Luanda - Escrevem os Venerandos Juízes Conselheiros e as Venerandas Juízas Conselheiras do TC que “o procedimento para o apuramento provisório vem claramente regulamentado na Directiva n.° 8/17, de 18 de Agosto e publicada em Diário da República n.° 142, I Série.” (Acórdão N.° 458/2017, p.6). Todavia, através desta Directiva a CNE regulamenta uma matéria que não é da sua competência ferindo a Constituição, o artigo 164.°/d da CRA. Este artigo atribui apenas à Assembleia Nacional competência para legislar sobre as eleições.

Fonte: Club-k.net

E do artigo 164°/d da CRA se deduz, também, uma reserva de lei. Se a Constituição impõe que determinadas matérias só podem ser legisladas pela Assembleia Nacional; e se a forma dos actos normativos da Assembleia Nacional é a lei, logo, essas matérias também estão reservadas apenas à lei, por consequência e concomitantemente, por a lei ser a forma do acto normativo da competência exclusiva da Assembleia Nacional.

 

A reserva de competência legislativa consagrada no artigo 164.° para além de ser orgânica – compete a um órgão, no caso à Assembleia Nacional, legislar sobre essas matérias – é ao mesmo tempo uma reserva legislativa de densificação total. O que significa que a regulamentação das eleições tem de ser feita na totalidade apenas pela Assembleia Nacional.

 

Já existe um precedente na jurisprudência do Tribunal Constitucional de Angola sobre a violação do artigo 164.°. O Decreto Presidencial N.° 74/15 de 23 de Março (Regulamento sobre as ONGs) regulamentou matéria atinente às ONGs. No entanto, a CRA atribui essa competência exclusivamente à Assembleia Nacional. Em face dessa constatação, o TC diz que “Estamos, pois, em presença de um diploma com designação e forma de regulamento mas com conteúdo material de lei e em matéria que, à luz do princípio da separação de poderes, a Constituição considera ser domínio de reserva absoluta da Assembleia Nacional” (Acórdão N.° 447/2017, p. 10), e, em consequência, declarou esse regulamento inconstitucional porque ao Presidente da República não é atribuída a competência para “legislar” sobre essa matéria.

 

Confrontados com a Directiva n.° 8/17, de 18 de Agosto, utilizando a sobredita formulação do Tribunal Constitucional, os Venerandos Juízes Conselheiros e as Venerandas Juízas Conselheiras deste mesmo tribunal deveriam ter dito “Estamos, pois, em presença de [uma Directiva] com [...] forma de regulamento mas com conteúdo material de lei e em matéria que, à luz do princípio da separação de poderes, a Constituição considera ser domínio de reserva absoluta da Assembleia Nacional.” E deveriam, igualmente, ter declarado a Directiva n.° 8/17, de 18 de Agosto como sendo inconstitucional por força da violação da alínea d) do artigo 164.° da CRA.

 

A Directiva n.° 8/17, de 18 de Agosto, ex-novo, e inovadoramente, introduz a CNE como novíssimo destinário das actas síntese das assembleias de voto a enviar pelos presidentes das Comissões Municipais Eleitorais imediatamente depois do apuramento nas mesas de voto (note-se em flagrante contradição com o estatuído no n.° 2 do artigo 123° da LEOG), permitindo que aquele mesmo órgão (a CNE) tenha feito o apuramento provincial e o apuramento nacional provisório. Contudo, trata-se de um procedimento que não pode ter lugar, senão por escolha do legislador, a Assembleia Nacional, único órgão competente para decidir sobre aquela opção, por força do princípio da reserva de lei, reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional (artigo 164.°/d da CRA), que mais uma vez se reitera nesta opinião.

O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ESTAVA OBRIGADO À PROCEDER À FISCALIZAÇÃO CONCRETA DA CONSTITUCIONALIDADE DA DIRECTIVA N.° 8/17, DE 18 DE AGOSTO ANTES DE A APLICAR NO QUADRO DO RECURSO DA CASA-CE SOBRE O QUAL SE PRONUNCIOU

“O dever judicial de não aplicar normas inconstitucionais estende-se a todos os casos em que os tribunais são chamados a aplicar normas infraconstitucionais independentemente de qualquer «feito submetido a julgamento», e mesmo quando desempenham funções não jurisdicionais, como consequência directa do princípio da subordinação à lei, o que começa por ser submissão à lei fundamental” (Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 1993, p.797). Este entendimento doutrinal tem perfeito acolhimento na ordem constitucional angolana: “Os Tribunais garantem a observância da Constituição, das demais leis e demais disposições normativas vigentes [...]”( artigo 177.o/1 da CRA). “No exercício da função jurisdicional, os Tribunais são independents e imparciais, estando apenas sujeitos a Constituição e à lei” ( artigo 175.o da CRA). O que se traduz no dever dos tribunais fazerem respeitar (e eles próprios respeitarem) a Constituição, por exemplo, com a obrigação de verificarem se as normas ordinárias a aplicar não violam a Constituição: nos processos judiciais, os tribunais aplicam ou desaplicam normas com fundamento num juízo de constitucionalidade, o que se deduz das alínea d) e e) do n.° 2 do artigo 180.° da CRA, quer dizer os tribunais procedem à fiscalização concreta da constitucionalidade. E, igualmente importante, todas as decisões tomadas pelos tribunais devem estar em conformidade com a Constituição, por força de outras disposições combinadas da Constituição.

 

Confrontado com a Directiva n.° 8/17 de 18 de Agosto da CNE em sede do recurso da coligação CASA-CE, o TC estava obrigado a verificar se esse regulamento está ou não em conformidade com a Constituição, antes mesmo de o aplicar. As Venerandas Juízas Conselheiras e os Venerandos Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional praticaram uma omissão do dever a que estão sujeitos por imperativo constitucional no que à fiscalização concreta da constitucionalidade da Directiva n.° 8/17, de 18 de Agosto da CNE diz respeito. Gravíssima!

A LEI ORGÂNICA SOBRE AS ELEIÇÕES GERAIS (LOEG) PRESCREVE O PROCEDIMENTO PARA OS VÁRIOS TIPOS DE APURAMENTOS QUE DEVEM TER LUGAR

As normas sobre o apuramento municipal nas mesas de voto estão inscritas entre os artigos 119.° e 123.° e a informação dos resultados municiapais à Comissão Provincial no art. 124.°; para o apuramento provincial entre os artigos 125.° e 130.°; e para o apuramento nacional provisório e definitivo entre os artigos 131.° e 138.°. Todos eles mais evidentes e claros no que diz respeito à sua letra e espírito, se interpretados de forma sistemática!

 

A LOEG, inequivocamente, determina que órgãos devem receber as actas das operações eleitorais e as actas de cada mesa de voto: “1. Uma acta das operações eleitorais é elaborada pelo secretário da mesa e devidamente assinada com letra legível pelo presidente, secretário, escrutinadores e pelos delegados de lista, colocado num envelope que deve ser devidamente lacrado e remetido à respectiva Comissão Municipal Eleitoral. 2. Para efeitos do apuramento provisório, os resultados eleitorais obtidos por cada candidatura em cada mesa de voto, devem ser transmitidos pelos presidentes das assembleias de voto às Comissões Provinciais Eleitorais, pela via mais rápida, devidamente certificada pela Comissão Nacional” (artigo 123.°/Acta das operações eleitorais). E “1. À medida que for recebendo as actas das Assembleias de Voto, a Comissão Municipal Eleitoral informa imediatamente à Comissão Provincial Eleitoral dos resultados apurados, por mesa de voto. 2. A Comissão Municipal Eleitoral remete todo o expediente do processo eleitoral à Comissão Provincial para efeito do disposto nos artigos seguintes. 3. A informação prevista no n.° 1 do presente artigo deve ser feita pelo meio mais rápido à disposição” (artigo 124.°/Informação dos resultados municipais/SECÇÃO II Apuramento Municipal e Provincial). Note-se, bem, não há nenhum artigo da LOEG que manda os presidentes das Comissões Municipais Eleitorais enviar a “Acta Síntese da Assembleia de voto” à CNE. Este comando é uma inovação introduzida pela CNE através da Directiva n.° 8/17, de 18 de Agosto.

 

Nos artigos relacionados e referentes ao procedimento do apuramento nacional provisório também não existe disposição legal que manda o presidente da Comissão Municipal Eleitoral enviar a “Acta Síntese da Assembleia de voto” à CNE. Passemos em revista o procedimento para o apuramento nacional provisório. “Compete à Comissão Nacional Eleitoral a centralização dos resultados gerais provisórios das eleições, com base nos dados fornecidos pelas Comissões Provinciais, nos termos do artigo 130.° da presente lei” (n.° 1 do artigo 131.°). O artigo 130.° tem três números, e interessa aqui reproduzir os dois primeiros, que dizem o seguinte: “1. Das operações do apuramento provincial é imediatamente lavrada acta onde constem os resultados apurados, as dúvidas e as reclamações apresentadas no prazo de 24 horas e as decisões que sobre eles tenham sido tomadas. 2. Dois exemplares da acta do apuramento provincial são enviados imediatamente pelo Presidente da Comissão Provincial à Comissão Nacional Eleitoral.” E, finalmente, “A medida que for recebendo os dados fornecidos pelas Comissões Provinciais Eleitorais, nos termos do artigo 123.° da presente lei, a Comissão Nacional Eleitoral procede à divulgação dos resultados provisórios de cada candidatura, por círculo eleitoral” (n.° 1 do artigo 135.°/Publicação dos resultados nacionais). O artigo 123.° manda que “Para efeitos do apuramento provisório, os resultados eleitorais obtidos por cada candidatura em cada mesa de voto, devem ser transmitidos pelos presidentes das assembleias de voto às Comissões Provinciais Eleitorais, pela via mais rápida, devidamente certificada pela Comissão Nacional” (n.° 2 do artigo 123°). “Pela via mais rápida” pelas Comissões Provinciais Eleitorais e não pela via das Comissões Municipais, note-se!

 

Fica claro, por força da interpretação de todos os artigos da LOEG acima aduzidos, mas sobretudo por força dos artigos 131.°/1, 130.° e 135.°/1 que é com base nos dados do apuramento provincial que a CNE procede à divulgação dos resultados gerais provisórios de cada candidatura, por círculo eleitoral. Nos dias 24 e 25 de Agosto, a CNE fez a divulgação dos resultados provisórios de cada província sem que antes tivesse havido apuramento provincial. Foi público e notório que o apuramento provincial só teve lugar (início) alguns dias depois da divulgação dos resultados gerais provisórios (por círculo eleitoral) pela CNE.

 

A CNE através da Directiva n.° 8/17, de 18 de Agosto permitiu-se alterar a ordem dos apuramentos. A LOEG determina que primeiro seja feito o apuramento provincial, logo após a votação e de forma ininterrupta até à sua conclusão, e a medida que for recebendo os dados fornecidos pelas Comissões Eleitorais, a CNE proceda à divulgação dos resultados gerais provisórios. Em homenagem ao princípio da legalidade da administração, a CNE está obrigada a actuar de acordo com a lei e com total respeito pela legalidade democrática eleitoral. Não pode fazer o que julgar mais conveniente, mas, tão-somente, o que a LOEG, claramente, lhe impõe. E muito menos contrariar o procedimento para o apuramento nacional provisório ditado pela LOEG, criando um novo procedimento, cinco dias antes da votação, em pleno curso do processo eleitoral!! Não se está, em face dessa alteração de procedimento, perante a violação do princípio da boa fé da administração, um princípio constitucional, n.° 1 do artigo 164.° da CRA, por parte da CNE?

INCONSTITUCIONALIDADE (E ILEGALIDADE) DO PROCEDIMENTO CRIADO PELA CNE ATRAVÉS DA DIRECTIVA 8/17 DE 18 DE AGOSTO POR OFENSA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LEGALIDADE DA ADMINISTRAÇÃO, N.° 1 DO ARTIGO 198.° DA CRA

O princípio da hierarquia das fontes internas realiza-se através de dois princípios, a saber, o princípio da constitucionalidade e o princípio da prevalência ou da preferência da lei. Este último subordina-se ao princípio da constitucionalidade (Ver Canotilho, 2003, p. 721).

 

O princípio da prevalência da lei tem três dimensões: “(1) a lei é o acto da vontade estadual juridicamente mais forte; (2) prevalece ou tem preferência sobre todos os outros actos do Estado, em especial sobre os do poder executivo (regulamentos, actos administrativos); (3) detém a posição de «topo da tabela» da hierarquia das normas, ou seja, desfruta de superioridade sobre todas as outras normas da ordem jurídica (salvo, como é óbvio, as constitucionais)” (Canotilho, 2003, p. 722).

 

O que foi que se passou entre os dias 24 e 25 de Agosto? A CNE recebeu directamente – diz- se – dos presidentes das Comissões Municipais Eleitorais (CMEs) as actas síntese das assembleias de voto de todo o país. E, no meu entendimento, procedeu ao apuramento provincial (das 18 provincias) e ao apuramento nacional provisório. Todavia, este procedimento contraria o procedimento prescrito pela LOEG para o apuramento nacional provisório – das assembleias de voto por ofício dos presidentes das assembleias de voto para as Comissões Provinciais Eleitorais são transmitidos os resultados eleitorais de cada candidatura em cada mesa de voto (n.° 2 do artigo 123.°) e igualmente transmitidas para as Comissões Municipais Eleitorais as actas das Assembleias de voto (n.° 1 do artigo 124.°); destas para as Comissões Provinciais Eleitorais também são enviadas as actas das Assembleias de voto (n.° 1 do artigo 124.°); e destas últimas os dados (artigo 131.°), a acta de apuramento provincial (n.° 2 da artigo 130.°), actas e demais documentos e informações referentes ao apuramento provincial (n.° 1 do artigo 132.°) para a Comissão Nacional Eleitoral.

 

Qual é a fonte (a origem) através da qual é determinado que o Presidente da Comissão Municipal deve enviar a acta síntese da Assembleia de voto à Comissão Provincial Eleitoral e à Comissão Nacional Eleitoral? É o artigo 13.° da Directiva n.° 8/17, de 18 de Agosto da autoria da CNE e publicada no Diário da República n.° 142, I Série. Esta alteração de procedimento – que contraria o procedimento decorrente das normas da LOEG e acima explicitado – pode ser feita pela CNE? Não! Porquê?

 

Primeiro, a Directiva n.° 8/17, de 18 de Agosto, um acto regulamentar (um regulamento) não pode revogar ou alterar matéria de reserva de lei, uma competência da Assembleia Nacional. A lei que procede à regulamentação das eleições é denominada lei orgânica. Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão (2000) definem as leis orgânicas como sendo as “principais leis do domínio reservado da competência legislativa da Assembleia da República [Assembleia Nacional]” (pp. 51-52). É a Constituição de Angola, com base em matérias que ela própria indica, que determina que leis devem receber a designação de leis orgânicas, princípio da tipicidade: “2. Os actos da Assembleia Nacional praticados no exercício das suas competências revestem a forma de: [...] b) leis orgânicas, os actos normativos previstos na alínea a) do artigo 160.o e nas alíneas d), f), g) e h) do artigo 164.°”(alínea b) do n.° 2 do art. 166.o da CRA). E, como já foi expresso, são da competência exclusiva da Assembleia Nacional, princípio da exclusividade: “À Assembleia Nacional compete legislar com reserva absoluta de competência legislativa sobre as seguintes matérias: [...] d) eleicões [...]”(artigo 164.o/d/f/g/h) e “Compete à Assembleia Nacional, no domínio da sua organização interna: a) legislar sobre a sua organização interna [...]”(alínea a) do artigo 160.o da CRA). E, note-se bem, são inconstitucionais a leis orgânicas de autorização (ver Canotilho, 2003, p. 751), não apenas doutrinalmente, mas porque a nossa Constituição determina que sobre as matérias reservadas às leis orgânicas seja, em exclusivo, a Assembleia Nacional a legislar. Se a Assembleia Nacional viesse a autorizar que outros órgãos legislassem sobre essas matérias estaria a violar o que a Constituição lhe impõe.

 

Segundo, a própria LOEG, em homenagem ao princípio da legalidade da administração, um princípio constitucional, n.° 1 do artigo 198.° da CRA, verbera que a CNE altere o procedimento para o apuramento provisório e definitivo ao impor a regra geral segundo a qual “A Comissão Nacional Eleitoral [...] não pode decidir em termos contrários às disposiçōes referentes ao processo eleitoral, constantes da presente lei” (n.° 2 do art. 144.°). Ao mudar o procedimento para o apuramento nacional provisório, inovadoramente e contra legem, a CNE decidiu contrariamente à LOEG, praticando uma ilegalidade, que também e ao mesmo tempo é uma inconstitucionalidade, por ofensa ao princípio da legalidade da administração, que é um princípio constitucional. – Diga-se, em abono da verdade, violação acolitada pelo Tribunal Constitucional, por omissão, por não ter procedido à fiscalização concreta da constitucionalidade da Directiva n.° 8/17, de 18 de Agosto!

 

* Fernando Macedo