
Combater o mosquito. Está a fazer-se pulverização intra-domiciliar e extra-domiciliar. Até nas paredes de casa deve ser aplicado insecticida. Para que as paredes fiquem repletas de produto e matem o mosquito quando ele pousa. A pulverização deve ser feita também nas ruas onde aparecem casos suspeitos. E há ainda a luta anti-larval. Porque há muitas larvas. As brigadas vão à procura de lugares com indícios da presença de mosquitos intra-domiciliares para ver quantas casas têm ou não lavras. Em Luanda há muitas com casas com lavras de mosquito. Algumas zonas da cidade estão infestadas e todas as casas têm lavras. Todas. 100 por cento.

O que significa que vivemos com as doenças dentro da nossa casa. Como é possível acontecer um cenário em que 100 por cento das casas de determinados bairros são espaços de reprodução de mosquitos?
Porque as pessoas não têm consciência das medidas de segurança que devem adoptar. É outra campanha que precisa de ser feita: a comunicação. É preciso informar as pessoas que têm de ajudar as autoridades para que seja possível diminuir o número de mosquitos. Se há menos mosquitos, há menos possibilidade de alastramento de doenças.

Em casa, para além das medidas preventivas que referiu, o sheltox serve como pulverizador?
Sim, é um insecticida. O problema é que as pulverizações intra-domiciliares devem ser feitas pelos serviços públicos. As pessoas, para além do sheltox, devem dormir com mosquiteiro. Em geral, o mosquito é diurno, não circula à noite. Mas como hoje temos uma vida diferente, utilizamos luz eléctrica, o mosquito pode continuar a picar. Então é preciso que os cidadãos se protejam com repelente, fechem as janelas, e evitem que o mosquito viva dentro das suas casas.

“Em princípio não é preciso tomar uma segunda dose”

Alegadamente faltam três milhões de vacinas da febre-amarela para Luanda. Quantas pessoas já foram vacinadas?
Há quatro laboratórios, a nível mundial, que produzem vacinas da febre-amarela. Os laboratórios têm de estar homologados pela OMS. Um é na Rússia, outro em França, outro no Brasil e um pequeno no Senegal. Produzem mais ou menos 20 milhões de vacinas, cada um, e o de Dakar produz 5 a 10 mil – o que significa uns 70 milhões de vacinas anuais. É muito pouco. Há um stock mundial de 6 milhões de vacinas da febre-amarela para responder a epidemias. Os laboratórios produzem estas vacinas com base em encomendas. A vacina da febre-amarela leva algum tempo a ser produzida.

Quanto tempo?
Vários meses. E, normalmente, quando vão para produção já estão vendidas. Criou-se uma instituição no seio da OMS, com a ajuda de outros parceiros (Cruz Vermelha, UNICEF, Médicos sem Fronteiras), que é responsável pelo stock mundial de 6 milhões de doses. Eles têm a informação de todas as vacinas que existem no mundo. Disponibilizou-se inicialmente 1,7 milhões de vacinas para Viana. O problema é que percebemos que há muitos mosquitos. E rapidamente começaram a aparecer casos suspeitos noutras zonas da cidade. Como Viana é um lugar de passagem, onde muitas pessoas saem da Maianga, por exemplo, para ir ao mercado e regressar a casa, então o mosquito pode disseminar-se facilmente. Decidiu-se rapidamente vacinar toda a região de Viana. E depois decidiu-se pedir mais vacinas: outros 2 milhões que estavam disponíveis. E agora vão enviar outros 2 milhões, para completar os 6 milhões do referido stock internacional. Luanda tem mais ou menos 6,5 milhões de habitantes. Como há sempre algum desperdício, calculamos que serão necessárias 7,3 milhões de doses, no total.

Em que fase está a campanha de vacinação?
Já se ultrapassou a população de Viana e estivemos a vacinar Belas (terminou no sábado). No dia em que termina a vacinação em Belas vão chegar mais vacinas ao país. Vamos avançar para o Cazenga e Cacuaco. A nossa actuação vai depender sempre da incidência e do número de casos conhecidos. Não é arbitrário. Se calhar não vamos vacinar a Ingombota – porque ainda só apareceu um caso suspeito. E os casos suspeitos nem sempre são casos provados. Só são casos provados aqueles que são demonstrados laboratorialmente. Até ao dia 23 de Fevereiro, apenas foram provados cientificamente 10 casos de febre-amarela em Luanda. Continuamos a fazer os cálculos e as análises, porque é preciso registar os casos suspeitos, conhecer a casa das pessoas, o quadro clínico. E criar uma base de dados. Temos um caso suspeito no Huambo. Mas o problema é fazer a investigação.

Porquê?
A tal pessoa no Huambo não morreu, apenas deu positivo, mas depois confirmou-se que essa pessoa tinha sido vacinada antes. Simplesmente era um falso positivo. Tudo tem de ser certificado, porque a febre-amarela é difícil de identificar, mesmo no laboratório. Pode ser dengue, chikungunya (katolotolo), e outras doenças transmitidas pelo mesmo mosquito. A verdade é que há febre-amarela em Luanda. Vamos agora a Porto Amboim porque notificaram um caso suspeito. Estamos a seguir os casos. Mas é preciso investigar e perguntar às pessoas onde estiveram, onde passaram, somos quase uns polícias. Até agora, todos os casos suspeitos passaram por Viana. São pessoas que passaram por Viana ou por Luanda, no mínimo.

Para além das questões de saneamento e saúde pública, que apresentam diversas deficiências estruturais, todos sabemos que se compravam e vendiam boletins internacionais de vacinas nas zonas próximas do aeroporto ou das estruturas da saúde. Isto é sinal de algum desleixo. São situações que preocupam a OMS?
Claro que preocupa, porque se você faz um cartão de vacinação que é falso está a colocar a sua vida e a sua saúde em causa. É uma irresponsabilidade muito grande. Por outro lado, é uma falta profissional do pessoal da saúde. É uma falta de consciência e de responsabilidade. Estamos a falar de um profissional do sistema de saúde que faz negócio para dar um boletim de vacinas.

Quer dizer que a OMS tem conhecimento dessas práticas.
Sim, mas não podemos impedir isto. Como poderíamos impedir?

A OMS costuma alertar o Ministério da Saúde e o governo angolano para estes problemas?
Nós alertamos para a necessidade de fazer as vacinas. Há lugares do mundo onde é obrigatório ter um boletim de vacinas da febre-amarela, senão, não entra no país. Angola é um desses países. O problema é que sabemos que há pessoas que falsificam os boletins de vacinas. Se há pessoas que falsificam as próprias vacinas… Ontem recebi uma notícia de uma suspeita de falsificação da vacina da febre-amarela. Já estamos a investigar, porque alguns lugares (farmácias, clínicas) estão a vender vacinas da febre-amarela. O Ministério da Saúde está a investigar e estamos a ver onde estes lotes foram produzidos e se correspondem aos números oficiais, controlados pela OMS. Queremos saber também quem vendeu, porque quem está a vender vacinas falsas terá de justificar onde, a quem e quando as comprou. Eu próprio estou a recolher estas informações. As pessoas enviam-me. O ministro da Saúde [José Van-Dúnem] tem feito o mesmo e temos partilhado informação. Porque a vacina da febre-amarela não é fácil de conseguir. É restrita. Não é como ir comprar aspirina na farmácia: tanto a produção como a distribuição é controlada. Como se pode ter vacinas nas farmácias?

Algumas clínicas estão a cobrar a administração da vacina. É legal?
Foram distribuídas vacinas por algumas clínicas privadas. Sobretudo na Clínica Girassol, mas também noutras clínicas. Poucas quantidades. A vacina é gratuita. No entanto, as clínicas têm gastos. O enfermeiro que está a fazer a injecção tem um salário. Eu pergunto-me: será uma justificação para cobrar? As vacinas para as crianças que são dadas às clínicas são gratuitas. Talvez as clínicas cobrem apenas o acto médico, o acto da injecção. Consideraria aceitável. O que me preocupa é que se faça negócio com a febre-amarela, cobrando a vacina. Tenho em minha posse uma factura de uma farmácia que cobrou Kz 9450 por uma vacina. É uma farmácia privada. Está a ser investigada porque é um acto ilegal. Também há o problema das falsificações de medicamentos, algo que afecta todo o mundo.

Em Luanda há muitos problemas com as falsificações de medicamentos. São vendidos na rua.
Não posso dizer muito mais, mas a OMS sabe da existência desses casos. Há países onde o problema é maior. Por exemplo, nos hospitais e centros de saúde públicos, em princípio, é o Ministério da Saúde que faz a procura dos medicamentos. Agora, em certas farmácias não posso dizer qual é o nível de qualidade dos medicamentos. Mas você sabe que os criminosos estão em todo o lado. É algo difícil de controlar. Criminalidade é criminalidade.

Algumas pessoas ligadas à saúde têm referido que a OMS prepara-se para anunciar que a vacina da febre-amarela garante imunidade para toda a vida. E que não é preciso tomar uma segunda dose. É verdade?
Em princípio não é preciso tomar uma segunda dose. Ainda não é oficial, mas a OMS tem conduzido diversas pesquisas para que se possa chegar a uma conclusão.

Mas já se fez uma recomendação nesse sentido. Está no site da OMS.
Ainda não. A OMS tem essa responsabilidade. Mas é verdade que a OMS está prestes a tornar oficial que a vacina da febre-amarela, uma vez tomada, protege para toda a vida.

Há países que já deixaram de fazer a vacinação de dez em dez anos.
Os exames da OMS funcionam de uma forma específica e a recomendação ainda não foi oficializada.

Foi por isso que não se utilizou essa informação em Luanda?
Não. Eu explico porquê: quantas pessoas em Angola têm um conhecimento perfeito da sua história de vacinação? Isto depende também do nível de educação das pessoas. As pessoas iletradas dificilmente sabem que vacinas tomaram. Sabem que tomaram algumas vacinas mas não conseguem identificar de que tipo. Em Angola, julgo que 48 a 52 por cento das pessoas são consideradas iletradas. O nível de iliteracia é enorme. Perguntar se foi vacinado, ou não, não vai mudar nada. A vacina é inócua, em geral. Seja a primeira ou a segunda dose. Há efeitos colaterais. Mas o risco de morrer de febre-amarela é maior do que os eventuais problemas provocados por receber mais uma dose.

A segunda vacina poderia trazer consequências para a saúde, segundo algumas fontes.
Como todas as vacinas…

Ou seja, em vez de criar ruído com diferentes mensagens (consoante a pessoa teria sido vacinada ou não), o que poderia complicar toda a operação, o governo e a OMS decidiram recomendar uma vacinação geral contra a febre-amarela.
No início discutimos esta situação. Se estivéssemos num país de 100 por cento de educação, com registos, com boletins de vacinas para todos, tornar-se-ia mais fácil trabalhar. Em Angola, a maioria das pessoas não tem boletim de vacinas. Mas toda criança acima de 6 meses tem de ser vacinada. No caso da febre-amarela e da campanha em curso, apenas precisamos de uma informação para vacinar as pessoas: a idade. Do ponto de vista operacional é muito mais fácil ter apenas uma mensagem. E nestas condições também é bastante complicado fazer uma triagem. Estamos a falar de quase 7 milhões de pessoas. Neste momento, temos enormes filas apenas para levar a vacina. Uma triagem precisa de recolher dados sobre o cidadão, de preencher um formulário. Há ainda outro argumento: a vacina é bastante efectiva (99 por cento) mas se, no momento em que a recebe, a pessoa apresenta-se com um pequeno resfriado, ou com as defesas baixas, poderá não fazer imunidade. Não é frequente mas acontece. Então é melhor re-vacinar. É o mais simples.

“A principal causa de uma epidemia de cólera é o saneamento

Ao longo dos tempos, Luanda enfrentou diversas epidemias de cólera. Com tanta chuva e tanto lixo acumulado temos de nos preparar para um problema de cólera nos próximos meses?
O que tem a cólera a ver com a febre-amarela?

Não tem nada a ver, aparentemente, mas o ambiente é propício a problemas deste género (surtos, epidemias) – e se a febre-amarela, que esteve fora-de-jogo durante tanto tempo, apareceu de novo, talvez seja um alerta para as autoridades.
O risco de cólera, em Angola, é grave: o acesso a água potável é deficiente, as valas de drenagem e esgotos são abertos, não há tratamento das águas residuais. A principal causa de uma epidemia de cólera é o saneamento. Se você não tem um bom saneamento, um bom sistema de tratamento e distribuição de água, há sempre o potencial de acontecer uma epidemia de cólera.

O surto de febre-amarela seria melhor combatido se fosse decretado o estado de calamidade na província de Luanda?
Na nossa opinião, se precisamos de meios para combater um problema, quando se declara o estado de calamidade é muito mais fácil que os outros países apoiem. Mas isso é declarado pelo Presidente da República. Os países têm autonomia para decidir. No meu entender (mesmo não sabendo como funciona a lei angolana neste aspecto), são os chefes de Estado que declaram um estado de emergência, mesmo que parcial.

Para além de um apoio externo mais efectivo, a declaração do estado de calamidade colocaria os serviços públicos, as FAA e a Polícia em alerta e a trabalhar no máximo da sua capacidade. Qual tem sido o papel das forças de segurança na campanha de vacinação?
As FAA estão a trabalhar connosco desde o dia do lançamento da campanha de vacinação. A Comissão Nacional de Protecção Civil e a Polícia estão envolvidas na campanha. Mesmo assim, temos muitas dificuldades porque o Ministério da Saúde não tem os recursos necessários para trabalhar. As municipalidades não têm recursos financeiros para uma situação destas: faltam viaturas, os brigadistas não têm alimentação, entre outras situações. As FAA têm a logística em condições porque são mais rigorosos. Mas não são apenas as FAA que estão a vacinar, há muitos civis que estão a trabalhar sem alimentação. Porque não há dinheiro para comprar. É certo que o país enfrenta uma crise financeira e isso tudo, mas como trabalho directamente com o Ministério da Saúde estou consciente que eles não têm dinheiro suficiente para dar uma resposta adequada a estas situações. E nas municipalidades é a mesma coisa. Não há dinheiro. Este é o problema.

Que tem sido debatido, sobretudo nos meios de comunicação social: para 2016, o orçamento da defesa (cerca de USD 7 mil milhões) equivale ao da saúde (cerca de USD 2,6 mil milhões) e educação (USD 3,8 mil milhões) juntos. O surto de febre-amarela foi potenciado pelo facto do sector não ter recursos para fazer um trabalho preventivo mais consequente? A OMS costuma conversar com o governo sobre estas questões?
Os países discutem diferentes formas de melhorar o sector social: educação, saúde, desenvolvimento. Há percentagens de alocação de recursos que devem ser cumpridas. São negociadas entre os países. Por exemplo, 4 a 5 por cento do PIB deve ser associado ao sector da saúde. As agências das Nações Unidas advogam o reforço do investimento no sector social, para ajudar o desenvolvimento humano. Mas os países são autónomos.

O problema da febre-amarela foi ou não potenciado pela falta de investimento no sector da saúde?
O problema está a ser afectado pela insuficiência de recursos. Isso é claro. Se você tem um país com problemas de saneamento ou problemas de acesso a água potável, de baixa escolaridade, que viveu longos anos em guerra… Há muitos factores que podem ser analisados e conectados. Angola é um país pouco desenvolvido social e economicamente – uma situação que também é derivada da guerra. A guerra acabou há 14 anos mas não é possível criar um país em apenas 14 anos. Muitas coisas têm vindo a mudar. Por exemplo: anteriormente havia apenas uma faculdade de medicina. Apenas uma. Agora há seis faculdades públicas de medicina. Angola está a fazer um esforço mas ainda não atingiu um patamar aceitável. Os serviços públicos estão melhores, mais bem equipados, mas os hospitais não têm recursos humanos e administrativos para atender à demanda.

Que medidas urgentes deveriam ser tomadas pelo governo para melhorar os serviços de saúde, na opinião da OMS?
A saúde pública depende de muitas coisas: já falámos do saneamento, do acesso a água potável, do acesso a educação. Mas como podemos falar de educação, de desenvolver o sistema educativo, quando até há algum tempo as crianças não podiam ir à escola. A guerra não permitiu. Continua a faltar gente capacitada, médicos, uma série de coisas. Todos os países podem enfrentar uma epidemia. Mesmo os países desenvolvidos. A diferença é que estes países têm condições (recursos humanos, financeiros, administrativos) para dar uma resposta muito rápida aos problemas. Temos ainda de perceber que os países tropicais são muito mais susceptíveis a epidemias. Porque apresentam todos os factores necessários para que isso aconteça: muita chuva, muito calor, muita terra fértil. Isto favorece a existência dos mosquitos. Na Noruega, por exemplo, não há mosquitos. Eles não sobrevivem ao frio.