Luanda  - Estas linhas têm um escopo modesto: demonstrar e esclarecer que a troca de presidente não significa transição política. Para esse intento, servir-me-ei das ferramentas epistemo-empírico sobre a transição. Ou seja, apresentarei uma resenha brevíssima sobre a Filosofia e Teoria Política da Transição, seguido de exemplos da realidade global. Para tal, usarei autores como Robert Dahl, Samuel Huntington, Guillermo O`Donnel, Phileppe Schmitter, Francis Fukuyama e Nelson Domingos. Este último, é um transitólogo angolano, cujo pensamento pode ser compulsado no seu livro «Transição pela Transação».

 
Fonte: Por dentro de Africa
 
A justificativa e as motivações por detrás deste artigo, fundam-se no facto de há três semanas, a imprensa nacional e internacional conduzir uma narrativa segundo a qual, a «possível» substituição do tirano-mor por Jean Laurent (João Lourenço), é o início da transição política. Tecnicamente é um erro. Sucessão presidencial não é transição de regime. Para o nosso caso, mesmo a sucessão presidencial é mera hipótese!
 
 
Em política, as percepções são mais relevantes do que os factos. Atmosfera fértil para a promoção e prática da pós-verdade. O parecer é mais significante do que a realidade. Este princípio é passível de manipulação para o controlo e condução da «ordem do discurso» e do pensamento, como diria o velho Michel Foucault. 
 
 
Tendo como referência a história do grupo hegemónico e opressor, sabemos que o seu percurso é «entupido» de manipulação. Desta premissa histórica e do banditismo de Estado, pode-se inferir que esta atmosfera, esta ordem narrativa é da responsabilidade parcial deste grupo. Não duvido que muitos deixaram-se embalar por distração ou desconhecimento do «fenómeno hipotético» em curso.
 
 
A participação dos actores da sociedade civil nesta deliberação difusa e improvisada nas redes sociais, salvo um argumento melhor, para mim demostra o seguinte: falta de uma agenda própria para a concretizar. Toda a pauta lançada como isca para manipulação e distração, leva as pessoas e organizações sem agenda a correrem para verter alguma doxa sobre o assunto, perdendo forças emocionais e físicas. Perdendo o que é irrecuperável: o tempo para salvarmos as nossas vidas, o futuro e devolver o país aos angolanos.  
 
Provavelmente alguém dirá — você também está na mesma onda. Deixas-te mover por esta fumaça — e isso está evidente por escreveres este artigo.  
 
 
A minha resposta é não. Não estou na onda. Escrevo este artigo motivado pela seguinte razão: ajudar a pôr fim nesta manipulação e o equívoco instalado em que se confunde transição e sucessão. 
 
As principais teorias da transição  
 
A problemática da transição política, tornou-se objecto de estudos desde a década 50 do século XX. As pesquisas têm sempre em vista duas categorias em oposição e irremediavelmente irreconciliáveis: regimes não democráticos e regimes democráticos. A transição nos estudos, se referem essencialmente a transição do autoritarismo, do totalitarismo, da ditadura ou de outros regimes não abertos, para a democracia. Para a sociedade aberta, diria Karl Popper.   
 
 
As teorias da transição são inúmeras. Mas elas podem ser condessadas em três grandes blocos: teorias funcionalistas, teorias da transição propriamente ditas e dimensão internacional da transição para a democracia. 
 
 
As teorias funcionalistas tentam explicar e compreender as condições e razões pré-existentes que viabilizam a transição de um regime não democrático para a democracia. Os funcionalistas entendem que a tradição, o nível de desenvolvimento económico e social, o nível de exercício da cidadania e a cultura política, influenciam na transição para a democracia ou não. 
 
 
As teorias da transição propriamente ditas fazem uma reviravolta paradigmática a partir dos anos 70. A sua análise sobre a transição, não está focada nas condições pré-existentes como sejam a cultura, o grau de bem-estar e a economia, mas sim, os actores em conflito e que desencadeiam a transição, dependendo do contexto: os militares, a elite civil opressora, a oposição e a sociedade civil. 
 
 
Embora Samuel Huntington não foi o percursor da teoria da transição, mas nos anos 90, dando continuidade desta segunda perspetiva teórica (com distanciamento e originalidade), terá feito um notável estudo comparativo —  The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century (1991) —Por meio do qual elaborou «modelos analíticos agrupando os diversos casos [de transição], tendo por base as suas semelhanças e diferenças no modo como se processou a mudança de regime», afirmam Lima & Sá. 
 
 
Os modelos analíticos são os três tipos de transição, na perspetiva de Huntington: Transformação: notando que a ditadura é insustentável para os seus interesses, a elite que detém o poder desencadeia a transição, controlando todo o processo e coloca as pedras a seu bel-prazer, preservando os seus intentos. Transtituição: é uma transição negociada entre a oposição e a elite que detém o poder. Em determinados contextos, a sociedade civil também participa na negociação que visa a transição.
 
 
Substituição: esta transição acontece quando a oposição política derruba a elite que detém o poder e leva o país a democracia. Há casos em que é a sociedade civil que desencadeia esta derrocada do opressor. Noutros casos, há unidade entre a sociedade civil e a oposição política no derrube da elite e em seguida instauram a democracia.  
 
 
Outra discussão paralela sobre o problema em debate é a dimensão internacional da teoria da transição. Entre muitos pesquisadores que trabalharam esta perspetiva, estão Geoffrey Pridham. Segundo ele, «o contexto internacional é a dimensão esquecida no estudo da transição democrática. […] Contudo, o contexto internacional da transição […] do autoritarismo para a democracia liberal é claramente uma dimensão com importância, como os três exemplos regionais da Europa do Sul, da América Latina e, mais recentemente, da Europa do Leste demonstram, ainda que de modos diferentes. Todos estes exemplos revelam […] o impacto directo, ou influência indirecta, sobre a democratização das organizações internacionais, de uma ou da outra superpotência ou outros estados da mesma região, e das organizações não-governamentais».
 
 
Em síntese, os actores internacionais como sejam as ONGs, Estados e organizações internacionais, influenciam na transição de regimes não democráticos para a democracia. O caso Sul-africano e Polonês são exemplos insofismáveis para sustentar a tese que vimos evocando. 
 
Para além das teorias acima expressas, eu entendo que podemos explorar a dimensão pedagógica da transição. Se a sociedade civil, os Estados e as organizações internacionais influenciam para a transição de regime, esta influencia funda-se em várias acções, entre elas a educação formal e não formal —aqui está a dimensão pedagógica. Antes da revolução egípcia e tunisina, a sociedade civil e em alguns casos, em parceria com organizações internacionais, levaram acabo projectos de educação para a cidadania, educação para os direitos humanos e educação para a democracia. Ensinaram ao povo que a democracia é um direito ao qual não deviam abdicar, mas lutar por ela.
 
 
Quando o povo atingiu o que Kant chamou o «esclarecimento», desencadearam a primeira fase da transição para a democracia. 
 
 
Nunca tomei contacto com qualquer estudo sobre transições no sentido inverso: da democracia para a ditadura, sultanismo, totalitarismo, fascismo ou outro tipo de regime não livre. 
 
 
Sendo que a transição é a passagem de uma margem para outra, de forma análoga, ela é a passagem do coma para a saúde plena. Mas também podemos transitar da saúde para o coma. Neste sentido, lembro-me da transição inversa que sucedeu na Alemanha. Hitler levou o país da democracia para o totalitarismo fundado na pureza rácica. 
 
 
Outro caso histórico digno de realce —no que a transição inversa diz respeito — é do Irão. Por meio de uma intervenção dos EUA e do Reino Unido, deram um golpe, destituíram o primeiro-ministro democraticamente eleito, Mohammad Mossadegh, e puseram fim à democracia. Um facto que se repercute até aos nossos dias.  
 
 
Existe ainda a transição dentro do quadro socialista e marxista. Para esta filosofia, a transição consiste em migrar do capitalismo para o comunismo. De uma economia de livre iniciativa personalista, para uma economia sob tutela do governo. No plano político, a liberdade individual é absorvida no colectivo. Doravante, a transição consiste no seguinte: o cidadão passa a ser servo do Estado e não o contrário.
 
 
A corrente neomarxista olha a transição noutro ângulo: como a passagem da ditadura da classe burguesa para a social-democracia. (Cf: BAMBIRRA, 1993). 
 
 
A transição é uma questão fecunda. Tão seminal que também atraiu os literatos — como é o caso de Fernando Pessoa — que no diálogo O Banqueiro Anarquista, defende a tese de que a sociedade livre só se realizará por meio do anarquismo. Para chegar até ele há uma transição da opressão, passa pelo socialismo, pela democracia e vai mais longe: anarquismo. Este é o único porto seguro do libertarianismo onde todas as ficções sociais serão derrubadas e haverá a expressão do individualismo manifesto no exercício pleno da liberdade. 
 
 
Na obra, o Fim da História e o Último Homem, Fukuyama (não é transitólogo), mas apresenta uma proposta que arriscaria chama-la transição universal. Porque para ele, o mundo sedento de liberdade, caminha todo para a construção de nações e países liberais no âmbito político, social, económico e religioso. Somados teremos o fim da tirania em todo globo.
 
 
 As críticas à visão de Fukuyama sobre o fim da história se resume em uma categoria: utopia.   
 
 
Argumentos suplementares
 
 
Por mais descredibilizado, sem legitimidade e estado de agonia em que se encontra um regime, não acontecerá a transição, caso não haja pressões endógena e externa de outros actores. Talvez os actores internos são mais relevantes. Mas a realidade demonstra que actores exógenos são igualmente importantes, dependendo dos contextos. A teoria sobre a influência internacional na transição e a minha visão sobre a dimensão pedagógica da transição, confirmam a importância da variável externa. 
 
 
Para Angola, como podemos falar em transição, se ainda não se cumpriu sequer a primeira fase para a transição? Quem são os actores capazes de desencadearem a transição? 
 
 
De acordo com a literatura, existem três etapas para a concretização da transição: i) dissolução/desmantelamento do regime; ii) criação e implementação da democracia; e iii) consolidação do novo regime democrático.
 
 
Outro caminho para um «parto transicional» menos doloroso é a liberalização que começa no plano jurídico e passa para a prática. Liberalização na economia, na imprensa, na educação, na cultura e na ciência, na política com eleições livres, honestas, limpas e competitivas, justiça independente, etc. Mas este método pode afigurar-se perigoso quando a elite política opressora é mafiosa, banditesca e manipuladora. Onde reside o perigo? Em determinados momentos da história, os regimes autoritários, quando se vêm em agonia por meio de pressão insustentável, para descomprimir a pressão e alcançar o alívio, finge algumas medidas de abertura liberal, mas sem qualquer intenção de pôr fim à ditadura. Simulam julgamentos justos, condenam alguns delinquentes do governo, criam programas para entrevistar alguns críticos da sociedade civil, chefes e líderes da oposição, fingem diálogos seguimentados com camponeses, jovens e outros grupos, criam programas na imprensa para o povo desabafar e pensar que agora está a viver em democracia…
 
 
O`Donnell e Schmitter argumentam que «o regime autoritário pode iniciar o processo de liberalização e tolerar alguns espaços para acção individual e colectiva, na esperança de reduzir as pressões, obter informações e ajuda de que precisa, sem se tornar responsável perante a sociedade nem se submeter à eleições honestas e competitivas» (apud ANTÓNIO, 2015, p.74).   
 
 
Já pensou se esta nevoa da sucessão, confundida com transição, lançada pelo déspota, visa esquecer o caso de grande relevância chamado nomeação ilegal de Isabel dos Santos?!
 
 
De acordo com Greene e Elffers, na obra As 48 Leis do Poder, lei 3, sob a epígrafe oculte as suas intenções, afirmam: «mantenha as pessoas na dúvida e no escuro, jamais revelando o propósito de seus actos. Não sabendo o que você pretende, não podem preparar uma defesa. Leve-as pelo caminho errado até bem longe, envolva-as em bastante fumaça e, quando elas perceberem as suas intenções, será tarde demais.» (p.4, s.d). 
 
 
Caro leitor, preciso explicar isso? Esta não é a realidade nua e crua de Angola há mais de quatro décadas? Não é isso que este déspota faz com seu avó/ô, seu pai/mãe, você e agora os seus filhos/as? 
 
 
Reflita sobre as fases por que deve passar a transição e verifica, se em Angola há alguma transição em marcha. Se alguma vez tivemos transição, podemos citar dois exemplos de transição, mas nada têm que ver com a travessia da opressão para a liberdade. Em 75 aconteceu a transição de um regime colonial exógeno e branco para a endocolonização. Em seguida, em 1991, com a continuidade e mix da endocolonização, houve uma ligeira metamorfose no corpus jurídico opressor com laivos liberais para o inglês ver. Em 2002 aconteceu a transição da guerra para a pax romana.  
 
 
Num diálogo mantido com uma cientista sul-africana, concluímos que a retirada do chefe de uma organização criminosa, não põe (necessariamente) fim à cultura dantesca do agrupamento maledicente. Existem provas insofismáveis — Fidel Castro (Cuba), Gnassingbé Eyadéma (Togo), Kim Jong-il (Coreia do Norte), Hu Jintao (China), trocas entre Putin e Medvedev (Rússia) — mas os regimes continuam semelhantes ou piores. 
 
 
Existe uma lista enorme para sustentar a minha tese fundada no realismo sociopolítico e em inúmeros estudos sobre transição que vêm sendo produzidos há mais de seis décadas. Classificar uma sucessão presidencial, que nem sabemos ao certo se vai acontecer, como sendo transição política, não tem outro nome se não, ignorância monumental.   
 
Hipoteticamente, só haverá transição, caso sejamos capazes de desmantelar toda máquina, tal como sucedeu no Burkina Faso e na Tunísia. 
 
Mas não podemos deixar de admitir, que caso a enfermidade provável, retire o animal político em causa, da presidência, talvez isto precipite alguns abalos. Positivos ou não, não sabemos! Por isso, «devemos ter em conta o inesperado», como diria Schmitter. Alem do mais, política não é matemática. No quadro de uma teoria política da anormalidade, que admite a nossa incapacidade de verificar todas as variáveis da realidade, leva-nos a admitir que qualquer surpresa é possível. Mas para já, de acordo com as ferramentas que a ciência dispõe, não há nenhuma transição em marcha. Nem no país, menos ainda no partido-estado-opressor. 
 
 
Contudo, a compreensão da transição de regime pressupõe dominar (como) ela acontece (formas); que actores podem desencadear a transição (quem) e que razões fundam e desencadeiam a transição (porquê). Desse ponto de vista, está claro que estamos no marco zero. 
 
 
Breves palavras sobre a hipotética escolha de Jean Laurence
 
 
Jean Laurent (João Lourenço) — faz parte do grupo que saqueou o Banco Espírito Santo Angola — terá abocanhado $30 milhões de dólares, entre outras barbáries: há um ano ameaçou os manifestantes nas vestes de Ministro da Defesa, é autoritário, como confirmam aqueles que convivem com ele e ao longo de décadas, defendeu o regime de corpo e alma. 
 
 
No dia 10 de Dezembro do corrente ano, terá proferido um discurso que revelou insuficiências cognitivas graves e falta de visão para o futuro. O homem não é progressista, ao contrário, faz parte da linha dura da máquina.   Este não é nenhum Frederik de Klerk para desencadear a metamorfose do sistema.
 
 
Uma questão para reflectir: O facto do chefe de um agrupamento criminoso abandonar o cargo e nomear algum colaborador para substitui-lo, este último que sempre defendeu a opressão, torna-se bom porque agora é o chefão? 
 
 
Ao contrário do que alguns entusiastas ingénuos vão dizendo, o substituto deverá mostrar ao grupo que poderá manter os interesses cleptocráticos. Precisará demonstrar que é digno da missão que lhe foi confiada: manter a máfia! 
 
 
Conclusão provisória
 
 
Não estamos perante uma transição. Estamos sim, diante de uma sucessão hipotética. Talvez o caro leitor dirá: «Não é hipótese porque há um documento que confirma». Nas tiranias, o alfa e ómega é o tirano. Só ele poderá confirmar com o seu afastamento. Mesmo que fale, nas palavras do homem não acredito. Isto lembra-me o que diria a poetisa moçambicana, Sónia Sultuante: «queria calar a minha boca/ para não ter vergonha da minha alma.» Mas o tirano não pára de falar. O déspota não tem vergonha porque não sabe o que é a vergonha! 
 
 
Não se esqueça que as tiranias e seus chefes «escarram e pisam» sobre as constituições. Um papel cuja proveniência não podemos aferir, não pode ser razão suficiente para uma consciência crítica fazer fé nele, se nos atermos ao contexto.
 
 
De acordo com a Friends of Angola (FoA), a fotografia actual de Angola é esta: «o quadro desolador dos direitos humanos em Angola, funda-se numa cultura política autoritária, sociedade política fechada, nível baixo de liberdade económica e monopólio inaceitável, corrupção exacerbada, sector judicial capturado pelo Partido-Estado, terrorismo de Estado em aprofundamento, sector de defesa e segurança ao serviço deste banditismo estatal, imprensa manipulada, liberdade religiosa condicionada e Igrejas ao serviço da tirania, pobreza crescente, desemprego galopante, oposição cooptada, sociedade civil perseguida e incapaz de articular um projecto de libertação colectiva. Em definitivo, os direitos humanos são completamente desprezados.» 
 
 
Pense nessa análise da FoA, no sentido contrário. Quando tudo acima expresso for o oposto, podes afirmar que estamos em transição e que em seguida teremos o que Robert Dahl chamou «poliarquia». Por outras palavras, democracia real. A que J. Dewey chamou «modo de vida». 
 
 
Aqui fica!