Luanda - Ponto prévio: Este texto foi escrito em Maio de 2010 e faz parte do livro “Joaquim Pinto de Andrade, Uma quase autobiografia” lançado a semana passada em Lisboa.

Fonte: O PAÍS

Confesso que nunca tive um rebento saído da minha lavra de palavras, que tenha aguardado tanto tempo como este, para conhecer a luz do dia.


Demorou tanto tempo, que a pessoa que me pediu para escrevê-lo, a Dra. Victória de Almeida e Sousa, então viúva do insigne nacionalista angolano, acabou também por falecer, sem ver o seu projecto realizado.


Felizmente, que o sonho da minha amiga de homenagear o seu marido não foi com ela para a tumba fria que a todos nos aguarda um dia destes, como destino inapelável desta nossa passagem pelo planeta azul, onde tive o privilégio de ter conhecido pessoas como o Joaquim e a Victória.

No texto que deixo à vossa consideração e com o qual hoje preencho esta coluna, está certamente apenas um bocado do muito que foi a trajectória de Joaquim Pinto de Andrade pelos caminhos da libertação de Angola de todas as amarras que ele iniciou quando eu ainda nem sequer tinha nascido.
Saravá Joaquim Pinto de Andrade!


Após os anos duramente cinzentos da República Popular que coincidiram com o período de ostracismo a que foi sujeito na sua própria terra e pelos seus antigos companheiros da luta anti-colonial, Joaquim Pinto de Andrade (JPA) regressa na década de 90 à actividade política, tendo optado pela área da cidadania para fazer esta “rentreé”.


Foi um regresso como explicou, não à política com os olhos postos na conquista do poder, mas à política assumida num sentido muito mais largo e profundo.

 

“É um regresso assumido, meditado com antecedência e que penso é uma obrigação de qualquer cidadão”- proclamou.


É a fase da Associação Cívica Angolana (ACA), que JPA, com outros companheiros mais jovens do novo percurso, funda em Fevereiro de 1990, no meio dos mais virulentos ataques do sistema, para quem a pacifica iniciativa representava uma perigosa promoção da “desestabilização social”, protagonizada por  “elementos ambiciosos e oportunistas”, de acordo com as palavras de um ameaçador comunicado do BP do MPLA-PT.


Em termos históricos a ACA foi, sem dúvida, a primeira aposta da debutante e ainda muito temerosa sociedade civil angolana, num projecto realmente independente da tutela do asfixiante regime do partido-estado. Estava-se bem no inicio do processo de abertura política ao fim de 13 anos de devastadora guerra civil e de uma “ditadura democrática revolucionária”, eufemismo do discurso oficial que o MPLA-PT utilizava para se referir ao regime monopartidário. Alguns anos mais tarde, no balanço que viria a fazer desta fase, Joaquim Pinto de Andrade referiu-se a ACA, como tendo sido “uma ousada e arriscada iniciativa para abrir brechas na muralha do monopartidarismo e lutar pelos direitos cívicos, tais como a liberdade de associação e de expressão do pensamento”.


A ACA na sua visão, tinha como estratégia, “a criação e dinamização em Angola de uma sociedade civil atenta aos ventos da história e interveniente no nosso contexto político e social”. Três dias depois da sua eleição como Presidente da ACA, Joaquim Pinto de Andrade em entrevista concedida a BBC de Londres, apresentava a novel associação como um “lugar de debate, de encontro, e porventura também de desencontro, de consenso, e porventura também de dissenso, em que as várias posições se vão confrontando umas com as outras, em que as pessoas se vão conhecendo melhor, em que há uma desmobilização, digamos assim, uma descrispação dos espíritos, de modo que as pessoas encontrem um clima de diálogo, de confiança”.


Para JPA o espaço ACA assim dimensionado, seria uma contribuição muito grande para a paz com a criação dos necessários pressupostos psicológicos tendo em vista a ruptura com a filosofia da guerra como um recurso para a solução dos problemas políticos.


Em termos de utilidade e interesse, o pensamento de JPA sobre o papel da sociedade civil na democratização da sociedade angolana mantém-se até aos dias de hoje, até porque as transformações ocorridas nestes últimos vinte anos têm-se sido mais cosméticas do que realmente estruturantes. Em abono da verdade, JPA continua a estar coberto de razão quando afirmou que associações como a ACA terão sempre razão para existir “na medida em que o Poder Político, por sua própria natureza tem tendência a exercer a hegemonia e a substituir-se à sociedade, negando assim a plena participação dos cidadãos na vida e gestão da coisa pública”. Lamentavelmente, JPA também não teve forças suficientes para convencer os seus companheiros da época e a si próprio sobre a necessidade de se manter a ACA como um projecto prioritário e sustentável no âmbito do processo de democratização e de abertura ao multipartidarismo.

As eleições estavam à vista.


Os partidos passaram a ocupar o centro da agenda política nacional. Alguns meses depois das primeiras eleições multipartidárias em Angola, JPA reconhece não ter resistido a “partidite”, ao confessar que também ele tinha sido “levado a aceitar uma posição partidária”.


A sua estratégia era pela criação de uma “terceira força cujo objectivo essencial não seria tanto ganhar eleições mas impedir a maioria absoluta de qualquer dos dois grandes”.


Esta ideia começou a ser alimentada no seio da própria ACA que pretendeu transmiti-la a toda a sociedade.


JPA considerava que a “vitória hegemónica de um dos grandes seria na prática e no caso de Angola o prolongamento do regime de partido único”.


A estratégia falhou redondamente e JPA nem sequer conseguiu aguentar-se na liderança do refundado PRD, partido a que se juntou exactamente com esse propósito, num “abraço” que não terá durado mais de dois meses.


“Decididamente a minha vocação em política não é para ser realizada no campo partidário”- auto-criticou-se.


Já a observar uma “cura de repouso”, depois do desastre eleitoral de 1992, JPA reafirma a importância da ACA que segundo ele tinha, entretanto, entrado para o “congelador”, de onde nunca mais saiu até aos dias de hoje, não obstante alguns esforços que ainda foram sendo feitos ao longo dos últimos anos.


“Aquilo que sempre me preocupou e me levou a fundar a Associação Cívica é a emergência de uma sociedade civil forte, atenta, interveniente. Que é uma coisa absolutamente necessária para a democracia”- proclamou JPA.

In Coluna/O PAÍS (24-06-2017)