Luanda - Após o golpe de Nito Alves, o casal Sita Valles e José Van-Dunem foi preso e barbaramente assassinado pelo regime, tal como dezenas de milhares de angolanos. O filho seria educado em Lisboa pela tia Francisca, atual ministra da Justiça de Portugal. Quarenta anos depois, Che Van-Dunem e outros angolanos falam pela primeira vez da matança que ainda hoje divide o país

Fonte: Expresso

40  anos depois,  angolanos falam pela primeira vez da matança que ainda hoje divide o país

Conceição Coelho recorda o momento dramático em que a irmã mais velha confirmou à mãe aquilo que há muito a família receava: a morte do filho, Rui Coelho, fuzilado em Angola aos 25 anos, na sequência dos acontecimentos do 27 de maio de 1977. “Nunca mais vou esquecer os gritos da minha mãe.” Não foi o único a ser fuzilado. Estima-se que na repressão que se seguiu tenham perdido a vida 30 mil angolanos, quase todos torturados antes de serem fuzilados ou mortos das formas mais macabras. Qualquer que seja a estimativa, um número elevadíssimo de pessoas desapareceu na violência que se seguiu e que teria um novo clímax no dia 23 de março de 1978, com a chacina de outras 300 pessoas que se encontravam detidas. Em relação à esmagadora maioria, desconhece-se onde se encontram os corpos e há muitas certidões de óbito em falta. É esse conhecimento que órfãos, familiares e sobreviventes reclamam há muito junto do Presidente José Eduardo dos Santos. Mas até hoje não foram divulgados os dados que permitem sarar a grande ferida da dilacerada sociedade angolana.

 

A verdade dos vencedores é que, nesse dia, militares afetos a Nito Alves e a José Van-Dunem, os dois comandantes que, a 20 de maio, tinham sido afastados do comité central do MPLA, sob a acusação de serem fracionistas, e que eram apoiados por um popular programa de rádio “Kudibanguela” e pelo jornal “Diário de Luanda”, entretanto mandados encerrar em outubro de 1976, protagonizaram o que a interpretação oficial classificou como tentativa de golpe de Estado. Tal tentativa foi efetivada através do controlo por forças militares da Rádio Nacional, que passou a fazer apelos a manifestações populares junto do palácio presidencial; a pela tomada da cadeia de São Paulo, com a libertação de presos políticos que lhes eram afetos; e a liquidação de altos responsáveis angolanos, cujos corpos carbonizados apareceram dentro de uma ambulância junto ao bairro Sambizanga.

 

A verdade dos vencidos é que se tratou de uma rebelião de militares aclamada pelo povo ou uma manifestação popular protegida por soldados, que visava denunciar os desvios sociais-democratas na cúpula do MPLA e a corrupção de altos dirigentes, libertar os presos políticos acusados de fracionismo e exigir a reintegração de Nito Alves e José Van-Dunem no Comité Central.


“Na manhã do dia 27 estava em casa quando me apercebi que a Rádio Nacional de Angola (RNA) havia sido tomada. Fui para o meu gabinete no Palácio e de lá telefonei para o Futungo de Belas [Presidência da República] mas de caminho pude avistar o Onambwé e o Delfim de Castro que, dentro de um tanque, se dirigiam para as instalações da RNA, onde já estava no ar o programa radiofónico ‘Kudibanguela’. Depois da retomada da RNA fui o primeiro dirigente a lá entrar. Sai da rádio e fui até a avenida Lisboa para ver se havia rastos de sublevação. Liguei ao Neto, disse-lhe que estava tudo calmo e ele prontamente afirmou: ‘Então posso ir até aí!’ Disse-lhe que por uma questão de segurança, talvez fosse melhor ficar pelo Futungo. O Presidente virou-se para mim e disse-me que ia então mandar chamar a imprensa para fazer o ponto da situação. Mal sabia ele que o Saidy, o Eurico e o Garcia Neto já tinham sido mortos... Mal sabia também que alguns comandantes haviam caído na emboscada montada pelos fracionistas na 9ª brigada. Quando soube de tudo isso, o Presidente ficou completamente transtornado.”

Hermínio Escórcio, chefe do protocolo da Presidência em 1977 e atual embaixador em Buenos Aires

 

Foi quem tinha maior organização e poder de fogo a vencer o braço de ferro. Depois de um impasse de cerca de quatro horas, as tropas cubanas estacionadas em Angola decidem entrar na contenda ao lado das forças fiéis ao Presidente Agostinho Neto. Retomam a Rádio Nacional, abrem fogo sobre a população e os revoltosos, que se colocam em fuga, e retomam o controlo das cadeias. Encontrado o vencedor, Neto vai à televisão e proclama o salvo-conduto para o banho de sangue: “Não haverá contemplações... Certamente não vamos perder tempo com julgamentos.” Os fuzilamentos sumários passaram a ser norma.


“Estava no sexto mês de gravidez, quando ele foi à Argélia. Quando regressou a 1 de junho, a tragédia de 27 de maio ainda estava na ordem do dia. Vi que estava muito intranquilo. No dia seguinte, 2 de junho, vieram buscar-nos a casa. Dois soldados armados de metralhadora exigiram que fôssemos com eles. Levaram-nos para o Ministério da Administração Interna. Permanecemos lá toda a tarde, sentados num banco. Nas horas que ali estivemos falámos pouco. Estávamos horrivelmente destroçados. Era já noite quando nos foram buscar. Meterem-nos num cubículo escuro. Pela madrugada levaram-nos para a cadeia de São Paulo. A separação de homens para um lado, mulheres para o outro afastou-nos definitivamente um do outro e nunca mais nos vimos.”

Mila Coelho mulher de Rui Coelho, fuzilado a 2 de Junho de 1977, na altura era chefe de gabinete do primeiro-ministro, Lopo do Nascimento

 

O horror e a iniquidade sucedem-se por toda a cidade de Luanda. O bairro Sambizanga, onde se pensava estar grande parte dos apoiantes de Nito Alves (‘nitistas’, depois designados por fracionistas ou golpistas), é cercado por militares, sujeito a rusgas sucessivas e parcialmente arrasado por caterpillars. Jovens que estudavam no estrangeiro são mandados regressar e, à chegada, são imediatamente presos e logo a seguir fuzilados ou enviados para campos de ‘reeducação’. Todos são suspeitos desde que alguém os denuncie por eventuais simpatias para com os ‘nitistas’, mesmo que a acusação seja completamente absurda.

 

Conta José Reis, autor do livro “Angola, o 27 de Maio — Memórias de um Sobrevivente”, “Perseguiram‑se famílias inteiras como se o parentesco fosse crime. O Progresso do Sambizanga, o clube de futebol da berra, perdeu de uma assentada os dirigentes, o médico, Tito Mendonça (Tilú), e os melhores atletas desapareceram rapidamente. Calaram para sempre as vozes dos nossos cantores de intervenção, os populares David Zé, Artur Nunes e Urbano de Castro (…). Refinou‑se a cobiça pela posse dos bens alheios, a casa ou o automóvel, por fim, intolerável, também as ‘apetecíveis’ prometidas viúvas lhes espicaçaram a gula (…).”

 

Nito Alves, José Van-Dunem e a mulher, Sita Valles, apontada como um dos cérebros do movimento, fogem para o campo. Os comandantes Bakalov e Monstro Imortal são outros dos acusados. O “Jornal de Angola” publica as suas fotografias e o diretor, Costa Andrade (Ndunduma), faz sucessivos editoriais incendiários com títulos como “Não pode haver tolerância com os fracionistas”, “Encontrá-los e prendê-los”, “Vingar os heróis”, “Fuzilar os fracionistas”, “Malhar no ferro quente”… A Rádio Nacional passa repetidamente a mesma mensagem: “Mataram os nossos camaradas, não há contemplações. Agarrem-nos e amarrem-nos já.”

 

“É preciso distinguir o 27 de maio do ‘28 de maio’, ou seja, o período que se iniciou após o controlo da tentativa de golpe por parte do Governo e em que o Estado desencadeou uma onda repressiva altamente desproporcional contra os participantes no 27 de maio e até outras pessoas que, segundo os indícios disponíveis, não estavam envolvidas. A história do ‘28 de maio’ tem sido muito mais relatada e analisada do que a do 27 de maio, devido ao ensurdecedor e inexplicável silêncio oficial do MPLA. Isso gera, inevitavelmente, o fraco rigor histórico de alguns desses relatos (...). Após a subida ao poder do Presidente José Eduardo dos Santos, o MPLA deu início a um processo interno de reconciliação, sem fanfarras, tendo várias figuras anteriormente ligadas a Nito Alves sido eleitas para o Comité Central, nomeadas para o governo e outras funções públicas importantes. Mas falta ainda um gesto maior do MPLA, para se reconciliar com todas as suas dissidências e, inclusive, voltar a pôr na fotografia alguns dos seus próprios fundadores.”

João Melo jornalista e escritor angolano

 

A DISA, a polícia política da altura, sob a direção de Ludi Kissassunda e Onambwé e tendo como principais executantes António Carlos Silva, Carlos Jorge, Pitoco, Inácio Osvaldo, Eduardo Veloso, Norberto Castro Pereira, Margoso, José Maria, Manuel Carmelino, José Vale, Nascimento e Domingos Cadete, Victor Jeitoeira, Cristiano André, João e Henrique Beirão, Zeca França, José Baião, Júlio Rasgado, Miguel de Carvalho, entre outros, prende, tortura e mata sem qualquer controlo. As cadeias ficam sobrelotadas. Os presos são alvo de todo o tipo de sevícias: espancamentos com paus, martelos, barras de ferro, soqueiras, cintos, chicotes, pedaços de mangueiras cheios de areia, cadeiras, mesas, bancos; violentamente amarrados com os braços atrás das costas até perderem a sensibilidade dos braços e mãos; suspensos e deixados cair no chão, com os braços e as pernas amarradas; queimados com cigarros; sujeitos ao nguelelo (um torniquete colocado na cabeça que à medida que é apertado causa fortíssimas dores e a perda de consciência); choques elétricos nos genitais, etc. A imaginação dos algozes não tem limites, a sua bestialidade também não. O sangue corre às golfadas como um mar, os gritos de dor dos seviciados são insuportáveis.

 

“Sou preso a 30 de maio. Levaram-me como se fosse um criminoso perigosíssimo, direto para o Ministério da Defesa, onde fui deixado num corredor. A maior parte das pessoas que esteve naquele corredor e que eu não conhecia, morreu. Centenas deles. Fiquei nesse corredor uma noite. Estava ali na antecâmara da morte. Depois levaram-me para a cadeia de São Paulo. Aí encontrei muitas pessoas minhas conhecidas. Estava tudo em pânico, tudo calado, trocavam-se olhares, não havia conversas. Nessa noite comecei a ouvir os gritos dos que estavam a ser torturados. Todos os dias quando chegava à noite era terrível (...). Fui interrogado várias vezes. Com tortura. Bateram-me com socos, pontapés, levei com paus na cabeça, mas o que me custou mais foi ter de presenciar eles darem choques elétricos nos genitais e nos mamilos de um amigo, para ver se confessava. Foi o mais duro, aí tive vontade de contar coisas inexistentes para pararem com aquilo.”


José Fuso preso, torturado, acusado de ser fracionista

Chega, porém, uma altura em que os presos já não sentem nada e entram numa espécie de transe. Muitos eram chamados e não voltavam.

“Às 7h30 do dia 27 de maio cheguei ao Liceu N’Zinga M’Bandi para dar aulas. As movimentações na rua e os tiros colocaram os alunos e os professores em pânico. Saí diretamente dali para três dias de retiro. No dia 30 de maio reapareci e fui à cantina da universidade para almoçar. Estava atrás do Fuso e do Jorge Basófias. O general N’Dozi chegou e da porta apontou para eles. Como estava na mesma direção, gelei! Não foi desta mas alguns meses depois segui o mesmo caminho, São Paulo e campo do Tari.”


Manuel Ennes Ferreira preso político 
do processo OCA, torturado

As mulheres detidas eram alvo de violência psicológica e sexual. Na altura dos interrogatórios, todos os agentes e guardas apareciam e “sobre os seus corpos desnudados despejavam a mais torpe violência”, revela Américo Cardoso Botelho, em “Holocausto em Angola”. A comandante do Batalhão Feminino, que tinha conduzido o ataque à cadeia de São Paulo para libertar os apoiantes de Nito Alves e que impedira depois o fuzilamento dos militantes da Revolta Activa e da OCA pelas forças revoltosas [ver caixa], acabou por ser detida quando a situação mudou e as tropas fiéis a Neto passaram a controlar os acontecimentos. Como estava grávida, deixaram-na ter a criança. Depois, espancaram-na durante três dias e três noites, segundo o livro “Purga em Angola — O 27 de Maio de 1977”, de Dalila e Álvaro Mateus. “Cantava sem parar. A voz enrouqueceu-lhe. Mas nunca parou de cantar”, até ser fuzilada.


Os interrogatórios eram feitos com as detidas nuas ou seminuas. Eram usados os mais diversos instrumentos para penetrar as vaginas das detidas. A uma portuguesa branca, obrigaram-na a despir-se para limpar com a roupa o sangue nas celas onde decorriam os interrogatórios. Depois, os guardas voltavam a atirar a água suja para o chão para a obrigar a limpar de novo, enquanto lhe iam lançando impropérios e dando pontapés. A outra massacraram-lhe tanto os joelhos com uma tábua, que durante meses quase não conseguiu andar. Outra foi colocada “no centro de um grupo de agentes e militares, inteiramente nua, sob uma forte iluminação, sendo alvo dos piores insultos e apreciações jocosas relativas ao seu corpo — e como se a humilhação não bastasse, a esses comentários grosseiros seguia-se o prazer sádico da agressão física”, conta ainda Américo Botelho.


“No decorrer deste período foram assassinadas milhares de pessoas pela DISA. O destaque vai para a utilização das técnicas de tortura mais impiedosas e selvagens e para o recurso permanente às execuções extrajudiciais. Os suspeitos de estarem implicados no ‘golpe’ desapareceram atirados para valas comuns, espalhadas um pouco por todo o país, onde se inclui a sua zona marítima. Como resultado deste indescritível banho de sangue que se seguiu ao 27 de maio de 1977, Angola entrou para a triste galeria dos países africanos onde as maiores e mais sangrentas violações dos direitos humanos se praticaram, sem que até hoje nenhum dos seus mandantes e executores tenha sido responsabilizado.”


Reginaldo Silva jornalista, preso, acusado de ser fracionista


A noite era um inferno para os presos. Era nessa altura que se faziam os interrogatórios. Mas os algozes estavam menos interessados em confissões e mais em martirizar o corpo dos presos recorrendo a processos mais violentos, porque a sentença já estava lida e seria cumprida, mais dia menos dia, sem qualquer hipótese de um julgamento justo. Era também o tempo das matanças. Quando os guardas chegavam às celas e chamavam um preso dizendo-lhe para arrumar as coisas, este sabia que tinha chegado a sua hora. Esse momento era precedido pela movimentação anormal de carros e ambulâncias, que entravam pela calada da noite no pátio da cadeia. No dia seguinte, os presos eram obrigados a lavar o sangue, cabelos e outros indícios de brutalidade que tinham ficado nas ambulâncias.


“Na cela ao lado, mais tarde ocupada por militares que vieram presos da URSS, a quebrar o silêncio, ouvia-se toda a noite: é aqui quê matam?, quê horas son? De 5 em 5 minutos, durante toda a noite. Havia também simulações de fuzilamentos feitas pelos conduzes [guardas] a mandar alinhar os presos contra a parede, a fingirem que disparavam e a rirem-se do comportamento ‘olha, aquele está a mijar-se’ e coisas assim, em revoadas e praticamente durante toda a noite. Nas províncias, a repressão não poupou ninguém. A coberto do ‘direito’ à vingança contra aqueles que. alegadamente sequazes de Nito Alves, mataram e queimaram Dangereux, um comandante natural das terras do Moxico, no interior da ambulância, a chacina foi brutal. Quem não era da região leste do país foi humilhado, suportou sevícias facínoras e foi morto. Não escaparam a esta barbárie a engenheira Mary Van‑Dunem Bastos, o médico Elisiário dos Passos Vieira Lopes, este detido antes do dia 27 de maio, cujos atos homicidas foram tão vis que me envergonha contá-los. O mesmo destino sobrou para Paulo Cadavez, conhecido jogador de basquetebol, também ele procedente da capital, o couto dos ímpios.”

Alexandre Manuel membro da OCA, que se encontrava preso a 27 de Maio

 

“Ainda hoje a ideia que tenho é que o meu pai estava no sítio errado, à hora errada, porque toda a gente no hospital foi fuzilada, inclusivamente a mãe do meu irmão mais novo, o Vladimir, que era enfermeira. Sei que a minha mãe foi ao Moxico, à procura do corpo do meu pai, e encontrou o meu irmão, bebé, lá no meio. Trouxe-o com ela e entregou-o aos avós (…). Para mim foi muito duro. Fui criado pela avó Isabel, uma amiga portuguesa da minha mãe. Foi fantástica, deu-me sempre muito amor. Mas havia para mim uma sensação esquisita porque sabia que tinha família em Angola (…). Acho que tirei o curso de Psicologia porque estava estragado. Ainda hoje tenho dificuldade em relacionar-me com Angola. Há um certo ressentimento por eu ter de ficar em Portugal porque o meu país não era acolhedor o suficiente para eu poder estar lá. No fundo, Angola não me roubou só o pai, roubou-me a família toda.”


Nelson Vieira Lopes 42 anos, psicólogo, filho do médico Elisiário Vieira Lopes

 

Suspeitas de estarem infiltradas por elementos acusados de fracionismo, as organizações de massas do MPLA são duramente atingidas, nomeadamente a OMA (Organização das Mulheres de Angola), a JMPLA (Juventude do MPLA) e os sindicatos. A depuração chega também de forma particularmente dura às Forças Armadas, à DISA e às polícias (militar e de segurança pública). Foi criado uma espécie de Tribunal ad hoc que procedeu ao ‘julgamento’ sumário, condenação e execução de cerca de 200 dirigentes do MPLA, que estavam presos na fortaleza de São Miguel. A administração pública não escapa à razia, com pesadas consequências na educação e na saúde. O Bureau Político acusa todos os órgãos do Poder Popular, incluindo as comissões de bairro, de estarem infiltradas. No Batalhão Feminino não terá sobrevivido nenhum elemento. “As liquidações físicas começaram por ser ordenadas superiormente. Depois começaram a ser feitas arbitrariamente pelo próprio pessoal da DISA, muitas vezes por mero ajuste de contas”.

 

“No campo de concentração de Calunda o comandante ficava todo vaidoso, gingava, com duas pistolas à cintura. Seguia-se uma exibição da sua destreza e pontaria: primeiro, contra os pássaros que passavam no ar e depois contra o prisioneiro amarrado e espancado. Atirava nos pés, nos braços, na barriga, conforme a sua disposição, até que sucumbisse. Outras vezes mandava queimar os presos com pneus ou gasolina. Os que não morressem na altura, sucumbiam aos poucos com dores horríveis, aos gritos, que deixavam a todos estarrecidos. E éramos obrigados a assistir a tudo isto e depois obrigados a enterrar os mortos, assim como carregar os que haviam resistido à sessão, que ficavam a sofrer no nosso meio até que sucumbissem. Era uma grande tortura, um grande martírio.”


Relato de um sobrevivente citado no livro “Angola, o 27 de Maio — Memórias de um sobrevivente”

Foi há 40 anos mas há coisas que é impossível esquecer:

“No campo de prisioneiros situado perto do aeroporto, na província do Bié, a DISA incriminava assim o isco: ‘És fracionista! Querias matar o camarada Presidente! Fazias parte do grupo do Nito Alves!’ A acusação era sempre negada. Então, o disa apontava outro prisioneiro, este sim o verdadeiro alvo a abater e dizia: ‘Vês aquele? É fracionista, também queria matar o Presidente, já confessou tudo, portanto prova que nada tens a ver com ele, pega nesta faca e mata-o.’ E assim se punham presos a matar-se entre si. (…) Outra das práticas usadas para fazer desaparecer indesejáveis foi a de os enfiar num saco, embarcá-los num avião, e das alturas largá-los ao mar ou noutro qualquer lugar inóspito, dos tantos que Angola tem na sua imensidão.”


José Reis preso, torturado, acusado de ser fracionista

Nas tradicionais famílias angolanas não são raras as que têm elementos dos dois lados da barricada. Um dos mais conhecidos dirigentes angolanos, Rui Mingas, perde dois irmãos, Saydi, assassinado com requintes de malvadez quando tentava dialogar com as tropas rebeldes, e José, que as apoiava e que acaba preso e fuzilado. Há um constante sobressalto. Todas temem por um ou mais do que um dos seus membros. Trocam telefonemas, procuram saber o paradeiro de familiares e amigos, passam a falar em código como no tempo do colonialismo. “Foi fazer uma viagem a Cuba” tanto podia significar que a pessoa em causa fora preso, fuzilado ou enviado para um campo de concentração. E já que não conseguem proteger os adultos, preocupam-se com as crianças, que ainda não sabem que se tornarão órfãos nesse desgraçado ano de 1977. Hão de carregar esse peso para o resto da vida.


“Foi numa noite de verão, tinha eu seis ou sete anos, que um primo mais velho perguntou-me se eu não tinha um pai no céu. Fiquei baralhado. No dia seguinte, a minha tia falou-me do meu pai biológico. Fiquei a saber que tinha um outro pai que não o António, com quem a minha mãe casou tinha eu uns três anos. Foi um choque. O meu pai não estava sequer em Angola naquele dia. Estava numa missão diplomática, enquanto chefe de gabinete do primeiro-ministro. E uma das histórias que me contaram é que ele só voltou por minha causa e da minha mãe. Este tabu marcou toda a minha vida e continua a marcar. Nem a minha mãe nem eu dissemos ao meu pai o que se tinha passado com o meu pai biológico. Ele apenas sabia que tinha morrido jovem. Na véspera do 31º aniversário do 27 de maio, escrevi um texto sobre o meu pai biológico. Nesse dia morreu Sydney Pollack, realizador de “África Minha”. Lembrei-me que o meu colega Fernando Alves provavelmente ia falar do Pollack na sua crónica “Sinais” e enviei-lhe um e-mail com o meu texto sugerindo que ele arranjasse um gancho para referir os 31 anos do 27 de maio. O que eu não imaginava é que ele resolveu escrever um texto sobre mim, à conta do meu nome Tukayana, que em kimbundo quer dizer “venceremos”. E desta forma, foi o Fernando Alves quem revelou ao meu pai António, que o estava a ouvir, o que tinha acontecido e quem era o meu pai biológico. Ele ficou em choque. Foi um momento complicado de gerir, porque muita gente ficou a saber que ele não é o meu pai biológico. Quebrou-se um elo, que tenho pena. E ele sabe.”

Rui Tukayana 39 anos, filho de Rui Coelho

Nem foram os órfãos quem mais sofreu inicialmente com o desaparecimento de pais, tios, familiares próximos ou afastados, de amigos, de vizinhos ou de simples conhecidos. A dor mais violenta foi vivida na altura por quem primeiro deixou de ter notícias dos que foram tragados por esses tempos de chumbo; depois, quando começaram a bater a várias portas sem obter qualquer informação; em seguida a receberem informações que nunca se revelavam corretas ou não passavam na verdade de mujimbos (boatos); até que finalmente, um dia, tiveram de aceitar a realidade, com ou sem certidão de óbito passada e desconhecendo sempre o que aconteceu e onde foram os corpos enterrados.

“Revolta-me, ainda hoje, não saber o que realmente aconteceu ao meu irmão Zeca. Só queremos uma coisa: poder fazer um enterro digno. Para mim, é o que custa mais, não poder fazer o luto. Porque não sabemos onde morreu, como morreu e em que dia morreu. Ao longo dos anos sentimos e calámos de uma forma muito profunda, porque vimos os nossos pais sofrerem. Para a minha mãe, em particular, foi uma dor atroz. Durante muitos anos nem sequer conseguíamos falar disto com ela, nem com ninguém. Nem havia fotografias. Era como se não existissem. A minha mãe virou-se para a igreja. Foi o seu escape. Até morrer, aos 82 anos, ela ia todos os dias à igreja de São Nicolau. O meu pai de outra maneira também teve muita dificuldade em aceitar. Perder um filho é uma coisa muito dura.”
Conceição Coelho irmã de Rui Coelho, fuzilado a 2 de junho de 1977

Não há fontes independentes que confirmem quantas pessoas efetivamente morreram em Angola na sequência dos acontecimentos de 27 de maio. Há quem fale em 15 mil, a Amnistia Internacional estima um intervalo entre 20 mil e 40 mil, o jornal “Folha 8” chegou aos 60 mil e a Fundação 27 de Maio apontou para 80 mil desaparecidos. O número mais comummente aceite é, contudo, o de 30 mil. Uma coisa é certa: o MPLA viu descer drasticamente o número dos seus militantes, que passou de mais de 110 mil para cerca de 32 mil.


“Nasci em Luanda em fevereiro de 1977, três meses antes do 27 de maio. A partir desse dia, com o desaparecimento dos meus pais (e de outros familiares e amigos) e perante a falta de informação sobre o seu paradeiro, num contexto de caça ao homem e fuzilamentos em larga escala em todo o país, os meus avós paternos decidem levar-me para Portugal em outubro de 1977, onde nos juntámos à minha tia Francisca [atual ministra da Justiça]. Fui descobrindo essa parte do passado por fases. Durante a minha infância contavam-me apenas o indispensável. A partir da minha adolescência, o meu tio João, um irmão mais novo do meu pai, desempenha um papel importante na revelação dos acontecimentos. Tinha estado também ele preso em 1977, tendo sido detido em Cuba e levado para Luanda, onde sobreviveu à chacina. Regressei a Luanda pela primeira vez em 2005, com 28 anos. Tinha a noção que o meu retorno seria uma questão de tempo. Tinha a consciência que os meus pais se tinham batido com dignidade e determinação pela edificação em Angola de uma sociedade justa, em que a solidariedade pudesse substituir o egoísmo e a exclusão. Entendia que não fazia sentido não lutar pelo mesmo projeto de sociedade na terra onde nasci. Em 2009, decidi que não devia protelar mais e que era chegado o momento certo para voltar. Parece-me importante desmistificar a versão criada pelo poder. Cabe aos especialistas trazer alguma luz sobre o 27 de maio e fazer também a avaliação do papel histórico que a minha mãe, o meu pai mas também muitos outros camaradas seus como Juca Valentim, Nito Alves, Monstro Imortal, Bakalov e tantas outras figuras tiveram no período da luta pela independência e neste processo do 27 de maio em particular.”

Che 39 anos, filho de José Van-Dunem e Sita Valles, presos, torturados e fuzilados


Nito Alves, José Van-Dunem e Sita Valles acabam por ser presos e mortos. As suas últimas horas, contudo, são um enigma. Nito foi detido a norte da 1ª Região Militar, que tinha chefiado e cujo terreno conhecia. Pensa-se que foi denunciado por um velho, tendo depois passado pela cadeia de São Paulo e pelo campo da Quibala. Terá sido a única sentença de morte que Agostinho Neto assinou. José Van-Dunem e Sita Valles são presos em meados de junho. Sita tentou enviar uma carta à missão soviética, através da mulher do seu irmão Ademar. Onambwé, um dos chefes da DISA, sabe e diz à mulher de Ademar que se lhe entregar a carta o marido será poupado. O esquema funciona e Sita e José Van-Dunem são capturados. Entram no Ministério da Defesa de mão dada. Foram para a fortaleza de São Miguel. Sita é violada e selvaticamente torturada. Recusa ser vendada na altura do fuzilamento.


“Fui à fortaleza de São Miguel e lá encontrei o Zé Van-Dunem (estava descalço e coberto por um lençol), o Juca Valentim e o Nado. Ainda falei com o Jacob João Caetano (Monstro Imortal) chefe do Estado-Maior-adjunto das FAPLA e outros quadros e o único que não veio falar comigo, envergonhado, foi o David Aires Machado (Minerva), então ministro do Trabalho. O Zé Van-Dunem perguntou-me pelo pai e disse-lhe que o velho Mateus estava desfeito, nem ele, nem ninguém esperavam que ele (Zé) se metesse numa encrenca tão grave. O Zé por fim fez-me um pedido: olhem ao menos para o meu filho...”


Hermínio Escórcio chefe do protocolo da Presidência em 1977 e atual embaixador em Buenos Aires


A repressão estende-se por 1978 mas começa a ser denunciada nacional e internacionalmente. As mais conhecidas famílias angolanas pressionam Agostinho Neto e fazem-lhe chegar petições protestando contra a violência dos guardas e as péssimas condições de alimentação e higiene nas prisões, onde ratos, baratas, aranhas e outros bichos coexistem com os presos em celas sobrelotadas. A comida é servida em pratos de alumínio sujos, o arroz tem gorgulho e há quem seja obrigado a beber a água da latrina. Nos campos para onde eram enviados os presos a vida era duríssima. No campo do Tari, “tínhamos frio, passávamos fome, vivíamos na incerteza, a saudade morava connosco, a raiva era imensa e o medo teimoso. Por fim, havia as ratazanas, que mais pareciam coelhos, que aguardavam vigilantes e ansiosas pelo mais pequeno descuido, durante o sono inquieto, para nos ratarem as orelhas ou os dedos dos pés”, conta José Reis. As denúncias chegam à comunidade internacional, que também pressiona o Presidente angolano. Neto distancia-se assim da DISA, dos seus métodos e dos “excessos” cometidos e extingue-a em julho de 1979.

“Porque não é possível camaradas, trabalhar com uma segurança que oferece dúvidas acerca da proteção, aos nossos compatriotas e tem hesitações quanto à nossa política de clemência. Quantas pessoas, hoje, se queixam da DISA? Justa ou injustamente… Mas queixam-se. Não há nenhuma semana que eu passe sem receber cartas de famílias a dizer que ‘o meu filho desapareceu’. Depois, camaradas, eu não sei o que vou responder. O que é que eu hei de dizer? Eu é que sou o responsável. Quando desaparece um filho, um pai, um avô, uma mulher, um cunhado, etc., eu é que sou o responsável. E o que é que eu vou dizer? Alguns que estão nas cadeias estão muito bem lá; é melhor estarem lá do que cá fora. Mas nem todos… Precisamos de resolver esta situação.”

Agostinho Neto Discurso a 26 de Julho de 1979, na cidade de Menongue

Mas é muito improvável que Agostinho Neto não soubesse o que se tinha passado. A lei 7/78 dos Crimes Contra a Segurança de Estado foi aprovada a 10 de junho de 1978 e promulgada por ele. Na prática, institui oficialmente a pena de morte para quem cometa crimes considerados lesivos da segurança do Estado. Obriga, contudo, a que tais crimes sejam julgados por um tribunal. Ora, os presos acusados de estarem envolvidos no 27 de maio nunca tinham sido julgados. Manuel Ennes Ferreira, professor e investigador do ISEG, liga a publicação da lei à última chacina, que ocorre a 23 de março de 1978. Os julgamentos iriam reabrir o processo e colocar em causa vários dirigentes do MPLA. Era por isso necessário acabar com as testemunhas incómodas.


“Na noite de 23 de março de 1978 levaram, para nunca mais voltarem, inúmeros presos: Ademar Valles, irmão da Sita Valles, o eng. Rosa, que nada tinha a ver com o 27 de maio, o Cachimbo, um lúmpen que havia assassinado o eng. Bettencourt Faria, responsável pelo Observatório Astronómico da Mulemba, o comandante Bogalho, combatente do MPLA, que se juntou ao Chipenda em Lusaka... O Bogalho foi trespassado pelas balas ou então, como ouvi dizer, pelas baionetas dos seus algozes. Foi uma verdadeira ‘noite das facas longas’.”

Justino Pinto de Andrade elemento da Revolta Activa, preso antes do 27 de Maio

 

Para muitos, demasiados, foi o fim. Para os que ficaram, o assunto não está arrumado. Como sublinham os órfãos na carta que escreveram ao Presidente José Eduardo dos Santos, “a ferida do 27 de Maio de 1977 continua bem aberta”. E só o conhecimento de tudo o que se passou e o local onde estão enterrados os corpos pode finalmente cicatrizá-la.


JUSTINO PINTO DE ANDRADE E ANTÓNIO CARRANCA: “FOMOS ENCOSTADOS À PAREDE”

Justino Pinto de Andrade e António Carranca estavam presos na cadeia de São Paulo na altura do 27 de maio, o primeiro por ser membro destacado da Revolta Activa, uma tendência do MPLA crítica da liderança autoritária de Agostinho Neto, o segundo acusado de pertencer à Organização Comunista de Angola(OCA).

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Eis o relato de como viveram aquele dia — e como quase foram fuzilados pelos revoltosos.

Conta Justino Pinto de Andrade: “Eu estava preso há mais de um ano, quando eclodiu o ataque à cadeia de São Paulo. De madrugada, ouvem-se disparos de armas de fogo no perímetro da cadeia (...). O ataque prosseguiu, cada vez mais violento, até que um blindado rebenta a porta frontal da cadeia, caminha para o seu interior, evolui, assustador, dentro do pátio, fazendo recuar a guarnição para a ala traseira, naquilo que nós, os presos, chamávamos ‘o comboio’. Na ala frontal, a defesa estava reduzida a alguns guardas que disparavam a partir do refeitório, já quase o último reduto. A prisão estava praticamente tomada. A guarnição rende-se mas nenhum deles é abatido. São, sim, apenas desarmados. (...) Fomos informados que Hélder Neto optara pelo suicídio. E fê-lo na presença de um guarda. Fartou-se de apelar para o Estado-Maior a pedir reforços, que tardavam a chegar. Hélder desesperou e disse ao guarda que desconfiava haver cumplicidades ao mais alto nível... Segundo o guarda, foram estas as suas derradeiras palavras: ‘Está tudo acabado…’ E disparou contra si próprio. Entraram, então, os novos senhores da situação, tendo à cabeça Urbano de Castro, um cantor muito conhecido, sobretudo nos subúrbios. (...) Sabata, um marginal que estava preso e que tivera no dia anterior inteira liberdade dentro da cadeia, encostou-nos à parede, já munido de metralhadora, com a clara intenção de nos fuzilar. Até que entram a Nandy e a Virinha, respetivamente, comandante e comissária Política do Destacamento Feminino. A Nandy, de gravidez já muito avançada, desarmou o Sabata e impediu que ele terminasse ali mesmo com as vidas dos presos da Revolta Activa... A elas devemos as nossas vidas (...).”


Conta António Carranca: "Não sou de me levantar de madrugada para ir à casa de banho, mas no dia 27 de maio de 1977, talvez pelo barulho dos carros lá fora, talvez por demasiada excitação na cela coletiva onde me encontrava, no primeiro andar da cadeia de São Paulo, em Luanda, lá estava eu. Espreitando pela janela — de onde normalmente víamos o que se passava no bairro de São Paulo, que quase rodeava a cadeia — vi uns quantos BRDM (carros de combate soviéticos) às voltas à cadeia, e também tropas a pé e viaturas militares ligeiras, assim como muitos populares a gritar palavras de ordem (...). De repente começa uma fuzilaria de um lado e de outro (...). Quando parecia estar-se num impasse, o condutor de uma das BRDM atira a viatura contra a porta e consegue entrar, e atrás dela os soldados e mais viaturas.

 

O BRDM deu a volta e chegou ao pátio, sempre a disparar e com os soldados atrás, ao passo que a guarnição da cadeia, comandada pelo sargento Miranda, procurava defender-se como podia. Pôde mal, como se viu: quer em número quer em qualidade, os atacantes eram superiores. De qualquer maneira, a meio da manhã já estava tudo acabado. A guarnição rendera-se. O BRDM retirou-se e os ocupantes começaram a tentar organizar-se. Alguns dos que tinham sido detidos depois de 21 de maio davam gritos de alegria e chamavam os que estavam no pátio para os virem libertar, o que aconteceu rapidamente. A maioria estava de semblante fechado, perante a incógnita que uma situação nova sempre representa. Para nós, eu em particular, depois da excitação da batalha, era altura de voltar a pensar em coisas sérias. A situação não era boa antes, estávamos presos pelo regime, sem garantias e sem prazos, não sabíamos o nosso futuro. E agora era pior? Era. Partindo do princípio de que haveria, senão uma mudança, pelo menos uma inflexão no sentido do endurecimento do regime, nesta sua nova faceta havia vários sectores que estavam longe de morrer de amores por nós — a começar pelo próprio Nito, e passando pelo “Kudibanguela”, que se começou logo a ouvir na rádio após os primeiros sinais de vitória — e as primeiras palavras de ordem não nos deixaram descansados... E isso começou a ver-se logo a seguir. Começaram por mandar sair das celas todos os que tinham sido detidos após o dia 21 de maio, sob a acusação de fracionismo, alguns tendo sido recebidos com grandes abraços no pátio, e penso que tenham saído logo porta fora da prisão.

 

Quanto aos restantes, tiveram tratamentos diferenciados. No nosso caso (OCA), tivemos um tratamento particular. Começaram por ir ao “comboio” (a zona onde se procedia aos interrogatórios, onde estavam os arquivos, e onde estavam as celas individuais onde eu próprio estivera — e onde já sabíamos que Hélder Neto se suicidara) buscar os nossos arquivos. Colocaram uma mesa no meio do pátio, onde puseram esses arquivos, e começaram a fazer a chamada, após o que cada um era mandado encostar à parede de uma das alas (as minhas iniciais são A, F e C, pelo que fui logo o primeiro; aparentemente os arquivos estavam bem organizados). Não foi dito explicitamente o que iam fazer connosco, mas dado os ânimos, as armas apontadas e as notícias que íamos ouvindo, não tínhamos grandes ilusões. E a própria imagem de estar “encostado à parede”, quando já se estava na prisão, não ajudava (...). Estávamos nós a fazer contas à vida, quando uma sequência de acontecimentos joga a nosso favor. Como é sabido, o ataque à cadeia de São Paulo foi da responsabilidade do batalhão feminino da 9ª Brigada, cuja comandante era a Virinha e a comissária política a Nandy. A Nandy (que se encontrava grávida na altura), era irmã do Kassange, comandante das FAPLA que tinha sido nosso companheiro (dos CAC/OCA) e que tinha morrido próximo do Lobito, juntamente com outro companheiro, em combate contra a UNITA. E pelos vistos a Nandy ou sabia disso ou simplesmente era uma mulher de bom senso; chegou e disse para se acabar com aquela charada, que não ia haver fuzilamentos nenhuns nem julgamentos expeditos. E assim foi. Talvez por isso eu (e muitos outros) se ainda aqui ando, deve-o à Nandy. Mas a Nandy não andou muito mais tempo, infelizmente. Foi presa, deixaram-na ter o filho, mas foi morta.”