Cabinda  -  A cidade de Ponta Negra faz territorialmente parte do reino Vili do Loango. Diz a História que o nome deve-se aos portugueses que terão sido os primeiros europeus a aportar na sua costa no século XV. Foi mais precisamente em 1482 que exploradores vindos de Lisboa terão alcançado a costa do reino do Loango, o mais vasto no conjunto dos três reinos cabindeses. Contudo não se estabeleceram neste reino por várias razões, sendo as principais a busca do caminho para a India e porque andavam no encalço do mítico reino de Prestes João. Continuaram então a navegar mais a Sul ate à foz do rio Nzaidi (Zaire) a partir donde Diogo Cão estabeleceu contactos com o poderosíssimo reino do Kongo na localidade de Soyo. Durante cerca de um século os portugueses não mostraram interesse algum pelo reino do Loango, tendo mantido relações preferenciais com os kongueses mais afoitos à presença dos europeus.

Fonte: Club-k.net

A partir do século XVI começa oficialmente o comércio europeu na costa do Loango. Escravos, marfim e, posteriormente, o cobre passaram a ser os grandes atractivos dos europeus. Portugueses, Holandeses e Franceses passaram a disputar o monopólio do mercado. No século XVII os portugueses chegaram de estabelecer uma pequena colónia na actual cidade de Ponta-Negra. Entretanto, viriam mais tarde a ser escorraçados pelos Franceses desembarcados da corveta Sagitaire já no século XIX. O acto de Berlim (Fev 1885) encarregou-se de legitimar definitivamente o Loango nos domínios franceses. Segundo Ki-Zerbo, só por sorte os Portugueses conservaram o ‘’enclave´´ de Cabinda, pois, perdera os territórios a montante para os Franceses e a jusante (Muanda) para o rei dos Belgas, Leopoldo II. Esta pequena introdução é apenas para dizer que foi por este azar da História que Ponta-Negra não é Cabinda, sendo hoje a capital económica da República do Congo. A História mutilou Cabinda. Entretanto, os bavili de Ponta-Negra, os bawoyo do Muanda e os baiombi do Baixo Congo comungam da mesma identidade étnica.


O meu propósito é destacar a importância nevrálgica que esta cidade passou a ter para a população cabindense depois da independência de Angola e da anexação de Cabinda em 1977. Nasci na cidade de Ponta Negra num momento em que o Congo já era independente e o protectorado de Cabinda estava ainda sob a administração colonial portuguesa. Lembro-me que nessa altura Cabinda constituía um ´´celeiro´´ para a população de Ponta Negra. Os congoleses vinham frequentemente a Cabinda em busca de mantimentos. Não me recordo de ter visto o inverso. Cabinda era uma cidade pequena, airosa e abastada. O meu pai não hesitou em trocar a cidade de Ponta Negra pela cidade de Cabinda, em 1969. Toda a nossa família transferiu-se para Cabinda. Trocámos um país independente por um território colonizado. Não me lembro que algum membro da minha família se tivesse deslocado para Ponta Negra em busca de saúde ou de mantimentos.

As coisas mudaram logo com a independência de Angola em 1975. Cabinda foi arrastada para o lado errado da História passando desde então a ter um estatuto de província ultramarina de Angola, aliás colónia angolana. Enquanto as suas riquezas, sobretudo o petróleo, enchiam a cupidez dos novos senhores, os cabindas passaram a ser servos da gleba, contentando-se com as migalhas caídas do festim dos novos colonos. Por imperativos de sobrevivência, Ponta Negra passou a ser a salvação dos cabindenses. O mercado transfronteiriço do Massabi – denominado pelos fiotes «mbote ufua» (melhor morrer, por causa da insegurança militar nessa via) - cresceu rapidamente fornecendo os mais diversos produtos da sexta básica e artigos de vestuário. O porto de Ponta Negra passou a ser a passagem obrigatória das importações locais, absorvendo uma boa fasquia de capitais financeiros públicos e privados. Passados quarenta e um anos, a realidade dura e crua é que continuamos inaceitavelmente a depender de Ponta Negra em quase tudo.

Mas hoje chamo aqui nesta tribuna o sector da saúde em Cabinda, onde esse problema da dependência é mais visível e mais grave. Os cabindenses estão a viver os piores momentos da sua História neste capítulo. O sistema de saúde em Cabinda está moribundo. Falta quase tudo em termos hospitalares, para não falarmos aqui de questões mais complexas atinentes às estratégias do sector que reclamam por reformas profundas e às políticas públicas do actual executivo. Estamos a viver problemas sérios em termos de diagnósticos e em termos terapêuticos. Apenas alguns exemplos: em Cabinda foi diagnosticada à minha saudosa mãe uma hepatite. O médico pediu-nos que separássemos os pratos e talheres para evitar contágios em casa e que não havia cura. Dois dias depois, já em Ponta Negra, foi diagnosticado um cáncer no pâncreas. Diferença abismal. Três semanas depois a minha mãe acabou por sucumbir. Entretanto, já havia estado em Luanda várias vezes e nunca lhe tinha sido diagnosticado o maldito câncer.


O médico urologista cubano que assistiu ao meu malogrado pai nos momentos críticos da sua enfermidade receitou uma ampola injectável de Lucrin para ser aplicado de emergência. Em Cabinda não havia. Despachámos o meu irmão para Ponta Negra e depois de umas horas estava de regresso com o medicamento adquirido logo na primeira Farmácia que visitou. A minha esposa, ironicamente médica destacada no HCC, teve uma gastroenterite por volta das 03:00 da madrugada no dia 21 de Dezembro de 2015.


Agravando-se o seu estado e temendo que pudesse suceder o pior, acorremos ao HCC. Os colegas dela que estavam de banco confessaram que não tinham nada para assisti-la. Limitaram-se a passar uma receita que me foi entregue. Tive de rodear pela cidade àquelas horas da madrugada para adquirir soros e material gastável que o Hospital não tinha. Só então foi prestada assistência a esta médica. Ha dois meses, um sobrinho meu teve graves problemas gástricos e internou no nosso Hospital Central. Ja estava à beira da morte quando a familia decidiu rapidamente leva-lo à Ponta Negra. Diagnosticaram-lhe um tumor benigno e foi operado. Recuperou satisfatoriamente. Há poucas semanas um padre de Cabinda sofreu uma brutal agressão que o deixou à beira da morte. Por falta de condições em Cabinda, foi levado em situação de emergência para Ponta Negra onde foi socorrido e se evitou o pior. Recuperou e está neste momento em Cabinda. Uma sobrinha minha tinha queixas de enxaquecas frequentes e dores dos olhos. Foi ao oftamologista. Este receitou óculos. Mesmo com os óculos o problema não passava. Foi levada a Ponta Negra onde lhe foi diagnosticada uma mancha branca que estava a crescer e que podia impedir a visão. Começou por lá os tratamentos e a mancha desapareceu.


Ela está bem e não usa óculos. Os próprios médicos, por uma questão de honestidade, recomendam os pacientes a irem à Ponta Negra. As mulheres gestantes com algumas possibilidades financeiras fogem da nossa maternidade como o diabo foge da cruz e vão ter os partos em Ponta Negra, na Namibia, na Africa do Sul e na Europa. Quem não pode, morre ela e o seu bebé. As mortes maternas em Cabinda são uma realidade assustadora que se tenta encobrir, mas factos são factos e contra factos não há argumentos. Mas aqui é preciso relevar o desempenho dos médicos que mesmo em condições tão dificeis vão fazendo alguns milagres no deserto. Infelizmente nem todas acabam por ter esta graça. Outro grande problema tem a ver com a ausência injustificável de serviços de hemodiálise em Cabinda o que faz com que os pacientes com problemas de insuficiência renal tenham de deslocar-se a Ponta Negra ou Luanda para tentar estabilizar ou para começar os tratamentos de hemodiálise. Alguns foram tentar a sorte em Portugal ou na África do Sul. Há casos registados de pacientes nestas condições transferidos para Luanda onde são literalmente abandalhados, pois nem sempre têm familiares por perto para dar assistência.

Diante deste cenário real – não estou a dramatizar! – surgem algumas perguntas: o que é que os congoleses têm que nós não temos? Em quê são eles melhores do que nós? As autoridades governamentais não têm conhecimento dos gravíssimos problemas que enfermam o sector da saúde em Cabinda? Se sabem por que não reagem para mudar este quadro tétrico? Falta-nos dinheiro, inteligência ou vontade? Certamente cada leitor terá a sua resposta para estas questões. Cá comigo vejo um problema muito mais profundo: a desumanidade dos governantes. Está claro que estão pouco se marimbando que morra gente contanto que se mantenham no poder e tenham os seus tachos garantidos. Mais do que uma crise financeira estamos diante de uma crise moral, de falta de valores fundamentais e de referências éticas na política e na governação. Eles próprios não acreditam no sistema de saúde que criaram. Ao mais pequeno melindre desandam rumo às melhores clínicas do estrangeiro.

Uma governação misógena e sem moral é um autêntico desastre humanitário. Estou a criticar construtivamente porque quero que as coisas mudem. Não tenho outra pretensão. Não faço politiquices nem fofoquices. É preciso que tenhamos em Cabinda aquilo que vamos buscar ao Congo. É urgente que se acabe com esta dependência indesejável e injustificável. Não é aceitável que a maior unidade hospitalar de Cabinda tenha dificuldades de oferecer aos seus utentes um simples hemograma, uma radiografia ou um TAC É necessário e urgente reverter o quadro desse ‘’escândalo’’ chamado Hospital Central de Cabinda. Enquanto isso não acontecer apelo aos governantes um pouco mais de sensibilidade humana e maior responsabilidade na gestão do sector da saúde.