Luanda - Tal como prometemos, voltamos ao Programa de Saneamento Económico e Financeiro (SEF) que está assinalar neste mês de Junho 30 anos de história, desde que em 1987, Angola, ainda no tempo do monopartidarismo e do socialismo científico, foi testemunha da primeira reforma estrutural de carácter marcadamente liberal, que acabou por ficar pelo caminho na sequência das resistências que de imediato surgiram e não permitiram que a "primavera" durasse mais do que um ano de implementação efectiva, após a aprovação da nova estratégia.

Fonte: Opais


Seja como for, o SEF foi o grande percursor da opção pela economia de mercado/capitalismo que hoje “estamos com ela”, apesar de continuarmos a ter o Estado como sendo ainda o principal “patrão angolano”, com todas as consequências que se conhecem, sobretudo ao nível da transparência e da própria concorrência entre as empresas públicas e privadas.


Estamos a fazer este regresso ao passado com as memórias do economista José Cerqueira que foi efectivamente o principal rosto do referido programa.


Foi igualmente o seu grande mentor no plano da doutrina, o que vem contrariar algumas ideias que, por ocasião desta evocação histórica, estão a ser partilhadas num outro confrade, o Novo Jornal, no âmbito de um dossier sobre os 30 anos do SEF e que tem a assinatura do economista e professor universitário, Mário Nelson*.


Desde logo, Cerqueira rebate a ideia de que o SEF tenha sido uma consequência da assistência técnica da Hungria que para o efeito tinha em 1984 despachado até Luanda vários especialistas, numa missão chefiada pelo Professor Gregory Taloós.


Houve igualmente alguns dos nossos economistas que foram até Budapeste beber da experiência reformista que estava em curso naquele país do bloco comunista.


Na altura, a Hungria ainda a trilhar os passos da economia centralizada/planificada, estava a tentar reformar o modelo comunista por dentro, sem mexer muito nos seus fundamentos.


Para a época, os húngaros eram vistos com alguma simpatia por todos quantos achavam que era preciso fazer alguma coisa para tornar o sistema socialista mais competitivo, mais atractivo, tendo em conta a distância que o separava do capitalismo, um “gap” que não parava de se aprofundar.

Na verdade, segundo José Cerqueira, o que se passou é que esse intercâmbio entrou num beco sem saída, devido à incapacidade da parte angolana de se inspirar na experiência húngara para a elaboração de um autêntico programa angolano de reformas. Cerqueira recorda-se que depois da reforma em Angola ter tido propriamente início, o Prof. Talóos disse-lhe que o SEF era um programa autónomo, sem qualquer dependência externa.


O economista angolano não tem qualquer dúvida em assumir a 100% a paternidade da concepção do documento reitor que desencadeou o SEF.


Mais do que isso, recorda-se do pormenor como tudo se passou há 30 anos, depois de em 1985 o MPLA ter realizado o seu 2º Congresso, onde segundo a sua avaliação de forma alguma o socialismo como modelo de gestão económica foi posto em causa.


Antes pelo contrário. Regressado de França na altura onde se estava a doutorar, José Cerqueira foi contactado e convidado pelo então Ministro do Plano, António Henriques, de quem já era amigo, a preparar um conjunto de ideias mestras tendo em vista a elaboração de um plano a ser submetido ao Presidente José Eduardo dos Santos (JES) que deveria ser simultaneamente de reforma económica e destinado a fazer face à crise financeira que se instalara no país como resultado da brutal queda do preço do barril do petróleo no mercado internacional que chegou a ser comercializado a 8 dólares.


Tendo em conta o nível avançado da sua formação académica em França, Cerqueira já não tinha a melhor avaliação do desempenho da experiência húngara e da sua base teórica que na época fazia algum furor junto dos economistas angolanos ainda presos aos postulados da economia centralizada/planificada.


O plano concebido por Cerqueira foi aceite por JES numa reunião em que também estiveram presentes os ministros António Henriques, Augusto de Matos e Kundi Paihama, tendo ele nesse encontro feito a defesa do mesmo.


É a partir desta reunião que José Cerqueira considera que o SEF teve propriamente início.


A primeira grande media do SEF foi a regularização das finanças externas de Angola, tendo Cerqueira feito a defesa da sua reestruturação, começando por uma abordagem do Clube de Paris, numa altura em que Angola ainda não era membro do FMI, o que dificultava bastante o contacto com aquele poderoso grupo de credores ocidentais.


No rol da suas memórias, Cerqueira dificilmente se esquecerá da declaração pública de JES proferida no final de um congresso do MPLA realizado já depois da paz com a UNITA ter sido assinada, como sendo o maior reconhecimento da sua pessoa como figura central do SEF.


Na altura segundo ele, o Presidente angolano afirmou, nomeadamente, que “António Henriques e José Cerqueira exerceram um bom trabalho”. In Coluna/O PAÍS (16-06-2017)


*PS- Notamos que nas duas derradeiras edições do "Dossier 30 anos do SEF" que Mário Nelson publicou durante estes últimos três meses no Novo Jornal (desde finais de Fevereiro) já houve da sua parte um melhor esclarecimento das águas deste período histórico.


Assim sendo, apraz-nos aqui citá-lo na parte onde identifica melhor os protagonistas destes acontecimentos e a sua sequência no tempo, reconhecendo que foi efectivamente o economista José Manuel Cerqueira o "autor do programa SEF", enquanto ele trabalhou "na preparação das orientações do IIº Congresso com a equipa de especialistas húngaros que chegou a Luanda em Janeiro de 1984, tendo então sido elaborado o primeiro estudo que despoletou todo o processo de reformas".


É, contudo, neste pormenor que está a grande divergência entre os dois, pois como já o dissémos, José Cerqueira entende que o programa SEF conforme ele o concebeu e foi inicialmente implementado, já não tinha nada a ver com as teses do IIº Congresso nas quais ele também não encontrou grande relevância tendo em vista a reforma que era necessária.


Neste regresso ao passado, Cerqueira faz questão de mencionar e homenagear "o grande economista francês Bernard Schmitt, que, a meu convite, fez três visitas de trabalho a Luanda durante o SEF. Os trabalhos importantes que ele elaborou, acerca da dívida exterior e acerca do enclave do petróleo em Angola, envelhecem em gavetas, simplesmente porque este economista francês não se enquadra no clube interesseiro dos bons alunos do FMI. Ele é de facto um notável cientista, como provam seus numerosos livros, seus cursos na Universidade de Dijon, assim como as duas medalhas de prata que lhe foram atribuídas pelo CNRS (Centro Francês de Pesquiza Científica)."