Luanda - Muito já foi dito sobre a Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto (Lei da Amnistia), publicada na passada sexta feira e com entrada em vigor no mesmo dia.  A reflexão que se segue cinge-se, essencialmente, al. d) do artigo 3.º da referida Lei.


*(Docente da FDUCAN)
Fonte: Club-k.net

A aministia é uma causa de extinção da responsabilidade criminal, determinada pelo poder legislativo, que elimina genericamente a incriminação de factos passados. Se ocorrer antes do trânsito em julgado da sentença condenatória extingue o procedimento criminal e se ocorrer após a condenação transitada em julgado extingue a execução tanto da pena como dos seus efeitos como da medida de segurança. É uma medida de graça e ao mesmo tempo pressuposto negativo da punição.

 


O artigo 3.º tem como epígrafe (execepções) e estabelece um conjunto de crimes que não estão abrangidos pela Lei da Amnistia. Chamou-nos atenção al. d) que exclui do âmbito da Lei “os crimes previstos nos artigos 392.º a 395.º do Código Penal, designadamente o estupro, a violação, a violação de menor de 12 anos e o rapto violento ou fraudulento”, puníveis com penas de 2 a 8; 2 a 8; 8 a 12 anos e 3 dias a 2 anos, respectivamente.


O Código Penal de 1886 não tem consagrado, propriamente, um capítulo sobre os crimes sexuais, e, consequentemente, não faz distinção entre crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. Os crimes de índole “sexual” previstos no Código Penal estão enquadrados no Capítulo IV sob epígrafe (Dos crimes contra a honestidade), cujos bens jurídicos são a moralidade, o pudor, a honra e a honestidade sexual. Só através de uma interpretação correctiva do bem jurídico penal à luz da Constituição da República de Angola de 2010, é possível concluir que, nos casosem particular, do estupro, violação, violação de menor de 12 anos e rapto violento ou fraudulento, o bem jurídico protegido pelo legislador é a liberdade e autodeterminação sexual.

 


Aliás, nos crimes sexuais, contra a liberdade e autodeterminação sexual, o bem jurídico penal tutelado é o mesmo, a liberdade (e/ou autodeterminação) sexual, apenas com uma pequena diferença. No primeiro estão em causa“todas as pessoas, sem fazer acepção de idades” enquanto que no segundo “(...) o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual” (Jorge Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, 1999: 441 ss).

 


Os crimes sexuais não estão apenas “consagrados” no Código penal, mas também na Lei n.º 3/14 de 10 Fevereiro (Lei sobre a Criminalização das Infracções Subjacentes ao Branqueamento de Capitais). Esta lei tipifica nos artigos 18.º (Escravidão e servidão); 20.º (Tráfico sexual de pessoas); 21.º (Lenocínio); 22.º (Lenocínio de menores) e 23.º (Tráfico sexual de menores), verdadeiros crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. Assim, não se compreendem as motivações que levaram o legislador material e formal a excluir estes crimes da excepção da al. d) do artigo 3.º da Lei da Aministia, quando, na verdade o bem jurídico penal protegido é o mesmo do estupro, violação, violação de menor de 12 anos e rapto violento ou fraudulento e até em algumas situações àqueles são punidos de forma mais grave que estes últimos. A título de exemplo, o crime de lenocínio com pena de 2 a 10 anos; lenocínio de menores consoante o caso, 2 a 10 e 5 a12 anos e tráfico sexual de menores também em função da situação pode ser punido com as penas de 3 a 12 anos e 3 a 15 anos.Concretizando com um exemplo, lenocínio de menores, todos os indivíduos que em Angola, promoviam, favoreciam ou facilitavam o exercício da prostituição de menores de 18 anos bem como o aliciamento de menores para esse fim, até ao dia 15 de Novembro de 2015, foram Aministiados pela Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto. Assim, entendemos queos legisladores material e formal andaram mal.

Antes de terminarmos a nossa breve reflexão e sem fugirmos do tema, a Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, para além dos crimes sexuais, apresenta outra situação de incongruência em relação ao bem jurídico vida humana. O n.º 2 do artigo 1.º estabelece que “São ainda aministiados todos os crimes militares, salvo os crimes dolosos cometidos com violência de que resultou morte, previsto no n.º 3 do artigo 18.º e no n.º 3 do artigo 19.º, ambos da Lei n.º 4/94, de 28 de Janeiro – Lei dos Crimes Militares.” O legislador determina de forma clara os crimes não abrangidos pela amnistia.

 


Ora, os artigos 18.º e 19.º têm como epígrafes (Violência contra superior e Violência contra inferior, respectivamente ). Curiosamente, quer o n.º 3 do artigo 18.º, quer o n.º 3 do artigo 19.º estipulam que “Se das ofensas corporais previstas neste artigo resultar como efeito necessário a morte, a pena será de prisão maior de 20 a 24 anos”. As situações sãs as mesmas e o bem jurídico penal protegido em ambos artigos é a vida humana e até aqui não há problema. O problema levanta-se em relação ao artigo 20.º da mesma lei que tem como epígrafe (Violência contra militares de igual graduação ou equivalente). O n.º 3 do artigo 20.º estabelece idêntica situação, pena e protege o mesmo bem jurídico penal “vida humana”previsto nos ns.º 3 dos artigos 18.º, 19.º e sem deixar margem para  dúvida a redação é peremptória“ Se das ofensas corporais previstas neste artigo resultar como efeito necessário a morte, a pena será a de prisão maior de 20 a 24 anos.” Este crime não vem excepcionado no n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto. Significa, a titulo de exemplo e materializando, se um um cidadão militar com a patente de Coronel, foi ofendido voluntária e corporalmente, por um Capitão e da ofensa resultoua morte haverá sempre, caso não tenha sido ainda condenado, responsabilização criminal e a pena é de 20 a 24 anos e o inverso também é valido (n.ºs 3 do artigo 18.º e 19.º). Mas, se um Coronel ofendeu voluntária e corporalmente outro Coronel e da ofensa resultoua morte, o Coronel que ofendeu está aministiado, pela Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, tudo porque o legislador “esqueceu-se!”do n.º 3 do artigo 20.º. Mais uma vez,os legisladores material e formal andaram muito mal, pois é nosso entendimento que o critério para exclusão deve ser, antes de mais, o bem jurídico penal protegido e no caso em concreto são os mesmos.

 


Concluindo, apesar do mérito, salvo opinião contrária,  a Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, no que diz respeito a estas matérias específicas, crimes sexuais e crimes contra a vida, de modo particular o n.º 3 do artigo 20.º da Lei n.º 4/94 de 28 de Janeiro (Lei dos crimes Militares), pode-se atacar a sua constitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, prevista no artigo 23.º da Constituição da República de Angola, na medida em que uma lei de amnistia não é uma lei de excepção e por consequência sujeita a uma interpretação restritiva. (Germano Marques D Silva, Direito Penal Português vol. III, 2008: 274 e Jorge Figueiredo Dias,Direito Penal Português: Consequências Jurídicas do crime, 1993: 685 ss).