Luanda - O jornalista e activista angolano Rafael Marques acredita que o Presidente eleito, segundo resultados provisórios, pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), João Lourenço, deverá governar o país como "subordinado” de José Eduardo dos Santos, o chefe de Estado cessante. Em entrevista à DW, o jornalista, já crítico ao atual Governo, explica porque chama as eleições angolanas em 2017 de "roubadas”.

Fonte: DW

Segundo Marques, o "fantasma da guerra” é um "discurso” usado pelo MPLA porque o partido tem medo de perder o poder, e isso nota-se em 2017, diz Rafael Marques. E apela à uma reforma política e económica profunda que começaria com a mudança de ministros em função, além das demissões de Isabel dos Santos da presidência da Sonangol e de José Filomeno dos Santos do Fundo Soberano. Ambos são filhos do Presidente cessante, José Eduardo dos Santos. Entretanto, o jornalista acredita que o Presidente eleito, (segundo os resultados provisórios da CNE) João Lourenço, não tenha força política para mudar o que está mal.

 

DW África: Acredita que João Lourenço quer e vai governar como subordinado de José Eduardo dos Santos? Por quê?
Rafael Marques: É um caso de subordinação efetiva porque João Lourenço é vice-presidente do MPLA. Quem designa o Governo, quem determina a agenda de governação do partido, é o presidente do MPLA. Mas desta vez, o presidente do MPLA não é o Presidente da República. Há, portanto, uma clara subordinação de João Lourenço ao poder de José Eduardo dos Santos.

 

DW África: Você já criticou a imprensa internacional, durante a cobertura das eleições, por não esclarecer os aspetos da legislação angolana que dão poder a José Eduardo dos Santos enquanto líder do MPLA, mesmo com João Lourenço como Presidente. Quais são esses aspetos? Como João Lourenço poderá contornar esse quadro?
RM: São os estatutos do MPLA, que precisam ser lidos em combinação com a Constituição angolana. É a combinação desses dois estatutos que tornava José Eduardo dos Santos um "Presidente imperial”. Contudo, é a primeira vez, em 42 anos, que teremos uma separação de funções entre o presidente do MPLA e o Presidente da República. Desde a independência de Angola, essas duas funções eram ocupadas por uma só pessoa (primeiro com Agostinho Neto e depois com José Eduardo dos Santos).


DW África: A pensar esse cenário, como João Lourenço terá coragem para corrigir o que está mal e criar mudanças políticas e económicas em Angola?
RM: "Corrigir o que está mal” é um discurso retórico de João Lourenço. A primeira correção que ele deve fazer é exigir que a Comissão Nacional Eleitoral (CNE) faça o apuramento dos votos respeitando a lei. Não se pode anunciar resultados eleitorais "fabricados” na sede do MPLA. Júlia Ferreira, porta-voz da Assembleia Nacional, transmitiu os resultados tal como recebeu do MPLA. Só que essa, até hoje, chama o secretário para os assuntos políticos e eleitorais do referido partido, senhor João de Almeida Martins, de chefe. Assim o foi durante muitos anos. Então, temos aqui uma clara subordinação da CNE aos mandos do MPLA.


DW África: Mas por que a CNE se encontra nessa situação de "subordinação”?
RM: Porque, com a maioria qualificada das eleições de 2008 e 2012, o MPLA tem a maioria dos assentos na CNE que, por sua vez, reflete a distribuição de assentos no Parlamento. Então, o MPLA controla e designa a CNE em termos efetivos. E temos lá um Juiz, André Silva Neto, que deveria ter o "mínimo” de vergonha e vir a público dizer que serão cumpridos os preceitos legais, mas nem isso se faz. É só ver os discursos: João Martins anuncia que o MPLA ganhou. Pouco depois, a própria Júlia Ferreira, que ainda estava "desfasada da realidade”, diz que a CNE ainda não tinha começado a contagem dos votos. O MPLA, entretanto, anunciava vitória com cerca de 65% dos votos. Já a porta-voz da CNE teve de beber 3 litros de água para ter coragem de falar, durante a conferência de imprensa, ao mencionar e ratificar os números que lhe foram dados pelo MPLA. E tremia, porque estava a mentir.


DW África: Em entrevista recente, Rafael Marques afirmou que o MPLA perdeu o apoio de grande parte da população por isso "não vai conseguir governar". Por que desta vez, em 2017, os angolanos estarão mais críticos ao MPLA?
RM: As pessoas estão mais conscientes. Mas a grande diferença é que o MPLA soube - e José Eduardo dos Santos foi um "mestre” - usar corrupção para ganhar o apoio da sociedade. Todos em Angola têm oportunidade de se envolver num esquema qualquer de sobrevivência, porque o próprio Presidente, e vários dirigentes do MPLA, sempre disseram que em Angola ninguém vive do seu salário. Portanto, a corrupção foi institucionalizada.


DW África: O "fantasma da guerra" é tema presente em Angola. Acredita que o medo tenha levado angolanos a reeleger o MPLA em 2017, apesar das críticas de fraude?
RM: "O fantasma da guerra” é um discurso que o MPLA usa em seus momentos de maior fraqueza. Assim o faz agora. Desde 2002, nunca se apresentou qualquer prova de que a UNITA - mesmo após 15 anos do fim da guerra - tenha enveredado por uma ação de distúrbios da paz. Ao invés de fazer confusão, tem cumprido com seu papel como parte do processo de paz. Quem viola a paz é o MPLA. Há poucos dias ouvi o secretário para os assuntos políticos e eleitorais do MPLA, João de Almeida Martins, a dizer que "isso” lembraria a UNITA quando, em 1992, recusou os resultados eleitorais culminando-se numa nova guerra.

É pura mentira, conforme já certificaram as Nações Unidas, Portugal, a União Europeia e os Estados Unidos e vários outros países. Há pouco estive com uma delegação estrangeira e dei-lhes a cópia do Jornal de Angola do dia 17 de outubro de 1992 em que [Jonas] Savimbi aceitava os resultados eleitorais como estavam. Naquela época eu trabalhava para o Jornal de Angola e publicamos oficialmente a posição da UNITA aceitando os resultados eleitorais como estavam. E isso fora transmitido às Nações Unidas. Mas, como se elegeu a nível internacional, que a UNITA tinha de ser o "bode expiatório para tudo”. É claro, a UNITA precisa pagar pelos seus crimes assim como o MPLA. Por isso, precisamos de um país que tenha um Governo que sirva aos interesses da população para, um dia, instaurarmos uma comissão de inquérito para averiguar a responsabilidade que cada um desses lados teve durante a guerra.


DW África: Então, com que cara e com que poder João Lourenço deverá governar nos próximos cinco anos?
RM: Acredito que será com cara "podre”. Não estou a ver João Lourenço fazer reformas. Há milhares de hectares de dirigentes angolanos – e João Lourenço é um dos maiores latifundiários de terras em Angola. O que estão a fazer? Qual é o benefício dessas terras e dos créditos que receberam? É uma questão a ser abordada, mas não acredito que ele tenha coragem para fazê-lo. E depois, Lourenço já anunciou que vai ser "o senhor do milagre económico”. Isso é uma farsa. Para começar, para haver "milagre económico”, é preciso reaver os bens do Estado saqueados pelos colegas dele. Só que ele mesmo não tem vontade política e nem poder para reformar. Na verdade, isso começaria com a demissão imediata de Isabel dos Santos da Sonangol e de José Filomeno dos Santos do Fundo Soberano [ambos os filhos do Presidente cessante, José Eduardo dos Santos]. Além da demissão de grande parte dos ministros em funções e do Procurador-geral, passando-se a ter uma instituição vocacionada exclusivamente para reaver o património público delapidado e saqueado pelos dirigentes do MPLA. E mais cooperação internacional, inclusive com a procuradoria-geral portuguesa, para que esses indivíduos acusados de esconder parte dos proveitos roubados do país sejam julgados, e os fundos repatriados para Angola. Sem fazer isso, falar em "milagre económico” é uma ilusão.


DW África: Apesar das críticas, João Lourenço quer e deverá governar mesmo assim. Mas até quando?
RM: Até as pessoas notarem que o seu desespero é insustentável.