Luanda  - Foi nos últimos tempos protagonista de uma decisão inédita: solicitou a retirada do seu nome da lista de candidatos a deputados do MPLA. Há pouco mais de duas semanas, criticou o então Projecto de Lei sobre o Estatuto dos ex-Presidentes. Nesta entrevista ao Novo Jornal, Irene Neto apresenta os seus argumentos de razão sobre vários temas da vida passada e futura do país.
 
*NOK NOGUEIRA
Fonte: Novo Jornal
 
«A Constituição precisa de ser alterada porque limita a democracia»
 
Segundo um documento a que o Novo Jornal teve acesso em Fevereiro, e que deu destaque, a deputada Irene Neto teria escrito ao comité central do seu partido solicitando que fosse retirado o seu nome da lista de candidatos a deputados por, alegadamente, não ter sido consultada. Foi uma decisão difícil e tomada de consciência tranquila?
 
A solicitação para a retirada da lista dos candidatos a deputados resulta do facto de o último mandato ter sido severamente condicionado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional e de ter já cumprido dois mandatos como parlamentar. Foi de facto uma decisão bastante ponderada mas tranquila. A vida de uma pessoa não se resume à política. O nosso país precisa das contribuições de todos nas mais diversas actividades.
 
 
Porque só agora, isto com base no que se alega no referido documento, é que compreende que a Assembleia tem desempenhado um papel meramente “passivo e subalternizado”?
Não foi apenas agora que nos apercebemos disto. O efeito do Acórdão do Tribunal Constitucional manifestou-se no final da segunda Legislatura, durante a qual ainda se realizaram bastantes acções de controlo e fiscalização às acções do Executivo, mas foi sobretudo nesta terceira Legislatura que a interpretação da Constituição da República de Angola (CRA) restringiu sobremaneira a acção dos deputados. Essencialmente, a competência de controlo e fiscalização que cabe à Assembleia Nacional (AN) passou a ser exercida através da análise e aprovação do Orçamento Geral do Estado, da análise da Conta Geral do Estado, de autorizações específicas ao Executivo e por algumas visitas realizadas pelos grupos parlamentares. Nesta situação, a AN ficou esvaziada, passiva e subalternizada.
 
Perdeu iniciativa e autonomia. A questão da separação dos poderes, executivo e legislativo, com base neste sistema de base presidencial, em que o Executivo é um órgão unipessoal, com independência política em relação a Assembleia Nacional, apesar de advir de um sistema de eleição parlamentar, frena a possibilidade de haver uma fiscalização mais directa, sendo esta considerada como uma subordinação política inaceitável do Executivo perante o poder legislativo.
 
Na prática, redunda na restrição das áreas de controlo da Assembleia Nacional. O âmbito da função política da Assembleia Nacional fica subtraído de certa forma, pois limita-se a sua acção à “função constitucional principal, que é a função legiferante”.
 
Compreende-se que as posições críticas sejam mais visíveis quando provenientes da oposição. A competência política e legislativa de uma maioria parlamentar está obviamente em consonância com o programa do seu Executivo e as nossas apreciações ocorrem geralmente em ambiente partidário. Isto não significa que todas as decisões sejam aceites unanimemente.
 
 
Estranhamente todos esses factos se dão numa altura em que já temos Constituição...
 
A actual CRA não serve os interesses estratégicos da Nação. A CRA precisa de ser alterada porque limita a democracia, restringe as liberdades fundamentais e bloqueia o funcionamento de uma economia de mercado. Porquê? Porque a CRA actual concentra e centraliza o poder numa única pessoa. O presidencialismo quase imperial asfixia a democracia e desmantela os contrapoderes. A concentração pessoal do poder de decisão bloqueia a economia que necessita de liberdade e de escolhas rápidas, diárias, racionais e informadas.
 
Angola é demasiado grande e complexa para depender de uma única pessoa. Actualmente é impossível decidir sobre tudo. O engarrafamento e os atrasos nas decisões prejudicam a economia. Angola é um país livre com cidadãos racionais. A democracia demanda divisão de trabalho e de poderes. Demanda contrapoderes, descentralização e equilíbrios.
 
 
Alguma razão para não ter subscrito a reclamação na altura junto do Tribunal Constitucional solicitando que fosse analisada a questão da fiscalização dos actos do executivo?
 
Foram vinte e dois deputados da Comissão dos Assuntos Constitucionais e Jurídicos da Assembleia Nacional que requereram ao Tribunal Constitucional, em 7 de Agosto de 2013, a apreciação da constitucionalidade de cinco artigos do Regimento da Assembleia Nacional, aprovado a 2 de Maio de 2012. A legitimidade dos requerentes ficou salvaguardada por constituírem 1/10 de deputados em efectividade de funções. Não foi necessário adicionar a minha subscrição.
 
Ser uma voz dissonante no MPLA pode ser sinónimo de suicídio político ou sente que há uma base social de apoio a vários níveis que lhe permite ajudar a inverter uma tendência cada vez menos social-democrata?
Eu julgo que, antes de mais nada, temos o dever de ser coerentes. Sabe que o slogan do MPLA é de corrigir o que está mal. O MPLA reconhece que há insuficiências, há erros e práticas nocivas. Não sou a única pessoa no MPLA que o vê e diz. Se assim fosse, este slogan não teria surgido. Quando um candidato presidencial se baseia nesta linha de prumo, está tudo dito.
 
Passou a ser alvo de algum tratamento hostil por parte de colegas após as declarações sobre o estado do Parlamento?
Não, de todo. Os deputados são pessoas cordatas e muitos deles conhecidos de longa data. Muitos, se não todos, partilham a minha opinião.
 
 
A Irene Neto sente-se ou não uma privilegiada neste sentido, ou seja, por ser filha do Presidente Neto, acrescida ao facto de, por ter voz própria, autonomia de pensamento e solidez intelectual, se fazer ouvir, quando não concorda com alguma posição vinda da direcção do MPLA?
Sim, eu sou filha do Presidente Agostinho Neto. Mais do que um privilégio, este facto confere-me uma responsabilidade acrescida.
 
 
Que repercussão a nível pessoal teve a crítica que fez ao então projecto de lei sobre o Estatuto dos ex-Presidentes?
Nenhuma. O debate foi para estabelecer um regime para os futuros antigos Presidentes da República com base na CRA. Como tal, pautou-se pela constitucionalidade, pelo bom senso e pela necessidade urgente de se colmatar o vazio legal. A Fundação Agostinho Neto já tinha, aliás, organizado uma mesa redonda sobre “O dia seguinte dos dirigentes e governantes”, em 2012. Com esse repto, poder-se-ia ter começado a discutir o assunto há mais tempo.
 
Se em sede da Assembleia do Povo, na década de 1990, a Família Neto tivesse merecido a atenção que devia sobre o assunto do estatuto de ex-Presidente, a Irene Neto teria hoje tido a mesma posição crítica em relação às regalias?
Se as premissas fossem outras, a história teria sido diferente. Em 1990, não estava vigente esta CRA de 2010, mas também estaria delineado claramente o que é e o que não é constitucional. É com base na Lei Constitucional que se estabeleceriam os critérios para o estatuto de antigo Presidente da República, que, nesse caso, foi o Fundador da República. Naquela época, a primeira-dama não tinha à sua disposição nem gabinete nem salário. O seu esposo faleceu em funções. A primeira família presidencial não dispunha de recursos financeiros próprios para assegurar a sua sobrevivência. Os filhos ou eram menores ou estudantes solteiros. O quadro actual e os futuros são e serão completamente diferentes.
 
 Criticar como criticou o Presidente José Eduardo dos Santos, numa altura em que este se faz à porta de saída, não será sinónimo de algum cansaço, uma vez que durante o seu longo mandato nunca a família Neto trouxe à discussão pública nem expôs o assunto como o fez recentemente? Embora se saiba que foram sempre procurando tratar do assunto pelos canais devidos, sem publicidade, diga-se...
A família Neto sempre procurou tratar do assunto, como bem diz. Fê-lo directamente e tal não foi publicitado.
 
 
É sempre a Fundação Dr. Agostinho Neto a reagir mais vezes a críticas dirigidas ao seu patrono, sobretudo quando nos aproximamos do 27 de Maio. Não pensa que é chegada a hora de a Família Neto contar a sua versão dos factos?
Nós sempre nos manifestamos. Sempre. Desde as intervenções da minha mãe, em Angola ou fora do país, até aos artigos que eu publicava nos jornais. Mas julga que o 27 de Maio é um assunto familiar? Ou de uma Fundação? É matéria de Estado e do MPLA. O MPLA e o Estado não se podem eximir das suas responsabilidades, deixando a viúva e filhos do antigo chefe de Estado carregar o fardo desse pesadelo. Não lhes fica bem.
Nesta fase da vida da Nação, 42 anos após a independência, atingimos uma certa maturidade política, ainda que o país seja muito jovem, que nos permite tratar do futuro e dos inúmeros desafios que enfrentamos, olhando para a frente. Mas temos também de resolver assuntos pendentes, feridas por cicatrizar.
 
Temos de ser pró-activos, tomar a iniciativa como pessoas de bem, criar uma Angola de futuro. Não podemos ficar reféns de passados conturbados. Não é isto que nos define.
 
 
Qual é o grau de revolta ao verem tratar o vosso pai, e no caso de sua Mãe, o marido, como tendo sido o “grande responsável” pelo número ainda hoje desconhecido de mortes que ocorreram no 27 de Maio de 1997 e não estando ele vivo para se defender?
Chegou a hora de colocar um ponto final nesta história. Se quer mesmo saber, esta culpa, para não morrer solteira, foi imputada ao Presidente Agostinho Neto porque não estava vivo. Há muitos culpados vivos, há muitos traidores, cúmplices, esquivos, ambíguos, cínicos, a quem nunca conveio a criação de uma Comissão da Verdade e Reconciliação para tratar de um assunto tão sensível. Em todos os países em que ocorreram situações do género, esta foi uma solução para tratar de curar feridas abertas, para que problemas que uns criaram não passassem para gerações que nada têm que ver com o assunto. Para evitar a perpetuação do trauma, da dúvida, da incerteza, da inverdade e da enorme desconfiança e especulação, por uma questão de justiça, julgo termos a obrigação de resolver este diferendo de uma vez por todas.
 
 
A quem não convém fazê-lo?
 O povo que conheceu Agostinho Neto sabe muito bem quem ele foi, o que representou e ainda representa e não cai nas armadilhas redutoras que se pretendem. Há muita deslealdade e cobardia nisto tudo, uma vergonha, uma nódoa no nosso processo revolucionário que vinha carregado de uma auréola libertadora, de esperança em dar poder ao povo angolano após a longa noite colonial. Todos os processos de libertação e de autonomia esbarram contra forças retrógradas, contra interesses poderosos, contra ordens preestabelecidas.
 
Agostinho Neto nunca fugiu desse risco e contribuiu sobremaneira para que Angola não fosse hoje um país dividido ou um mero anexo da República Democrática do Congo ou da África do Sul.
 
Que papel pode voltar a ter o MPLA, numa sociedade caracterizada por extremas desigualdades e por um poder exageradamente pessoalizado, centralizador, pouco atento à realidade nacional, que vive como se o País fosse só Luanda?
O MPLA tem de mudar. Para melhor. Tem de praticar o que apregoa, não fazer letra morta dos seus princípios fundacionais e não brincar com o povo. Já o meu pai dizia que não se deve tratar o povo como uma criança. Após a independência, o povo emancipou-se politicamente, ganhou cidadania e maioridade, tornou-se dono do seu destino. Para reconquistar a confiança e inspirar a adesão, o modelo de sociedade tem de ser repensado. Um discurso, uma prática. Será uma tarefa árdua mas absolutamente vital, se o MPLA pretender ser a escolha certa das populações.
 
 
Há uma solução para isso?
Será indispensável harmonizar o Estado de Direito com a democracia participativa, a economia de mercado e a solidariedade social. Entre as prioridades, haverá que eleger a redução progressiva da pobreza, a eliminação do analfabetismo e todo o seu corolário de ignorância, fácil manipulação e crendices; a eliminação das desigualdades económicas e de infra-estruturas entre os territórios; a promoção das actividades agrícolas e a integração de todas as actividades informais no território nacional.
 
Para locomover o novo modelo, é curial expandir a economia mineral com predominância para a actividade petrolífera e diamantífera, aumentar o investimento público doméstico e estrangeiro, alargar a cooperação com todos os países sem discriminação das ditas “parcerias estratégicas”, mobilizar financiamentos com juros mais baixos e melhorar a governação de fundos públicos a aplicar em infra-estruturas, educação e saúde, privilegiando sempre uma elevada produtividade do capital e da mão-de-obra. É do MPLA que esperamos muito mais. É das maiorias silenciosas e desencantadas no MPLA que se espera estarem à altura do seu compromisso histórico, que honrem o legado de propósitos nobres que tantos defenderam com toda a sua alma e força vital.
 
De todos os angolanos se esperam as melhores intenções pelo bem da Nação, pela harmonia, o progresso, a paz e o desenvolvimento. Que não caiamos em tentações de diabolização de uns e outros. Estamos unidos na Pátria que exige de nós, de todos nós, o melhor. Somos, uma vez mais, chamados a demonstrar o que valemos, com coragem e lucidez. Família Neto
 
 
Que tipo de relação a família Neto manteve esses anos todos com a actual Presidência da República?
A mesma que o resto dos cidadãos e que os militantes do MPLA.
 
As críticas que deixa latente sobre o enriquecimento de famílias não serão sinónimo de que durante quase 40 anos imperou uma grande distância nessa relação?
De facto, há uma crença generalizada de que sempre estivemos muito próximos do poder, quer político quer económico. Atribuem-nos a Fundação Sagrada Esperança, bairros, prédios, etc. Claro que tudo isso não passa de mentiras, mitos e ambiguidades, propositadas ou não. A nossa família nunca esteve envolvida em práticas imorais ou ilegais. Temos noção do que somos. Sempre existiu um distanciamento, é verdade.
 
 
Não estando na Assembleia a partir deste ano, é um anúncio antecipado do fim da sua vida política?
Nunca diga nunca. A política não é apanágio exclusivo do Parlamento.
 
 
Uma candidatura à Presidência da República seria hipótese, se a Constituição fosse alterada e permitisse candidaturas independentes?
Quem pode prever o futuro? Mas é um cargo para o qual não tenho nenhuma apetência. E porque seria uma candidatura independente? Sou do MPLA e certamente que tenho e teria o apoio dos militantes do MPLA.
 
 
É este o país com o qual sonhou?
Com certeza que não. Os desvios monumentais, descarados e obscenos, ocorreram logo após a morte do Fundador da Nação. Criou-se um clima de impunidade que a guerra civil, prolongada desnecessariamente, permitiu e a mudança de regime político acelerou.
 
A partir daí, seja porque se aventou a criação de uma burguesia nacional escolhida a dedo e não por mérito próprio, com a delapidação do erário público para a “acumulação primitiva de capital” de alguns eleitos em detrimento da maioria, seja pela galopante ganância e voracidade de velhos e jovens ambiciosos, deslumbrados pelo reluzir das pratas e de mil oiros.