Luanda - Com seu neto ao colo, de aproximadamente seis anos de idade, ambos trajados de uniforme militar, o presidente de um país na Europa Oriental mostra o alcance do seu poder ao filho da sua filha. O palácio presidencial se situa no alto da capital, pelo que permite vislumbrar quase toda cidade. Na brincadeira, o presidente levanta o telefone e liga para a estação nacional de energia e manda desligar a luz. É noite e o neto fica pasmado com a escuridão densa que surge. O único local onde a energia permanece é na presidência.

Fonte: E-globo

O presidente, ainda com o telefone colado à orelha, ordena que voltem a ligar a energia. E lá o neto fica alegre com aquele espectáculo de acende e apaga, sorrindo de orelha em orelha, com o avô a lhe mostrar que o país é um jogo de luzes ao seu dispor. Depois passa o telefone ao neto que também começa a mandar desligar e ligar a energia.

 

Depois já não ligam a energia, e o neto entristece. O avô grita ao telefone por não acatarem as ordens do neto e dele. Mas ninguém liga a energia. Pelo telefone ouve tiros. Era a rebelião que se havia instalado.

 

O que contei acima é o início do filme intitulado O Presidente, onde um ditador governava o país há décadas com braço de ferro, excessivamente rico, ele e sua família, em detrimento do povo que vivia numa miséria extrema.

 

A história nos tem mostrado que a realidade, em vários momentos, ultrapassa a ficção. Os cortes de energia eléctrica em Luanda, capital de Angola, são tão frequentes que quando não há cortes o povo até admira. Os cortes abrangem até a Assembleia Nacional. Será José Eduardo dos Santos a brincar com os netos tal como o presidente do filme?

 

Mikheil, o presidente do filme, retira a sua família do país, mas o neto (Dachi), bastante afeiçoado ao avô, insistiu em ficar, e o presidente ficou mesmo com o menino.

 

A revolução subiu de intensidade, os militares viraram-se contra o presidente e começou uma caça ao ditador que vagueava pelo país disfarçado de músico, mendigo, às vezes de pastor de ovelhas, sempre com o neto a quem mentia que aquela situação era uma brincadeira, um jogo inventado por ele e que terminaria em breve, enquanto tentava chegar à costa onde supostamente encontraria um barco para a fuga final. Foi capturado ali mesmo.

 

É na captura que se prende o foco desse artigo – a queda do ditador. Em Fevereiro de 2011 o antigo presidente da Costa do Marfim Laurent Gbagbo foi capturado, após recusar ceder o lugar ao presidente eleito Alassane Ouattara. Não foi detido sozinho. A esposa, Simone, estava com ele naquele instante e, segundo relatos, foi violentada sexualmente por militares que realizaram a captura.

 

O derrube de ditadores e ditaduras quase sempre gera consequências nefastas até para os mais íntimos, como foi com a esposa de Gbagbo, os filhos e esposa de Hosni Mubarak, antigo presidente do Egipto, e igualmente a família de Ben Ali, ex-ditador tunisino condenado à prisão perpétua.

 

O derrube de José Eduardo dos Santos, o ditador angolano há quase 38 anos no poder, poderá não fugir à regra, infelizmente. E digo infelizmente pelo seguinte: o apego patológico ao poder, os assassinatos, as prisões políticas (de que já fui vítima), perseguições, pobreza extrema, etc., tudo isto cria no povo um sentimento de ódio muito forte cujo desejo último é de morte do ditador. E quem desfrutou da ditadura, declarada ou silenciosamente, é também alvo do ódio.

 

No filme, o rapaz era, inconscientemente, um dos beneficiários do saque sem pudor das riquezas do Estado, simplesmente por ser neto do ditador. Uma idosa, a destilar ódio pelos olhos e boca, exigia que o neto também fosse morto porque o avô-presidente também mandou matar o seu filho. Outras pessoas se preparavam para queimar o ditador e o neto, outros queriam cortar-lhe a cabeça. Na confusão ouviu-se a voz de um indivíduo. Também vítima da ditadura, o senhor pediu que não matassem o ditador porque, ao ser feito isto, se estaria a dar sequência ao ímpeto sanguinário do regime deposto. Classificado para maior de 12 anos, o filme não mostra se prevaleceu a vontade do povo em relação ao ditador, mas termina com o rapaz a dançar ao som duma guitarra, à beira-mar, alegre, depois de tanto chorar.

 

O que será feito ao ditador José Eduardo dos Santos quando sair do lugar que ocupa autoritariamente, quer seja por via duma revolução ou voluntariamente? Certamente que muitos em Angola pensam nisto, e noto que a maioria, mesmo sem se aperceber, deseja a sua morte. Na cadeia pensei imenso no assunto.

 

Em democracia o poder pertence ao povo – na realidade o poder pertence ao povo em qualquer sistema. Entretanto, é natural que algumas pessoas evoquem o argumento segundo o qual o destino do ditador deverá ser decidido por referendo, um mecanismo democrático existente na actual constituição de Angola mas nunca usado.

 

O direito à vida é um direito supremo na série dos direitos humanos, e vem contemplado no artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no artigo 30.º da Constituição da República de Angola. Por arrasto, outros direitos humanos devem ser respeitados, pois o seu incumprimento é susceptível de violar o direito à vida, como são os casos do direito à integridade física, segurança pessoal, proibição de prisões arbitrárias, etc.

 

Porém, defender o direito humano vida significa, ao mesmo tempo, repudiar a pena de morte como castigo por qualquer crime cometido, por mais hediondo que seja, como são os crimes contra a humanidade e genocídio.

 

A constituição angolana proíbe a pena de morte (art. 59.º), apesar de existir as penas de mortes extrajudiciais, onde indivíduos são mortos barbaramente em ruas e becos do país à luz do dia, às vezes atirados aos rios para serem comidos por jacarés.

 

Perante o derrube da ditadura, o referendo em relação ao ditador deverá ter como foco dois aspectos: perdão (penal, económico, ou ambos) ou julgamento e a previsível condenação. No aspecto do julgamento e condenação não se coloca a questão da morte, pois, se o objectivo é instalar-se efectivamente uma democracia no país, então deve-se começar por respeitar o direito à vida, e criminosos também têm este direito. Por outra, exigir que seja morto na lógica da lei do talião – olho por olho e dente por dente – é dar sequência às matanças levadas a cabo ao longo de quase 42 anos de independência, pois não é encerrado o ciclo de ódio iniciado pela ditadura.

 

Num ambiente de tensão, onde os povos se vêem finalmente livres do ditador e da ditadura, certamente que a maioria votaria no julgamento em detrimento do perdão. Pelo que, por justiça, o referendo deverá realizar-se quando a tensão política e social baixar. Entretanto, há várias esferas de responsabilização jurídica, daí que o processo não se esgota internamente.

 

E sua família? Aqui devemos trazer um princípio jurídico e democrático – o princípio da responsabilidade individual. O código penal angolano traz esse preceito em seu artigo 28.º, avançando que, ipsis litteris, “a responsabilidade criminal recai única e individualmente nos agentes de crimes ou de contravenções”, ou seja, ninguém deve ser responsabilizado por actos que não cometeu.

 

A queda do ditador e da ditadura será um momento crucial para se instaurar uma democracia, mas é preciso ter-se em conta que mais facilmente se substitui uma ditadura por outra, igual ou pior, pelo que será preciso uma ruptura profunda com organismos e individualidades cúmplices da actual ditadura, muitos disfarçados de democratas.