Luanda  - No dia 6 de Fevereiro de 2016 comemorou-se, em Oihole, Município de Namacunde, o nonagésimo nono aniversário da morte em combate do Rei Ndeulikufa Ya Ndefumayo, mais conhecido por Mandume ya Ndemufayo. O ponto mais elevado dessa comemoração foi uma palestra subordinada ao tema: “O Regionalismo Transfronteiriço”, ministrada pelo mestre Ezequiel Israel Jonas, secretário do Governo Provincial do Cunene.

 Fonte: Club-k.net           

A palestra congregou diplomatas angolanos e namibianos, estudantes, autoridades do poder tradicional, governantes, académicos, magistrados judiciais e do ministério público, representantes da ordem interna e das forças de defesa e segurança, entidades eclesiásticas e populares.

 

Depois da apresentação do tema, seguiu-se o momento das intervenções para perguntas e subsídios. Houve muitas intervenções. De todas elas, há uma que está a dar que falar até hoje, proferida pelo cônsul angolano no Oshakati, Dr. Francisco Correia Neto, que atende as regiões do noroeste namibiano (Ohangwena, Omusaati, Oshikoto, Oshana e Kunene). Começou por mencionar as diferentes actividades realizadas pelo Consulado sob a sua tutela, para depois acrescentar que a existência de uma mesma tribo de um e do outro lado da fronteira, ou melhor, dito: a extensão de grupos étnicos para além das fronteiras constitui uma “grande ameaça à segurança nacional de Angola”, uma vez que, segundo ele, “facilita o tráfico de drogas, seres humanos, contrabando de diversos produtos e outros males".

Na lógica do Sr Dr. Francisco Correia Neto, os Cuanhamas que se encontram de um e do outro lado da fronteira angolo-namibiana “constituem grande ameaça à segurança nacional de Angola”.

Ninguém conhece as razões que motivaram aquela afirmação do Dr. Correia Neto que, para além do mais, foi proferida no lugar e no momento errados. Estava-se num lugar de muito valor para os povos de ambos os lados da fronteira, num momento em que estavam congregadas pessoas dum e doutro lado da fronteira e a comemorar-se a morte em combate do Rei Mandume, personalidade de muito significado e prestígio nos dois lados da fronteira.

Como era de esperar, as afirmações daquele diplomata angolano provocaram grande perplexidade nos presentes devido a deselegância mostrada por alguém que diz ser diplomata.

Ainda que de forma tímida, ouviram-se da assistência reacções opostas à tese defendida pelo Cônsul.

Como consequência da saída infeliz do cônsul, surgem agora algumas interrogações: a posição do diplomata angolano é pessoal ou traduz o pensamento do Estado e do Governo angolanos? Para exteriorizar aquele pensamento terá tido o cônsul luz-verde de quem de direito ou foi apenas por iniciativa própria?

Seja como for, os povos desta parte do País não podem deixar de analisar e avaliar profundamente as revelações do cônsul.

Será que o cônsul de Angola em Oshakati acredita na existência de angolanos mais genuínos que outros?

Será que para salvaguardar a segurança nacional, o Dr. Correia Neto está a propor a revisão das fronteiras herdadas dos colonos para que as tribos que se prolongam além-fronteira fiquem num só país?

De qualquer modo, o senhor cônsul parece ignorar os factos históricos.

As fronteiras africanas foram fixadas no fim do século XIX e principio do século XX. Os colonialistas, ávidos de se apoderarem das riquezas africanas, organizaram em Berlim uma Conferência que, de 15 de Novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885 iria ditar a divisão do Continente Africano em “pedaços” e “pedacinhos” tal como fazem os abutres que se batem pela posse de um cadáver.

A África era considerada, então, como terra de ninguém, pois os homens africanos eram tidos pelos europeus como sub-humanos (macacos sem cauda), foi assaltada e repartida entre as potências colonizadoras. A Inglaterra, a França, a Alemanha, a Espanha, a Itália, Portugal e, mais tarde, a União Sul-Africana racista se destacaram na espoliação de terras.

Para aqueles homens que negociavam nas salas de conferências, as fronteiras não eram mais que simples linhas no mapa, porque não conheciam nada das terras e sociedades que estavam subjugando. Nem lhes importava se os seus limites arbitrários desorganizavam a vida das suas populações. De noite para o dia, os habitantes se encontraram rigidamente separados por umas fronteiras impostas por governantes estrangeiros. As pessoas que vivem na margem de um rio viram como os seus parentes da margem oposta converterem-se, bruscamente, em súbditos de um regime colonial diferente. Igualmente, dentro das novas fronteiras, uma série de sociedades africanas ligadas por laços comerciais e diplomáticos, mas politicamente independentes, foram desmembradas ou reunidas como prisioneiros comuns de um estado colonial estrangeiro.

Como consequência temos hoje um continente em que as fronteiras dos países foram definidas à régua sem se ter em conta nenhum factor de ordem étnico, geográfico ou outro, mas apenas a vontade do invasor em repartir o “bolo” consoante a força militar de cada um, naquela época.

Perante esta realidade, os pais das independências africanas tiveram a sábia e brilhante ideia de declarar que a África independente deveria conservar as fronteiras herdadas do colonialismo, pois, tal opção constituía um mal menor se comparada com as inevitáveis e terríveis convulsões que a revisão das fronteiras poderia provocar.

Uma decisão no sentido da mudança das fronteiras tocaria num verdadeiro enxame de milhares de abelhas, cujo controlo seria impossível transformando-se numa autêntica caixa de Pandora.

É importante, no entanto, que os actuais e futuros estadistas africanos não ignorem a existência de conflitos declarados ou latentes nas diversas fronteiras africanas herdadas do colonialismo, conflitos que requerem estudos, definição de estratégias e uma gestão democrática virada para a harmonização e a integração regional com participação das populações interessadas e não só.

A principal arma nesta batalha para a integração deve ser a promoção de projectos e programas transfronteiriços de desenvolvimento socioeconómico susceptíveis de incentivar trocas comerciais, a livre circulação de pessoas e bens, o intercâmbio cultural integrador, a inclusão sem reservas desses povos e iguais oportunidades para todos povos que habitam o mesmo país.

É importante que as populações situadas ao longo das fronteiras se sintam em casa nos dois lados da linha divisória que apenas deve servir de convenção na separação dos países e não um factor de divisão dos povos que muitas vezes têm uma raiz comum. Esta abertura é imprescindível e deve ser descartada a ideia de que a extensão étnica para além da fronteira e a livre circulação de pessoas e bens possa constituir uma ameaça à soberania dos Estados e aos poderes instituídos. Não promover a integração e alimentar políticas e discursos divisionistas ou até discriminatórios, é muito perigoso, e pode desenvolver recalcamentos e fomentar conflitos futuros.

Nesta conformidade, foi espantoso ouvir sair da boca de um diplomata angolano as palavras segundo as quais a extensão de grupos étnicos para além das fronteiras, ameaça a segurança nacional de Angola.

Pela gravidade das afirmações proferidas, o cônsul mostrou não estar à altura da missão confiada pelo Estado. No entender de muitos, ele desconhece as noções elementares da diplomacia, por tanto, deveria ter a coragem de demitir-se ou quem de direito deveria destituí-lo, imediatamente, por maus serviços prestados a pátria e porquanto o seu posicionamento contraria o Programa de Gestão de Fronteiras da União Africana e põe em risco a harmonia que se requer nas zonas fronteiriças onde a pesada herança colonial exige muito tacto e perspicácia para se evitarem reivindicações difíceis de atender.

Na análise de muitos Cuanhamas, as revelações do senhor Correia Neto ajudam a suspeitar que existam razões profundas na base da não promoção dos Cuanhamas no seio do Governo e do Partido MPLA.

Senão, como se explica o facto de muitos Cuanhamas apesar de terem uma folha de serviços preenchida de grandes feitos, já seja na luta pela Independência, Defesa da Soberania, da Democracia e da Paz e terem formações acadêmicas nas mais diferentes áreas do saber, nos quarenta anos de Independência não se conhece nenhum Ministro Cuanhama e nunca Cuanhama algum foi escolhido para integrar o Bureau Político do MPLA? O único Embaixador Cuanhama que se conhece, foi nomeado por força dos acordos assinados com a oposição armada, na altura. Nos quarenta anos de independência, só se conhece um único Governador Provincial Cuanhama! Hoje em dia, a representação Cuanhama no Governo Central se reduz a um secretario de estado no MINARS. Uma pasta decorativa. Algo assim como uma quinta pata numa mesa de quatro.

 

Perante esse monumento de injustiças e exclusões sistemáticas se pode, então depreender que os Cuanhamas não são promovidos por representarem uma ameaça à segurança nacional de Angola?

Pode-se concluir que o estado angolano considera os Cuanhamas como angolanos não genuínos por se estenderem para lá da fronteira angolana, aliás como tentaram insinuar os promotores, ainda muito activos, do projecto “Kunene do Norte”?

Em 2002, apareceu um grupinho de aventureiros, com a pueril ideia de querer dividir o Cunene em duas províncias: Cunene do sul e o do norte.   O grupinho acredita que, o facto de os seus membros pertencerem a uma tribo sem extensão transfronteiriça os faz mais angolanos que os Cuanhamas que também habitam a Namíbia. Por isso, propunham uma província para os menos angolanos, neste caso, os cuanhamas e outra para os angolanos genuínos, os Nyanekas Humbe. Suas ideias se apoiam em bases, puramente, tribalistas e discriminatórias contra os Cuanhamas o que está explicito em documentos produzidos por eles e remetidos ao MAT.

No momento em que, as tendências prevalecentes no Mundo inteiro são de integração e união, infelizmente, aparece o Cônsul Correia Neto a alinhar no mesmo pensamento dos divisionistas e donos da ideia de Cunene do sul para os angolanos de segunda e o Cunene do norte para os angolanos de primeira.

 

Os Cuanhamas sempre mostraram-se fiéis ao MPLA e ao Presidente da República tendo abraçado com vigor e consciência as políticas de unidade com base na palavra de Ordem “UM SÓ POVO, UMA SÓ NAÇÃO”. Nas diferentes lutas pela libertação nacional e pela preservação da independência nacional, os combatentes Cuanhamas se destacaram com bravura insuperável. Sempre lutaram ao lado dos seus compatriotas como irmãos e filhos do mesmo solo pátrio. Nas eleições têm votado, massiva e repetidamente, no MPLA e no Presidente José Eduardo dos Santos.

A persistente exclusão dos mesmos está a fazer vingar, cada vez mais, a ideia de que sempre foram usados como instrumentos, totalmente descartáveis, porquanto, para o dever são bem conhecidos, mas para os direitos não valem absolutamente nada. Sempre são, deliberadamente, esquecidos.

Afirmações como as do Cônsul Correia Neto estão a criar nos Cuanhamas um sentimento de frustração que pode conduzir a desânimos e recalcamentos.

O MPLA que se diz ser um partido de vocação nacional não pode prescindir da inclusão dos Cuanhamas nem ignorar a necessidade de se ter sempre em conta os equilíbrios étnicos e regionais.

Se verdadeiramente, o país é de todos e para todos, é triste e totalmente, inaceitável o lugar reservado para os Cuanhamas ao longo dos quarenta anos de independência.

Há uma necessidade imperiosa de se rever a situação dos Cuanhamas e marcarem, também presença nas instituições de direção do Partido MPLA e do Governo. De Cunene a Cabinda existem Cuanhamas com mérito e preparação acadêmica suficiente que devem ser tidos em conta como dirigentes nos diferentes escalões do MPLA e do Governo. E, contrariamente ao que pensa o Sr Dr. Francisco Correia Neto, não constituem ameaça alguma à segurança nacional de Angola.