Luanda - Acredita que tudo lhe pode acontecer, incluindo ser assassinado, tal como defende que Angola não é uma democracia. O jornalista, investigador e professor universitário Domingos da Cruz, que vem a Portugal esta semana lançar o seu novo livro, ‘Angola Amordaçada’, sabe do que fala, pois foi um dos 17 ativistas presos e condenados – e mais tarde amnistiados – por crimes de rebelião e associação de malfeitores. Tudo porque estavam a ler a obra anterior de Domingos, ‘Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura: Filosofia Política da Libertação para Angola’.

Fonte: Correio da Manha


Denunciar os ataques à imprensa e à liberdade de expressão em ‘Angola Amordaçada’ é o tipo de estratégia de resistência pacífica que descreveu no livro anterior, ‘Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura: Filosofia Política da Libertação para Angola’?
Entendo profundamente que é possível conciliar o engajamento cívico e as atividades acima expressas. Como exemplo, cito Jean-Paul Sartre, Noam Chomsky, Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire, Tariq Ali, Wole Soyinka, Frantz Fanon, entre outros. Ao mesmo tempo que me dedico à investigação, tento conciliar com a promoção e elevação da dignidade humana; tento fazer uma ciência que seja capaz de transformar a sociedade. Aliás, se o labor científico não catalisar mudanças para vidas individuais e coletivas melhores, não é ciência. Sendo certo que a ciência deve ser contextual e universal, deve propor soluções aos mais variados problemas. O contexto de Angola é de tirania, logo, ‘Angola Amordaçada’ é, de facto, o uso e a concretização de algumas das técnicas pacíficas de luta não violenta contra a opressão. Escrever livros enquadra-se nas técnicas números 9 e 122, das subcategorias da persuasão não--violenta e não cooperação política. Não podemos esquecer que existem 198 técnicas de luta não violenta.


Teme que também ‘Angola Amordaçada’ possa contribuir para que volte a ser detido e acusado de novos crimes contra a segurança do Estado?
A única lógica procedimental de um Estado autoritário, é a não lógica de Estado. Ou seja, prevalece uma espécie de vontade universal arbitrária do tirano. Sendo assim, é razoável inferir que tudo pode acontecer, incluindo um assassinato. O que acabo de afirmar não constitui qualquer fertilidade romanesca. Existem provas históricas e recentes bastantes de que aquele que detém o monopólio do uso da violência, riscou o império da lei para fazer reinar a sua vontade, somando assassínios.

O esquema de perseguição a jornalistas e condicionamento dos órgãos de comunicação social que descreve tem condições para permanecer igual após a morte ou abandono da vida política de José Eduardo dos Santos?
Esta questão é de elevada complexidade. No caso de José Eduardo dos Santos ser forçado a abandonar o poder por meio de uma revolução pacífica, que conduza um processo de transição democrática, pode dizer-se que há possibilidades de criar uma sociedade aberta e, consequentemente, os jornalistas hão de articular-se de acordo com as exigências civilizacionais do mundo contemporâneo. Outro cenário é: José Eduardo sai vivo ou morto, mas deixa o seu grupo a (des)conduzir o país, tal como acontece há mais de 40 anos. Um regime é um sistema; é uma cultura instalada. Com a sua morte ou saída, mas com o seu partido a manter o poder, nada mudará porque partilham uma visão do Mundo. Além do mais, existem muitos interesses instalados que não acabarão com a morte ou retirada de José Eduardo dos Santos. Para uma nova sociedade livre, incluindo no setor da imprensa, tanto o partido do grupo hegemónico e opressor, quanto o seu chefe, devem ser removidos do xadrez político nacional.


Em Portugal também houve, há muito poucos anos, um ex-primeiro-ministro que tentou promover a compra de órgãos de comunicação social que considerava hostis ao seu Governo. O Presidente de Angola faz aquilo que alguns governantes de países ocidentais gostariam de conseguir?
Não sei se os governantes de países ocidentais gostariam de conseguir. Mas posso afirmar que muitos atos dos governantes em qualquer parte do Mundo dependem essencialmente do grau de esclarecimento do povo. Existem atos, que talvez Obama ou outro governante ocidental gostaria de fazer, mas sabem que os seus povos não admitirão. O povo angolano é vítima, sim, mas é parcialmente cúmplice por tudo que assistimos em Angola. Nesta minha curta presença no Mundo, nunca vi um povo tão ambíguo quanto o angolano. Lamenta o nível de corrupção em que o país se encontra, mas ao mesmo tempo gostaria de ser amigo de pessoas envolvidas na corrupção. Clamam de júbilo perante lumpen [desinteressados na evolução política] radicais!


Consegue calcular qual é a percentagem de angolanos que têm consciência de que Angola está amordaçada?
Não me arriscaria a avançar percentagem. Seria falta de rigor na análise. A única ‘certeza hipotética’ que tenho é de que os angolanos parecem indiferentes ao sofrimento.


Os partidos da oposição fazem tudo o que está ao seu alcance para denunciar a situação ou, pelo contrário, estão acomodados?
Tecnicamente, Angola não tem oposição. Oposições existem em países onde há democracia. Nas tiranias existem grupos de existência com vista a pôr fim à opressão (o que não é o caso dos partidos ditos da oposição). Os partidos que estão no parlamento são instrumentos dos quais o déspota se serve para legitimar os seus simulacros eleitorais e manter o poder sem constrangimento ante parceiros internos e externos. É uma contradição chamar oposição partidária clássica, ao estilo de uma democracia, quando na realidade estamos perante uma ditadura. Hipoteticamente há quem diga que estar do outro lado e chamar-se oposição, em Angola, é um negócio. Estes partidos, que a pergunta chama de oposição, andam a dormir à sombra da bananeira!


Qual é a maior homenagem que se pode fazer aos jornalistas angolanos que não desistem de fazer o seu trabalho?
Sinceramente não sei!

Que homenagem se pode prestar às pessoas que colocam as suas vidas em risco real todos os dias?!
Aconselharia um jovem compatriota a tornar-se jornalista?
Não aconselho ninguém a seguir uma profissão. Nem a minha filha tento influenciar o que fará ou deixará de fazer no futuro. Esta posição decorre de uma convicção profunda no respeito da liberdade dos outros e da capacidade e grandeza de cada cérebro humano para guiar a pessoa. Tentar convencer em gesto de conselho é também uma forma de autoritarismo suave. Por isso recuso-me a este exercício. É óbvio que manifesto as minhas preferências, mas nunca digo: "Proponho que abraces esta profissão."


PRÉ-PUBLICAÇÃO DE ‘ANGOLA AMORDAÇADA’
por Domingos da Cruz


Escrever o que impede a existência de liberdade de expressão e de imprensa em Angola foi o objetivo de Domingos da Cruz, que vai publicar em Portugal ‘Angola Amordaçada’ (Guerra e Paz), livro em que não faltam exemplos concretos.

"Em Maio de 2010, foi retirada do semanário ‘A Capital’ a publicidade da empresa de telefonia móvel e Internet UNITEL. O que esteve por trás do acontecimento foi o facto de o referido jornal ter publicado algumas matérias críticas contra a filha do Presidente da República, Isabel dos Santos, proprietária da empresa. Ela é uma das mulheres mais ricas da África, segundo revistas especializadas em jet set. Detentora dos investimentos mais influentes de Angola, nomeadamente bancos, empresas diamantíferas, média, cimento, entre outras, o que lhe confere poder para controlar a imprensa que se sustenta na publicidade.


(...)
Em Dezembro de 2010, por ocasião da visita do presidente angolano à África do Sul, o jornal ‘A Capital’ entrevistou José Gama, residente na África do Sul, articulista, analista político e administrador do jornal online ‘Club K’, contudo a entrevista não foi publicada, tendo sido interditada pelos proprietários do jornal, sem se justificarem perante os redactores. A onda de censura no jornal não parou, pois os proprietários da publicação alteraram os destaques de capa em várias ocasiões; proibiram várias páginas de opinião; retiraram o cartoon, entre outras práticas. Por estes factos, os jornalistas manifestaram a intenção de se demitirem colectivamente.

(...)
A Media Investments, um grupo multimédia ligado a personalidades próximas do Presidente da República, com destaque para a sua filha, Isabel dos Santos, e generais da Casa Militar da Presidência da República, elaborou uma estratégia que visava silenciar os média privados críticos do poder dominante. Para isto, desencadeou uma campanha de aliciamento, cooptação de profissionais e compra dos jornais que não estavam sob o seu controle. Assim, adquiriram, num período de dois anos, três jornais críticos do regime: o ‘A Capital’, ‘Novo Jornal’ e o semanário ‘Angolense’. O resto já lhes pertence! Após a compra, os profissionais tidos como personas não gratas foram saneados e no semanário ‘Angolense’ destaca-se a expulsão do articulista Rafael Marques, que tinha uma página dedicada exclusivamente à corrupção.


(...)
No dia 22 de Outubro de 2010, foi esfaqueado António Manuel, jornalista da Rádio Despertar. Notabilizou-se no jornalismo angolano pelo programa ‘Ndjando’, de humor crítico. A tentativa de assassinato deu-se numa altura em que os Repórteres Sem Fronteira, no último relatório de 2011, classificaram Angola na 104ª posição, sendo o pior país da CPLP para o exercício do jornalismo. Alguns dias antes do sucedido, a ministra da Comunicação Social, Carolina Cerqueira, e o secretário para a Informação do MPLA, Rui Falcão, fizeram ameaças por causa do tom crítico contra regime, que a filosofia da estação emissora sustenta.

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No dia 23 de Outubro de 2010, a Polícia Nacional interditou e reteve o jornalista, activista cívico e investigador Rafael Marques, quando este se dirigia para a província problemática das Lundas, por motivos de trabalho. Os agentes que o retiveram justificaram que estavam a cumprir uma orientação do Governo central, porque sabiam que as suas reportagens resultavam sempre em embaraços para o poder.

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No dia 11 de Novembro de 2011 (dia da independência), foi preso o jornalista Manuel Augusto, da Rádio Ecclesia, quando se encontrava no Largo Primeiro de Maio a fazer a cobertura de uma manifestação que exigia esclarecimentos por parte do Presidente da República sobre alegados desvios de mais de 700 milhões de dólares das contas nacionais. O jornalista foi agredido e viu-se privado dos seus instrumentos de trabalho.

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Ricardo de Melo, ex-director do jornal ‘Imparcial Fax’, o primeiro jornalista angolano que foi morto, na história contemporânea do país, em virtude da sua actividade profissional, no dia 18 de Janeiro de 1995, quando subia as escadas do prédio que o levavam ao seu apartamento. Melo foi morto quando investigava algumas informações que, no entender das autoridades, eram incómodas. Até hoje, a polícia de investigação criminal não esclareceu a morte de Ricardo de Melo.

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Um ano depois, foi morto, no dia 30 de Outubro de 1996, António Casimiro e no mesmo período teve a mesma sorte Simão Roberto, jornalista a serviço da Rádio Nacional de Angola, morto quando saía da Presidência da República, da qual trazia informações bombásticas." lD