Luanda - Decidi preencher o espaço desta crónica com uma adaptação de parte daquilo que escrevi e disse na última sexta-feira no decorrer do acto que teve lugar no jango da Chá de Caxinde e que marcou o lançamento dos primeiros dois livros do cartunista angolano Sérgio Piçarra (SP).

Fonte: RA

Para além da minha relação de amizade pessoal com o autor que já tem alguns anos de estrada, embora não sejamos do mesmo campeonato, tenho uma admiração pelo SP especialmente por causa do seu extraordinário talento de traduzir, de forma satiricamente bem humorada, para o papel, as partes mais gagas do inspirador quotidiano deste país, das suas gentes e instituições, através de expressivos bonecos e perspicazes legendas.

A minha admiração pelas pessoas que sabem desenhar já é muito antiga, vem dos bancos da escola e do liceu, onde eu sempre fui um glorioso aselha nesta arte/disciplina.


Na segunda ordem das razões que me levaram a fazer a apresentação dos seus livros, incluo o tamanho e a densidade dos dois simpáticos exemplares pela facilidade que a sua leitura implica.


Em apenas alguns minutos, consegui ler os dois livros sem ficar com nenhuma dúvida em relação ao seu conteúdo. Tudo muito claro.


É exactamente, e em grande medida, nesta extraordinária facilidade/rapidez de leitura, que nem sempre é a mesma ao nível do entendimento (tanto por excesso, por diferença, como por desconfiança) que reside o grande sucesso mundial desta arte comunicativa.


Ao nível da imprensa, o cartunismo que já tem mais de 100 anos de estrada e de gráficas.


Como ninguém, Sérgio Piçarra tem sabido desenvolver esta arte nas condições concretas do nosso país, que como sabemos não têm sido as mais simpáticas para a liberdade de expressão com todos os altos e baixos que a sua trajectória tem conhecido ao longos destes primeiros 40 anos de independência.

Não é este o melhor momento para contar as espingardas, mas é bom dizer-se que na frente da liberdade de expressão, todos os espaços até agora conquistados ao passado monolítico do pensamento único que quer continuar a ser presente, também o têm sido graças ao mérito/esforço individual de alguns jornalistas.


Eles de facto têm-se destacado nesta luta diária para não permitir que tudo volte a ficar como antigamente, mas dando sempre a impressão que as coisas estão cada vez melhores e que tudo o resto são os tais falsos problemas.


Piçarra faz parte desta galeria de notáveis.

Nesta listagem não introduzimos, propositadamente, o factor coragem, porque achamos que as pessoas por vezes exageram demasiado as dificuldades reais, confundindo-as com os seus pesadelos, sendo por isso que hoje, se calhar, temos tão poucos Piçarras em full time.

Não lhe faremos favor nenhum, e muito menos faltaremos com a verdade que ainda é o mais importante, se aqui dissermos o que vamos dizer a seguir, como já o dissemos noutras ocasiões, o que nos parece ser uma evidência.

De facto et de jure não encontramos na nossa paisagem cartunística ninguém que, com a mesma beleza estética ao nível do traço, acutilância/diversidade temática ao nível do conteúdo e permanência continuada no mercado, tenha feito a aposta de Sérgio Piçarra neste tipo de jornalismo com tão elevado e consistente nível, que é difícil não reconhecer.


Isto, mesmo quando não estamos de acordo ou nos irritamos com a mordacidade das suas piadas, reparos ou observações.

É já ponto assente que em relação a este tipo de mensagem, há muito que o nosso consentimento deixou de ser necessário como critério de avaliação de um cartoon.


Aliás, nunca foi, com a excepção dos países, que ainda são muitos, onde funciona a lei da rolha, seja por razões políticas, religiosas ou retaliativas. Esta última e silenciosa modalidade continua a ser muito aplicada entre nós.

No caso do cartoon, ou este tem graça ou não tem. Ponto, parágrafo.

É aí que está o segredo do sucesso de um cartunista que, não raras vezes, acaba até por ser elogiado pelos alvos das suas farpas devido à elegância da sátira e à profundidade da alfinetada com que vai carimbando os seus sucessivos temas.


E acreditamos que mais não tem feito o SP por razões que são completamente alheias à sua própria vontade e que se adivinham estarem relacionadas com conhecidos receios editoriais da nossa praça, que nunca deixaram de povoar o panorama jornalístico.

São eles que, actualmente, explicam por exemplo a prolongada ausência de SP das páginas do Jornal de Angola (o nosso Pravda).

Foi neste último, que na década de 80, SP começou a caminhar e se fez gente, tendo anos depois um dos seus cartoons ditado, por suposta falta de vigilância, o afastamento de um dos directores que passou por aquele diário, após o boneco ter sido considerado um grave atentado à imagem do poder.

Se fosse agora, o pobre do SP ainda poderia ser acusado de terrorismo cómico.

Sim, é de jornalismo puro e duro que estamos aqui a falar, na vertente da opinião, que tem estado a ganhar cada vez mais espaço e crédito junto das pessoas mais atentas/curiosas.


Possivelmente, por entenderem que alguns “opinion makers” sempre vão tendo mais liberdade e coragem pessoal para dizerem o que pensam com a sua cabeça e, por esta via, nas entrelinhas, adiantarem o que realmente se passa de concreto nos bastidores do país real mesmo com todas as imprecisões típicas de quem fala na primeira pessoa e por sua conta e risco.


Digamos que o parcialmente vago espaço do jornalismo investigativo está, de algum modo, a ser preenchido por este jornalismo de opinião, que dá, certamente, menos trabalho, e onde figuram os cartunistas com as suas bandas desenhadas/charges/tirinhas/comic strips e com os cartoons propriamente ditos.

Sem o mesmo impacto, a caricatura também pode entrar nesta movimentada e alegre carruagem quando ela, por exemplo, exagera alguns defeitos físicos com a colocação dos famosos “narizes do Pinóquio” em algumas figuras políticas ou públicas.

 

De acordo com alguns estudiosos do fenómeno cartunístico, haverá que fazer uma certa divisão conceptual entre aquilo que os franceses chamam de charge e os brasileiros de tirinhas, do tipo Mafalda do Quino ou o Peanuts/Charlie Brown do Bulchoz que serão os homólogos do Mankiko, o Imbumbável e o cartoon propriamente dito, que é composto apenas por um desenho.


Na charge, o contexto está mais ligado a uma determinada realidade/actualidade pelo que só os conhecedores da mesma estarão em melhores condições de perceber as graçolas em toda a sua profundidade.

No cartoon tem-se, obviamente, em conta o presente, mas também se pensa no futuro, de modo a produzir-se um boneco mais intemporal que possa ser entendido por todos hoje e amanhã, aqui e acolá.

Olhando para a intervenção do SP conseguimos de algum modo ver esta separação de águas entre as histórias do “Mankiko, o Imbumbável” e os restantes cartoons que fazem parte do outro livro.


Olhando para estes dois livros, temos aqui, certamente, também um importante contributo para a memória deste país, sem o qual a história de todos (e não apenas de alguns) dificilmente será feita e contada, comme il faut.

Mas onde SP já tem o seu lugar mais do que garantido, com todo o mérito que lhe é devido, é na galeria da própria história do cartunismo angolano, por mais que algumas iniciativas anuais o queiram ignorar, em lamentáveis e sectários esquecimentos só compreensíveis no contexto de uma radicalização contra a liberdade de expressão e o pluralismo de opiniões pela via da retaliação e do silenciamento.
Até ver, as redes sociais através da santa Internet vieram salvar-nos deste tipo de ameaças que prosseguem dentro de momentos.


Não sei, nem lhe perguntei, quantos prémios já ganhou, nem quantas homenagens já lhe foram dedicadas.

O que sei é que estou a participar na primeira, que é esta, e que vos trouxe a todos até aqui para lhe dizermos que mesmo sendo imbumbável, o Mankiko continua a fazer todo o sentido como uma das personagens mais reais deste país, que nem todos querem ver com os mesmos olhos.

“Eu só vos olho já!”