Luanda - Luaty Beirão estava sentado ao computador a fazer uma tradução quando recebeu um e-mail que o surpreendeu, certamente a par de tantos outros angolanos, e não só: José Eduardo dos Santos acabava de anunciar que ia suspender a sua atividade política em 2018. Mas, segundo sublinha ao Observador pelo telefone, ter ficado surpreendido não significa que ficou animado com a notícia.

Fonte: Lusa

“JES quer que a gente lhe dê umas tréguas”, diz Luaty Beirão 

Fiquei surpreendido, sim, mas não foi surpreendido como se tivesse ficado excitado. Fiquei surpreendido porque não estava à espera de que ele fizesse esse anúncio às claras. Normalmente ele só deixa entender, e é sempre com muitas reservas que a gente recebe qualquer pronunciamento.”


O rapper luso-angolano, atual arguido no caso dos ativistas (conhecidos como revús, diminutivo de “revolucionários”) que liam um livro do jornalista Domingos da Cruz, com instruções para o derrube pacífico do regime angolano, guarda uma postura cautelosa em relação ao anúncio de José Eduardo dos Santos. Até porque, em 2001, o Presidente de Angola já tinha feito um anúncio semelhante — acabando por não o cumprir. Nessa altura, numa reunião do Comité Central do MPLA, segundo o Público, disse: “Quer [as eleições] se realizem em 2002 ou 2003, teremos um ano e meio ou dois anos e meio para que o partido possa preparar o seu candidato para a batalha eleitoral e é claro que esse candidato desta vez não se chamará José Eduardo dos Santos”. As eleições não aconteceram e José Eduardo dos Santos manteve-se no poder.

“Dessa vez fomos ingénuos e acreditámos”, lembra Luaty Beirão.


Os timings que se deduzem da declaração de José Eduardo dos Santos não são claros, uma vez que anuncia a sua saída de cena para 2018 — quando as próximas eleições devem acontecer meses antes, mais concretamente em agosto de 2017. Ficou por explicar se o Presidente do MPLA pretende ser o cabeça de lista daquele partido nas eleições, cedendo mais tarde a liderança do Governo ao seu número dois. Por outro lado, também é possível que o MPLA venha a designar outro nome para liderar as suas listas, enquanto José Eduardo dos Santos permanece na liderança do partido até 2018.


“Quem é que se candidata para governar um ano e depois sair logo a seguir?”, pergunta Luaty Beirão, reforçando o seu ceticismo em relação às declarações do Presidente angolano: “Não há nada de credível nessa intenção. O que eu entendo é que ele quer ganhar tempo. Quer que a gente lhe dê umas tréguas para que ele possa ficar o tempo que lhe resta do seu consulado para continuar a fazer as suas negociatas”.


O ativista e jornalista angolano Rafael Marques também estranhou o teor da declaração do Presidente de Angola: “Trata-se de uma estratégia de diversão”, garante ao Observador pelo telefone. “Se o Presidente quer sair em 2018, antes de tudo ele tem de anunciar um elemento crucial: vai-se candidatar ou não? O Presidente tem de ser claro nas suas declarações. Ou sai, ou fica. Não pode estar a fazer disto um exercício de adivinhação.”


Para Rafael Marques, José Eduardo dos Santos pode estar a “tentar gerar alguma simpatia” do junto do povo angolano com estas declarações. “Como agora não tem discurso para a atual crise social, em que há hospitais que se transformaram praticamente em casas mortuárias devido à falta de condições mínimas e de assistência dos pacientes, ou que leva a que as autoridades nem consigam fazer uma recolha do lixo normal, obrigando bairros inteiros a viver como se fossem lixeiras, ele agora quer arranjar uma maneira desesperada de ter a simpatia das pessoas”, diz o jornalista, que recentemente denunciou, num texto no seu site Maka Angola e posteriormente republicado no Observador, a falta de condições no Hospital Américo Boavida, em Luanda.


“Mais uma jogada de um grande animal político”


Também o jornalista Domingos da Cruz, autor do livro que os revús liam até serem detidos, coloca sérias dúvidas à notícia do dia, dizendo que se trata antes de “mais uma jogada de um grande animal político, que funciona sempre numa perspetiva maquiavélica e draconiana” e diz ainda que “[José] Eduardo dos Santos estará preocupado em manter a propriedade surripiada ao país”. Angola está entre os maiores produtores de petróleo e diamantes do mundo, ao mesmo tempo que tem a pior taxa de mortalidade infantil e de mortalidade antes dos cinco anos do mundo.


Embora admita que José Eduardo dos Santos pode mesmo sair de cena em 2018, Domingos da Cruz não acredita que essa possibilidade leve a uma democratização de Angola: “As pessoas começam a lançar foguetes a pensar que uma saída de José Eduardo dos Santos é uma democratização. Eu acredito que um sistema, mesmo que tenha um homem forte, consegue continuar quando esse homem sai. Ele pode sair e o sistema consegue continuar a funcionar como hoje, com violações dos Direitos Humanos constantes e ao arrepio de todas as regras éticas e civilizacionais contemporâneas”.


Em declarações à Lusa, fonte oficial da UNITA, o maior partido da oposição, comentou o anúncio do Presidente angolano dizendo que era preciso “ver para crer”. “Era de esperar que, depois de 40 anos, ele [Presidente angolano] tomasse esta decisão, de se retirar da direção do país, mas também temos lembrado que não é a primeira vez que ele o faz. Já o fez no passado e por isso é preciso acompanhar essa questão de perto”, disse Alcides Sakala, deputado e porta-voz da UNITA.


Manuel Vicente “é uma carta fora do baralho”


Quanto a um possível sucessor ao Presidente angolano, Luaty Beirão avança apenas uma certeza: “Será sempre uma proposta de José Eduardo [dos Santos]”. Além disso, garante, quem quer que tenha pretensões de suceder ao homem que lidera o país desde 1979 “terá de ser muito cauteloso antes de verbalizar essa intenção”.


Sobre o nome de Manuel Vicente, vice-Presidente angolano e homem de negócios, recentemente indiciado por corrupção, Rafael Marques refere que se trata de “uma carta fora do baralho”. É sabido que Manuel Vicente é um elemento pouco amado dentro das fileiras do MPLA — algo que, somado à sua situação com a justiça portuguesa, pode ser desfavorável a uma passagem pelo mais importante cargo do poder angolano depois de uma saída de José Eduardo dos Santos.


O Observador tentou entrar repetidas vezes em contacto com a Embaixada de Angola em Portugal e com membros do MPLA. Até agora, não obtivemos resposta.


“Prefiro manter o meu pessimismo e achar que vou ser condenado”


Sobre o julgamento que decorre em torno de Luaty Beirão e dos outros 16 ativistas que foram acusados de preparem um golpe de Estado, o rapper luso-angolano opta pelo pessimismo que até agora o tem guiado: “Eu prefiro manter a minha previsão e achar que vou ser condenado e depois ser surpreendido por um desfecho em que é de facto provado que este caso nunca teve pernas para andar. É aliás incrível como um caso destes, que de facto nunca teve pernas para andar, conseguiu chegar até aqui”.


Luaty Beirão, a par dos restantes ativistas, foi detido em junho de 2015. Em setembro, iniciou uma greve de fome que só viria a terminar ao 36º dia, no final de novembro. Em dezembro, foi colocado em prisão domiciliária, onde permanece. Continua a fazer a música, o meio onde começou por se destacar na crítica ao regime angolano. “Não faço com a mesma regularidade de outros tempos, mas o bichinho nunca morre”, disse.


“Passando por cima de tudo o que pode parecer, e é, lógico, eles vão levar avante a sua vontade”, diz, apostando na sua condenação, fazendo no entanto uma concessão: “A vontade deles poder ir-se alterando, mas eu agora não sei que variáveis poderão estar a entrar na equação deles que por ventura podem mudar o rumo deste caso”.


Domingos da Cruz também acredita que, juntamente com os restantes arguidos, será condenado: “Eu mantenho coerentemente a minha posição. Eu digo que vamos ser condenados. Não é um discurso banal, é uma convicção profunda. Vamos ser condenados. Não duvido disto, porque num Estado autoritário como o angolano eu só espero o mal e nunca o bem”.