Luanda - Faz hoje 14 anos desde que foi publicada pelo «Angolense» a conhecida matéria jornalística que escancarou, pela primeira vez, os nomes dos detentores de fortunas em Angola. Numa altura em que a riqueza no país ainda se constituía em rigoroso tabu, o jornal indicou sem pejo que ela havia mudado de cor.


* Severino Carlos
Fonte: Semanario Angolense

O que acontece quando, num país de falsa liberdade democrática, um governante acha que foi injuriado e caluniado por um jornal? A resposta não tem ciência alguma. O mais comum é vermos o governante supostamente difamado, deixar-se embriagar pelo poder e pela ira, e recorrer à arma que melhor conhece na relação com os jornalistas: punir com a prisão.


Foi o que há 14 anos passou pela cabeça do general Kundi Payhama, na altura ministro da Defesa, quando, a 11 de Janeiro de 2003, saiu a matéria A RIQUEZA MUDOU DE COR: OS NOSSOS MILIONÁRIOS, publicada pelo «Angolense», jornal percursor do que menos de dois meses depois seria o «Semanário Angolense».


A edição havia saído à rua num sábado. E já na 2ª feira a seguir, em plena ressaca do polémico artigo jornalístico, o ministro da Defesa investia sem hesitações contra a publicação. Furibundo, deixou o seu gabinete, na zona da Cidade Alta, com os seus batedores de trânsito de sirenes ligadas e um punhado de soldados da sua guarnição. Abriu caminho pelas ruas congestionadas da baixa de Luanda até parar à zona do Cruzeiro, onde se localizava a sede do «Angolense».


Todos os que se encontravam na redacção do jornal àquela hora começaram por sentir uma estranha sensação no estômago quando ouviram as sirenes e o ribombar das motos dos batedores deterem-se mesmo à porta da publicação. Imediatamente foram tomados de suores frios ao verem um imperial e marcial ministro da Defesa apear-se da viatura protocolar, com soldados de armas em punho à sua volta, e, com cara de poucos amigos, dirigir-se exactamente às instalações do jornal onde perguntou se Graça Campos estava.


A reunião entre o ministro da Defesa e Graça Campos, na altura editor-chefe da publicação, decorreu à porta-fechada e não levou muitos minutos. Kundi Payhama manifestou o seu profundo desagrado e avisou logo aí que se reservava o direito de mover um processo judicial contra o jornal. E foi o que sucedeu.


O nome do general Kundi Payhama, figura emblemática do regime e até então tida como uma das suas referências morais no que à acumulação de riqueza diz respeito, constava de uma lista de 59 personalidades referidas na matéria em causa como sendo detentoras de fortunas avaliadas, cada uma, em não menos de US$ 50 milhões. Aí estavam, finalmente, os milionários de Angola, para conhecimento dos demais cidadãos.


Na verdade, a publicação dessa lista não resultara de qualquer exercício de adivinhação, prestidigitação ou de tiro ao alvo. Hoje já se pode revelar que nessa «operação» entraram fontes que estão no «insight» do próprio regime, com conhecimentos bastante consistentes da forma como se estava a processar a chamada acumulação primitiva de capital em Angola.


Esse exercício foi facilitado igualmente pelos dados que a própria realidade do país tratara de produzir, baseada em abundantes e crescentes sinais exteriores de riqueza que se vinham manifestando e que só mesmo diante de miopia e hipocrisia se poderiam ocultar. Sabe-se, por exemplo, de um episódio ocorrido naquela época, em que um membro do Governo, com a maior desfaçatez, juntou os amigos mais íntimos numa «festança» e com eles comemorou o facto de a sua conta bancária ter entrado na casa dos US$ 100 milhões.


Na realidade, quando a matéria saiu, dados perfeitamente verificados e expostos aos olhos do universo político e económico do país, já indiciavam a existência de grandes fortunas que foram sendo acumuladas ainda com Angola a viver um insano conflito armado. Bastava, para tanto, dar-se uma espreitadela às inúmeras denúncias que ciclicamente eram veiculadas pela imprensa doméstica e internacional. E o que o «Angolense» também fez na altura foi socorrer-se e fazer um «apanhado» de todos os dados que estavam dispersos por várias publicações estrangeiras e nacionais.


Coligidos estes dados, e com as fontes do jornal a confirmarem-nos, com uma margem de erro relativamente pequena, foi possível então chegar à conclusão de que havia já nessa época pelo menos 20 personalidades detentoras de fortunas contabilizadas em mais de 100 milhões de dólares norte-americanos por cabeça, repartidos entre activos financeiros e patrimoniais. Esta era a «super-liga», pois a maioria dos milionários figuravam numa «segunda divisão» em que as riquezas acumuladas estavam estimadas em menos de US$ 100 milhões, mas não inferiores a US$ 50 milhões.

 

PROCESSOS EM CATADUPA

 

Depois de se ter reunido com Graça Campos, o ministro da Defesa – indicado na lista do «Angolense como tendo uma fortuna avaliada em não menos de US$ 50 milhões – tratou de cumprir a ameaça de que moveria um processo judicial por injúria e difamação. E não é que moveu mesmo? Isto depois de o governante se ter desmanchado em declarações públicas negando ser detentor de riqueza. Chegou mesmo às raias de afirmar que além do seu salário como ministro da Defesa apenas possuía uma pequena casa na Huíla que herdara de sua mãe.


Kundi Payhama foi apenas o primeiro a trazer a DNIC à liça. A ele seguiram-se outros membros da «nomenclatura», nomeadamente Dino Matross, na altura vice-presidente da Assembleia Nacional, e Mário António, membro do BP do MPLA e administrador da GEFI, holding de negócios desse partido. Alinharam também na purga a Graça Campos, que já então fundara o Semanário Angolense, os processos intentados por Mário Palhares, PCA do Banco Africano de Investimentos, e Faustino Muteka, ministro da administração do Território.


Todos estes processos judiciais, que na realidade tinham o intento de condicionar psicologicamente os jornalistas de um modo geral, inibindo-os de denunciar os desvarios dos novos-ricos em ascensão no país, acabaram em tribunal por fracassar. Graça Campos foi absolvido em todos eles.


Mas a nascente classe de endinheirados do país é que, pelos vistos, passou a assanhar-se ainda mais na exibição das fortunas sem causa, com manifestações escandalosas de fausto e opulência. Alguns meses depois de ter jurado que apenas tinha como propriedade a casinha que sua progenitora lhe deixara, o mesmo Kundi Payhama já se mostrava, tranquila e olimpicamente, em condições de abrir um banco. Foi travado superiormente por quem lhe lembrou a irracionalidade e contradição em que incorreria caso abrisse um negócio próprio para milionários.


Mas estes negócios e outros, como jogos de fortuna e azar, acabaram por vir à superfície, mais tarde, quando a poeira levantada pelo «Caso Milionários» já havia assentado e todos compreenderam, tacitamente, que a riqueza em si mesma não constituía drama algum. De resto, na altura, o empresário Mello Xavier, em sentido contrário às reclamações manifestadas pela generalidade dos integrantes da lista, veio a público dizer que possuía muito mais do que os US$ 100 milhões que lhe haviam sido atribuídos.


De facto o que está em questão é que 14 anos depois, a falta de pudor na exibição da riqueza aumentou em proporção directa com as desigualdades entre os poucos que vivem, que nem nababos, no fausto e na opulência, e a multidão dos que quase nada têm. Este é realmente o drama de que enferma o país e precisa de ser eliminado.


BASTIDORES DE UMA MATÉRIA QUE TANTA CELEUMA CAUSOU


«Se cada uma das 59 personalidades supostamente mais ricas de Angola doassem a 10ª parte das respectivas fortunas, o país poderia reunir um montante superior a US$ 400 milhões. Com este dinheiro, obviamente Angola não dispensaria a ajuda da comunidade internacional. Mas poderia, muito seguramente, deixar de andar de mãos estendidas à caridade do mundo para que este dê a sua contribuição nas tarefas imediatas da reconstrução nacional.»


Assim abria a matéria que tinha no epicentro a nascente classe milionária do país. Hoje que estão decorridos 14 anos, não temos o menor pejo em reconhecer que esse texto não foi propriamente exemplar no que diz respeito ao cumprimento de algumas das regras de ouro do jornalismo. Principalmente quando a bitola for a obrigatória recomendação de se ouvir as partes envolvidas na descrição de uma estória jornalística. Ao redigirmos o artigo em causa, não tivemos tempo de respeitar a conhecida regra do contraditório.


Mas, bem analisado, não é por aí que o gato vai às filhós. O mérito dessa matéria esteve na novidade e na ousadia. Ou na forma como se escancarou um facto cujo valor-notícia não se resumia apenas em satisfazer uma espécie de «voyeurismo» da nossa sociedade, ávida por saber quem eram afinal as figuras que integravam o restrito clube de novos-ricos que surgia no país.


A sua importância foi também de cariz sociopolítico. Com ela demarcou-se inegavelmente um «antes» e um «depois» em relação à problemática da assunção da riqueza no país. Até então vista como um tabu herdado de tempos de orientação comunista como ideologia do Estado, a partir daí, ela, a riqueza, passou a ser encarada não apenas como um facto consumado, mas acima de tudo como uma necessidade estratégica. A construção de um novo país passava, imperiosamente, pela criação de uma classe possidente. Para trás ficavam, em definitivo, os anos quentes em que se prometia partir os dentes à pequena-burguesia.


A deriva que aconteceu depois com o aprofundar das desigualdades, o desfilar escandaloso de uma riqueza de génese indevida e desonesta – tudo isso é conversa para ser analisada noutra freguesia.


Em todo o caso, assumimos aqui, honestamente, que poderíamos ter feito de modo diferente se não nos tivéssemos deixado inebriar pela pressa – natural em certos contextos de produção jornalística – de escancararmos ao país os dados que nos queimavam as mãos. Quem anda no jornalismo e conhece o ambiente e a dinâmica das grandes redacções, sabe perfeitamente que em geral é difícil congelar um «furo», uma «cacha», sobretudo quando não se tenha à mão nada de famoso para sustentar a capa de uma edição.


E um «furo», convenhamos, foi o que Graça Campos havia conseguido mesmo «in extremis», na manhã do dia 8 de Janeiro de 2003 – exactamente numa 4ª feira que era o «dead-line» para a entrega do jornal à Gráfica Litotipo.


Era quase meio-dia, quando GC chamou-me ao seu gabinete, todo ele agitadíssimo e agitando também nas mãos uma lista como se fosse um troféu de guerra: «Severas, vamos mudar a capa. Temos aqui a lista com os figurões mais ricos de Angola. É bomba! São os nossos milionários escondidos! Sei que não nos resta muito tempo, mas trabalha-me essa lista como puderes. Vá, Severas, mãos à obra».


E foi assim, às pressas e com um frémito de emoção a martelar-me mais o coração do que a mente propriamente, que redigi o artigo sobre a compilação das 59 personalidades mais ricas de Angola. Sem poder ouvir ninguém, porquanto o tempo urgia, esgalhei-o como pude, em pouco mais de duas horas, a fim de dar tempo ao trabalho do pessoal da paginação.


Grosso modo, tratei de realçar as conclusões históricas que emergiam com esse facto. Os dados coligidos revelavam um facto sociológico de enorme significado. Tudo indicava que, aparentemente, a riqueza nacional estaria a mudar de cor, deslocando-se dos brancos para os negros. É inegável que o facto de até então a riqueza ter estado concentrada em mãos de grupos minoritários (brancos e mestiços), constituía-se num factor que propiciava um ambiente fértil para disputas e tensões inter-rácicas.


A outra conclusão realçada foi que a riqueza parecia ter cor política, tendendo a concentrar-se em individualidades directa ou indirectamente pertencentes à confraria do partido no poder, o MPLA. Além disso, um olhar mais atento à lista punha a nu que a quase totalidade dos novos-ricos que a integravam não eram empresários. Este facto atiçava ainda mais as suspeitas – hoje, quase certezas – de que em regra tais enriquecimentos resultavam de processos ilícitos e pouco naturais.


Assim foi. Para a posteridade, além da lista (vide post anterior) que tanta barraca suscitou, deixo a nota que fechava a matéria.


ANGOLENSE Nº 217 | 11 A 18 DE JANEIRO DE 2003
MILIONÁRIOS DEIXAM A TOCA

Por Severino Carlos

Os angolanos têm vindo aos poucos a conformar-se com a ideia de que é muito natural a existência de milionários no país. Depois de mais de 15 anos em que a ortodoxia marxista tornou proibitiva a existência de ricos de uma maneira geral, os últimos dez anos abriram as comportas. Os milionários estão a sair da toca. Mas o facto é que a riqueza continua de certo modo envergonhada.


Envergonhada porque quase ninguém aceita declarar quanto tem e onde o tem. Pode mesmo afirmar-se que a lista agora compilada, apesar da sua aparente, porque não desmentida, fidedignidade, é resultado de um trabalho de «sapa».


Os ricos estão, pois, aí e temos de aceitá-los. Não são os zeros dessas fortunas que irão continuar a causar alguma consternação por entre os que nada têm. O problema que continua, e vai continuar, a fazer espécie durante ainda algum tempo é a falta de igualdade de oportunidades.


Porque, diga-se em boa verdade, os nossos milionários fazem parte de uma minúscula casta de privilegiados. Não tendo nascido em berço dourado, como a maior parte dos seus concidadãos, tornaram-se ricos do dia para a noite graças a esquemas de compadrio e de clientelismo político que têm reinado.


Mas, no fundo, os nossos milionários podem dormir descansados porque, nos actuais estádio e consciência do país, dificilmente eles seriam molestados por terem mais «patacos» que os seus concidadãos. A caça às bruxas pode ter passado à história.


Agora, o que verdadeiramente se torna imperioso é que, em espírito de patriotismo, essa riqueza tenha rosto humano. Que quem a tem, não importa como, aprenda a ser compassivo com os deserdados da sorte, praticando a solidariedade, a filantropia, enfim, o humanismo.


Investir no país para criar novos postos de trabalho e ajudar a atenuar as assimetrias sociais pode ser um bom passo para levar ao esquecimento de toda a imoralidade que em certa medida representa o facto de, num país recém-saído de uma guerra devastadora, haver gente imensamente rica, perante milhões de estropiados, famintos, desabrigados e deslocados.

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(FIM)