Luanda - A Grande Reportagem da SIC sobre a pobreza em Angola capitalizou a atenção dos angolanos na noite de quinta-feira. Quem não a viu foi atrás das gravações. A matéria, de enorme repercussão, sobressai entre os assuntos pesquisados pelos internautas nacionais. “Um país rico com 20 milhões de pobres” é o título da reportagem divulgada pelo proeminente canal privado de televisão que integra um dos mais poderosos grupos de comunicação de Portugal. A SIC realçou o pior do país que, segundo o censo de 2014, conta aproximadamente 25 milhões de habitantes. Doeu ver estampada a indigência quase generalizada em alto contraste com a corrupção e o elevado consumo per capita de champanhe. De uma forma ou de outra os telespectadores ficaram tocados pelo discurso das vozes discordantes. A fotografia de uma Angola raramente vista nos ecrãs infligiu um profundo choque de realidade. A dimensão do impacto dividiu os angolanos.

Fonte: RA

A seguir a exibição da reportagem o porta-voz da Embaixada de Angola em Portugal esteve na SIC Notícias para a comentar. Comportou-se como o faz na generalidade o governo angolano. Na defensiva. Comunicou mal, insistindo em desculpas desgastadas como a guerra, cujos efeitos nefastos todos conhecemos. Falhou redondamente na tentativa de defender o quase indefensável, apesar de ter ficado a impressão de se pretender explorar os aspectos negativos de Angola. Os números relativos à pobreza podem não ser fiáveis. Os meandros da educação superam a falta de latrinas e a aprendizagem condicionada pela conjuntura desfavorável. A radiografia rigorosa do sector deveria incluir outras visões de quem domina o “metier”. A reportagem deixou de lado o contraditório. Teve a sua dose de parcialidade. Fez convergir o foco nas misérias de Angola que, diga-se em abono da verdade, não são poucas. Faltou mostrar o angolano para além da pobreza, da descrença e da decadência.


Os números pareceram exagerados devido à falta de fiabilidade de fontes cruzadas. A SIC explorou um ângulo da verdade e não o fez por falta de competência. A reportagem terá sido concebida com esse propósito. Os repórteres saíram de Portugal com a pauta bem desenhada. Missão: investigar os meandros da pobreza. Só para desmistificar, é normal a grande reportagem rondar questões como a prostituição, tráfico de drogas e criminalidade. Por exemplo, os programas “Panorama BBC” e “60 Minutos”, apesar das agendas diversificadas, afloram muitas verdades insuspeitas sobre inúmeros países.


Não esperava que Rafael Marques, Alexandra Simeão ou MCK fizessem análises diferentes. O primeiro está comprometido com o Jornalismo investigativo. Elegeu a busca de “furos” do governo, a corrupção e a família presidencial como o foco das suas pesquisas. A filha da eterna “Mamá Coragem” limitou-se a repetir o que sempre afirmou e o rapper que mistura inteligência e criatividade em forma de vibrante protesto foi fiel a ele. Portanto, está para se justificar o espanto. Mas a reportagem vai continuar a dividir opiniões. Vai ainda alimentar fóruns de discussão e rebuscadas teorias de conspiração. Há quem sugira a inclusão em manuais didácticos sobre as mil maneiras fazer uma reportagem.


Muitos críticos consideram a reportagem preconceituosa porque imbuída de recados do género “41 anos depois da saída dos colonos os pretos continuam na mais absoluta miséria”. Ou seja, estamos independentes, mas precisaríamos de “missões civilizadoras” para nos livrarem de novos tiranos. Ainda que assim fosse, a reportagem visou fundamentalmente o público português. À parte a longa lista de considerandos, vamos ater-nos aos factos. Quais são as mentiras que a televisão portuguesa reportou? Ou as verdades forjadas?


Vivemos circundados pela pobreza. Ver miúdos a correr atrás de autocarros pelas estradas de Angola a implorar trocados para comprar pão dilacera a alma. Desnecessário ir à Angola profunda para encontrar gente a viver abaixo do limites da linha da pobreza. Ao lado de cada condomínio de luxo parcialmente desabitado multiplicam-se as bolsas de desamparados. Se um décimo dos quase seis mil milionários e percentagem similar de cidadãos catalogados na suposta classe média conversasse com os seus empregados teriam uma leve percepção da realidade.


Deve ser difícil para alguns milhares entender a linguagem do povo que julga “confartação” confraternizar com legítimo espumante francês nas festas estampadas em revistas cor-de-rosa onde os novos-ricos ostentam bens. Convinha baixar os vidros fumados dos carros topo de gama para verem a falange de abandonados pela sorte. Pelo valor de um pequeno lote de garrafas de vinho encomendado a preço de ouro seria possível apetrechar bibliotecas inexistentes em muitas escolas. Eles não fazem ideia do grau de precaridade do sistema nacional de saúde reflectido nos hospitais públicos porque estão em condições de pagar caríssimos procedimentos hospitalares no estrangeiro. Apurar o número de crianças nascidas em Portugal, África do Sul e Brasil, assim como os respectivos apelidos e funções dos progenitores resultaria numa belíssima peça de investigação jornalística.


Em Angola as manifestações são reprimidas e os aspirantes a manifestantes desencorajados com argumentos sustentados pela força. A reportagem da SIC só mostrou as assimetrias. Os eventuais exageros não anulam a realidade. Se toda a comunicação social angolana reportasse com frequência os factos que o canal privado português condensou ao longo da polémica reportagem estaríamos menos chocados por termos sido ferozmente atingidos na nossa honra de nação independente. Podemos até desejar. Mas as peneiras ainda não tapam o sol.