Luanda - Tendo como referência a actual Constituição (CRA-2010), a futura Lei da Comissão dos Moradores é um verdadeiro achado, cuja bondade/eficácia/pertinência é muito difícil de ser entendida, se não houver de facto aqui gato escondido com o rabo de fora.

Fonte: OPAIS

Devido a (alguma) urgência com que estamos confrontados, já não temos muito tempo para conceder o benefício da dúvida, pelo que corremos o risco de cometer alguma “injustiça” na avaliação de mais esta movimentação.

Os factos irão depois confirmar ou desmentir as nossas expectativas menos positivas que se adivinham na epígrafe, pelo que em tempo oportuno cá estaremos para fazer o “follow up”, que é o grande “calcanhar de Aquiles” do nosso jornalismo aliado à falta de memória.

Em matéria de poder local e para além de outras vagas “modalidades específicas”, a Constituição da República não deixa efectivamente grande espaço de manobra para a imediata entrada em cena destas novas entidades público-administrativas que o Executivo nos quer vender agora.

Isto, recorde-se, depois de ter adiado o polémico projecto, quando o ano passado aceitou retirar o respectivo “draft” do plano de tarefas que este ano o Parlamento deverá cumprir, visando a preparação das próximas eleições gerais e autárquicas.

Em matéria de cumprimento desta agenda, note-se, ainda não começamos a ver nada. Mas se calhar é apenas a nossa impressão.

As primeiras eleições sabe-se quando deverão ter lugar por imposição da CRA-2010, mas em relação às segundas não há nada de concreto.

Por força, nomeadamente, deste “recuo”, o consenso então obtido com a Oposição e que resultou na aprovação por unanimidade do referido plano, foi vivamente saudado pela sociedade de uma forma geral.

Pelos vistos e para além de ter sido sol de pouca dura, uma vez mais ficou provado que o leão quando recua, em vez de estar a fugir, pode estar apenas a apanhar balanço para voltar a atacar a sua presa.

O leão aqui, pelas evidências, só pode ser o Executivo, mas a presa parece não estar assim tão bem identificada, se é que haverá mesmo nesta analogia alguma vítima para ser desossada.

A comissão em causa foi-nos já apresentada como sendo mais um espaço de participação directa dos cidadãos na resolução dos seus problemas nas zonas onde vivem, sendo certo que em muitas delas já não é bem de vida normal que se trata, tamanhas, tão bicudas e agrestes são as dificuldades que se colocam no seu quotidiano.

Em matéria de poder local, a Constituição neste quesito está literalmente congelada, se estivermos de acordo que neste âmbito o principal compromisso do Estado é efectivamente a criação das autarquias locais, que até já estão definidas nos seus contornos, ficando as restantes formas para depois, se quisermos respeitar uma certa ordem de precedência.

Em abono da verdade estamos diante de uma potencial inconstitucionalidade por omissão, cuja responsabilidade política tem de ser assacada ao Executivo, que também não nos parece que esteja minimamente preocupado com esta colagem devido ao completo domínio que tem da situação por força da sua maioria qualificada no parlamento e de um regime presidencialista completamente blindado ao escrutínio dos deputados.

Sobra a imprensa e as redes sociais, o que é muito pouco para o funcionamento em pleno de um Estado Democrático de Direito, mas sempre seria muito pior se não houvesse este espaço público que está cada vez mais activo e incomodativo. E ainda bem que assim é.

Depois de já termos tentado perceber, com base nas explicações adiantadas no Parlamento, como é que estas Comissões de Moradores vão funcionar, sinceramente, no que toca a sua capacidade/utilidade, não conseguimos ver qual é a urgência da sua implantação antes de se criarem as Autarquias.

Sinceramente, não conseguimos perceber qual é a pressa de se alterar a ordem natural das coisas, pondo literalmente a carroça a frente dos bois, ao mesmo tempo que se quebrava um consenso com a Oposição que tantos encómios valeu a nossa classe política.

De facto só mesmo outras razões que nos estão a escapar podem estar na origem deste “forcing” do Executivo a favor da aprovação deste projecto da Comissão dos Moradores quase em regime de urgência, faça sol ou faça chuva.

Adivinham-se que estas razões sejam “estratégicas”, o que também é muito pouco para ficarmos convencidos da bondade da sua urgência, já que neste quadro a estratégia política e o interesse público raramente convergem numa mesma direcção.

Não temos pois e para já, outra prateleira para colocarmos esta movimentação que não seja naquela que é conhecida popularmente como sendo a do gato escondido com o rabo de fora.

In Secos e Molhados/O PAÍS (15-04-2016)